É no primado da dignidade
humana que permanece a ética e se reconstrói a confiança. Se a acção é motivo
de escândalo ou fere a dignidade, há que repensar as opções. Pelos caminhos da
mudança urgente, ecoa a experiência da história como aviso contra a
precipitação. Se “cortar a eito” é princípio de acção, haja sabedoria para
atenuar a aparente inevitabilidade.
Seria importante rever os
catorze gritos de alerta que despertam para a acção concreta e fraterna. Em
contexto cristão chamaram-lhe obras de Misericórdia, que no actual
contexto pedem uma nova hermenêutica.
Dar de
comer a quem tem fome é, na sua
raiz, urgência de humanidade. Os gestos mais simples podem não matar as fomes
do mundo, mas é nos pequenos combates que começam as grandes revoluções. Matar
a fome é apenas o primeiro passo.
Dar abrigo
aos peregrinos, porque a vida é uma
peregrinação. Somos chamados a exigir políticas justas de habitação. Ninguém
experimenta a justiça sem tecto, e ninguém tem o direito de tirar um tecto a
quem não tem para onde ir. Mas somos chamados também a acolher com o coração,
no espaço inabitado de afectos.
Assistir os
doentes e os mais frágeis requer
uma renovada disponibilidade, a começar na família. Os grandes centros urbanos
arrastam grandes desafios, a emergência da organização e da criatividade,
sustentável e responsável, mas não cúmplice. Porque um doente não é uma
equação, exigem-se políticas de saúde que tenham em conta a integridade da
pessoa humana, sem distinções ou subterfúgios financeiros.
Dar de
beber a quem tem sede,
porque não há como garantir a paz enquanto houver quem não tem dignidade na
sobrevivência. É urgente promover políticas para a erradicação da pobreza e
para a distribuição justa. Mas que esta urgência ética não abrande o combate à
indiferença, que promove a consciência colectiva contra a cobiça e o lucro que
subjuga. Porque não há justiça enquanto a fragilidade do outro for instrumento
para o subjugar.
Vestir os
nus. Uma mudança de
comportamentos implica também a sobriedade que abre caminho à partilha.
Contrariar o culto do luxo e do supérfluo. De que serve gritar a solidariedade
aos quatro ventos se a nossa vida não é coerente?
Socorrer os
prisioneiros. Na sociedade do medo e
da insegurança, que espaço há para dar nova oportunidade aos que falham?
Socorrer os presos é ajudá-los no processo de recuperação da dignidade. No
direito à cidadania e liberdade, no contexto da justiça e do arrependimento,
mas também ajudar as famílias desamparadas, os filhos que a circunstância atira
para a crueldade da vergonha e do abandono.
Enterrar os
mortos porque cada pessoa é um
templo, um ser com história e memória que na morte encerra apenas o capítulo
maior da existência. Se, no exercício da fé, se projecta a vida depois da morte
que há-de explicar a nossa humanidade, é na travessia que revelamos do que
somos feitos. A morte não começa apenas quando pára um coração. E se no final
da caminhada, a morte tem as vestes da indiferença, que não seja a indiferença
a vencedora sobre a morte, mas o derradeiro respeito, que dará sentido ao ciclo
da vida.
Instruir,
aconselhar, consolar, confortar, perdoar, suportar com paciência, rogar pelos
vivos e pelos mortos.
Nos rumores
da história ecoam verdades simples e universais que sobrevivem nas entrelinhas
da fé. Acção que faz acção e promove mudança. Não se trata de ensaiar
experiências pontuais de uma certa caridadezinha que perpetua a miséria nas
entranhas da vida. Ontem, hoje e sempre, ter misericórdia é entrar na carência
do outro, até que a carência do outro seja a debilidade insuportável.
Sem comentários:
Enviar um comentário