Crónica
O Papa trocou-me as voltas. Estava eu, de armas e
bagagens, dedos sobre o teclado, à porta do deserto para reflectir convosco o
episódio das tentações de Jesus, quando a notícia correu como fogo em seara
seca: “O Papa vai abandonar a liderança da igreja dia 28”! E todas as
boas intenções de reflexão passaram para segundo plano perante o espanto de tal
notícia. Chovem e vão continuar a chover inúmeros comentários, a propósito e a
despropósito, e tinha prometido a mim mesmo não engrossar tal enxurrada mas não
resisti à tentação.
Primeiro alegrou-me a capacidade de Bento XVI nos
surpreender (e surpreender o mundo) ao mostrar que a Igreja é mais do que ele,
e que Deus nos confia missões mas ninguém O substitui. A inteligência e
liberdade desta decisão são um verdadeiro sopro de vitalidade para um serviço
que não pode viver acorrentado a nenhum poder despótico, e ajude a reflectir
corajosamente a autoridade e a co-responsabilidade na vida eclesial. É preciso
evitar cair na tentação de entrar em comparações com a vida de João Paulo II.
Quando o amor à verdade e a consciência de limites pessoais se exprimem numa
real fragilidade, não tocamos também aí a grandeza do amor de Deus?
Às vezes as
tentações não se manifestam em propostas novas mas no arrastar de modelos
antigos. Não é um pouco isso que Jesus tem de vencer no seu deserto (que vai
ser também o nosso)? Que modelos mais antigos, do que o poder só em benefício de
si e dos seus, o ter para dominar os que nada têm, e a ostentação e soberba de
querer pôr Deus ao seu serviço? “O diabo sabe muito porque é velho”
costuma dizer o nosso povo, assim como são velhas também as suas propostas.
Para isso conta com a inércia e o acomodamento de quem não ousa sonhar nem
acreditar que a vida pode ser diferente e mais feliz. Somos nós quando pensamos
que “só repetir é bom”, que “sempre se fez assim”, e que fazemos da vida, da
fé, e até do amor, uma organização burocrática e planeada. Encanta-me a
surpresa e a novidade com que Jesus contagia a nossa vida. Diz vários “nãos”
porque há um “sim” sempre maior e mais belo adiante de cada “não”. É neles que
nos convida a apostar, com o risco de tudo e a verdade de não sermos
“super-homens”. Mas de sermos infinitamente amados! E não é na força do amor de
Jesus que a Igreja e o Evangelho têm os fundamentos? E não é esse mesmo amor
que todos os dias nos estimula a viver com espanto e agradecimento? Que “nãos”
precisamos dizer para que seja mais claro e feliz o “sim” que nos aquece o
coração?
(Texto do P. Vítor Gonçalves no jornal "Voz da Verdade" deste domingo)
Foto © Daniel Rocha: o Papa Bento XVI no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, em Maio de 2010
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