Crónica
O pontificado tem os dias contados, mas o tempo de Bento
XVI há-de prolongar-se. Já muito, mas nem tudo, se disse do Papa
Ratzinger.
Estes oito anos foram escassos para esquecer o
tsumani mediático de João Paulo II. Suficientes no entanto para traçar
uma linha histórica na Igreja. O gesto dessacraliza a figura do Papa,
com consequências no longo prazo. Outros afastaram-se num passado
longínquo e o direito canónico prevê esta situação. Mas Ratzinger é o
primeiro que ousa resignar de forma livre, reflectida e consciente.
Não é correcto fazer comparações entre pontificados. Os tempos históricos são diferentes como diferentes são as circunstâncias de vida de cada um dos homens que assumiram a liderança espiritual da Igreja católica. Foi tão corajoso o místico atleta polaco, como lúcido foi o cerebral professor alemão.
Não é correcto fazer comparações entre pontificados. Os tempos históricos são diferentes como diferentes são as circunstâncias de vida de cada um dos homens que assumiram a liderança espiritual da Igreja católica. Foi tão corajoso o místico atleta polaco, como lúcido foi o cerebral professor alemão.
Um dos problemas irresolúveis do próprio cristianismo
é o da interpretação. Uma tensão permanente que implica a componente
humana. Na “cadeira de Pedro”, como noutras funções, o homem também faz o
lugar. Interpreta-o no tempo e na circunstância, embora, pela tradição,
seja escolhido com inspiração divina. Bento XVI assumiu o lugar com o
peso de um “mandato do céu” que só se compreende com os pés assentes na
terra. É o que podemos ler nas entrelinhas da resignação. Se os desafios
e as circunstâncias, internas e externas, ultrapassam os limites da
capacidade humana, há que tirar as devidas ilações. Ratzinger viveu
intensamente a agonia do papa Woytila, sabe o que significa para o
governo da Igreja a fragilidade física e anímica do seu líder.
Podemos ver, no raciocínio de Ratzinger, a gravidade
do que se avizinha. O cristianismo é o grupo religioso mais perseguido
no mundo. São tempos difíceis e esgotantes para o novo Papa, da
necessária renovação da estrutura - que não se livra de escândalos e
divisões -, ao diálogo ecuménico, inter-religioso, social, político e
cultural, num mundo plural, secularizado e indefinido, com novos pólos
de poder, mediaticamente exigente, o que pede uma grande itinerância.
Este é o homem que um dia confessou não ter
descoberto a vocação como se fosse um raio fulminante, um chamamento
episódico. Ratzinger teceu uma rede teórica com a Fé e a Razão, como
duas dimensões inseparáveis na experiência religiosa.
Fé e Razão, Liberdade, Consciência e “Verdade” são
padrões de uma cultura que não prescinde da análise, da maturação
racional. Goste-se ou não das ideias. Mas essa é outra conversa. Até
porque são legítimas as motivações para a contestação ao
conservadorismo doutrinário e à centralização romana.
Como Papa era chamado a fazer pontes para fora e por
dentro. Do alto do seu pensamento elaborado e ao mesmo tempo
pragmaticamente simples, ensaiou algumas. Sem ilusões. Equivocou-se
julgando que só isso bastava e mais se equivocaram o que pensaram que
ele agiria de outra forma.
Recordo o que disse aos compatriotas numa audiência
poucos dias depois de ser eleito. Comparou o momento a uma guilhotina.
Tremenda metáfora para um homem sensível. Se Deus cortara a cabeça a
Ratzinger, quem seria Bento XVI?
Em oito anos nunca deixou a via do pensamento
autónomo, arriscando gerar alguma confusão entre o intelectual académico
e o pontífice, porque são, afinal, uma e a mesma pessoa.
Paradoxalmente, é quando deixa o pontificado que se vê obrigado a fazer
silêncio. Agora, mais do que nunca, as suas palavras estariam sujeitas
ao escrutínio. Terá caído definitivamente a guilhotina para um dos mais
importantes pensadores da actualidade. Fica a obra, incluindo um texto
sobre a Fé, a publicar em breve, no qual estava a trabalhar para ser uma
encíclica. As três encíclicas publicadas apontam úteis pistas ao
sucessor. A última - Caritas in veritate - deixou os católicos
da alta finança, executivos e académicos, tendencialmente neoliberais e
promotores da sacralização dos mercados, com as orelhas a arder.
Esta é uma parte do seu legado... Uma resignação
coerente que abre novas perspectivas para os pontífices seguintes, o
reforço de uma certa ortodoxia católica, a discreta teimosia da Razão
num tempo de emoções exacerbadas, também na experiência religiosa.
Joaquim Franco
Artigo de opinião publicado na SIC Online, que pode ver aqui
Joaquim Franco
Artigo de opinião publicado na SIC Online, que pode ver aqui
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