Sínodo sobre a família: entreaberta a porta para bispos decidirem
caso a caso sobre as situações de ruptura matrimonial
Foto Ricardo Perna/Família Cristã (reproduzida daqui)
O Papa Francisco diz que é tempo
de a Igreja ser compassiva e ter misericórdia. E, perante as necessidades e a
realidade vivida pelas pessoas, os católicos, e de modo especial os bispos, não
devem ser surdos: “Uma fé que não sabe radicar-se na vida das pessoas permanece
árida e, em vez de oásis, cria outros desertos”.
Na homilia da missa conclusiva do
Sínodo dos Bispos, que desde dia 4 debateu no Vaticano os desafios colocados
pela realidade da família ao catolicismo, o Papa não se referiu directamente
aos temas tratados na assembleia, mas não deixou de apontar critérios para a
actuação dos responsáveis da Igreja.
“Podemos caminhar através dos
desertos da humanidade não vendo aquilo que realmente existe, mas o que nós
gostaríamos de ver”, afirmou Francisco. Para acrescentar: “Somos capazes de
construir visões do mundo, mas não aceitamos aquilo que o Senhor nos coloca
diante dos olhos.”
O documento final do Sínodo, com
94 pontos que, na véspera, foram aprovados todos por maioria qualificada, reflecte
a tensão entre o desejo do Papa em debater essa realidade e aquilo que, para
já, a hierarquia católica foi (ou não) capaz de fazer: tímidas aberturas na
questão dos divorciados que voltaram a casar, doutrina inamovível sobre a
contracepção ou a homossexualidade, afirmações contundentes sobre as
dificuldades económicas e sociais vividas por muitas famílias...
Consenso ainda difícil
O acesso dos divorciados recasados
à comunhão foi um dos temas que dominou os últimos dias de trabalho. E foi
aquele onde o consenso apareceu mais difícil: os três pontos sobre o assunto
foram aprovados também por maioria qualificada de dois terços (eram necessários
pelo menos 177 votos), mas à tangente.
Nos parágrafos 84-86 do documento final
– que tem apenas um carácter de contributo de reflexão para ser entregue ao
Papa – admite-se que os divorciados recasados civilmente “devem ser mais
integrados nas comunidades cristãs”. Propõe-se, depois, que tenha um lugar um
processo de discernimento sobre as formas de exclusão de que essas pessoas têm
sido vítimas. E acrescenta-se que a aproximação da comunidade a estas pessoas
não é um “enfraquecimento da fé”, antes uma expressão da caridade cristã.
O processo de discernimento de
cada crente nessa situação deve afrontar questões como as tentativas de
reconciliação, o comportamento tido diante dos filhos ou a situação do
ex-parceiro. E deve ser acompanhado por um padre, de acordo com o ensino
católico e a orientação do bispo.
Este processo deve levar a
reflectir sobre o obstáculo a uma maior participação na vida da Igreja e sobre
“os passos que a podem favorecer e fazer crescer”. Deste modo, fica aberto um
caminho que – como dizia o cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena
(Áustria), sexta-feira, na véspera da votação – não é directo, mas “oblíquo” –
ou seja, dependerá da leitura de quem o fizer.
Comentando a proposta que acabara
de ser aprovada, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, disse ao DN
sábado à noite que “a porta ficou muito mais aberta e de certa maneira
esvaziou” o debate sobre a questão, tendo em conta também que, num recente
documento, o Papa admitiu a “falta de fé” ara considerar nulo um casamento.
Mesmo assim, o patriarca não vai
tão longe quanto o cardeal austríaco dava a entender: “Das exclusões
actualmente em vigor, a única que se irá manter será a que diz respeito à
comunhão e eventualmente à distribuição da eucaristia”, afirma. Mas,
acrescenta, “muitos dos casamentos, por falta de preparação, de condições ou de
intenção são efectivamente nulos”.
Agora, D. Manuel pensa que é
necessária “mais seriedade” nas comunidades católicas, na preparação do
casamento. E fica na “expectativa” do que o Papa irá dizer no documento que,
provavelmente, publicará durante o próximo ano.
“Não cair na fácil repetição”
No discurso conclusivo da
assembleia sinodal, sábado ao fim da tarde, o Papa Bergoglio insistira na ideia
de que o Sínodo não se fez para “cair na fácil repetição do que é indiscutível
ou já se disse”. Para acrescentar que “os verdadeiros defensores da doutrina
não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem;
não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão”.
Ontem, na homilia da missa, insistiu
em que um dos riscos da Igreja é “continuar para diante, sem se deixar
perturbar”, diante dos problemas. Outro perigo é ter já uma agenda
pré-programada, onde “tudo está previsto: sabemos aonde ir e quanto tempo
gastar; todos devem respeitar os nossos ritmos e qualquer inconveniente
perturba-nos”.
No discurso conclusivo de sábado
ao final da tarde, Francisco apontara os caminhos que julga necessários: “O
primeiro dever da Igreja não é aplicar condenações ou anátemas, mas proclamar a
misericórdia de Deus, chamar à conversão e conduzir todos os homens à
salvação.” A Igreja deve saber “defender e difundir a liberdade dos filhos de Deus”,
muitas vezes “coberta pela ferrugem de uma linguagem arcaica ou simplesmente
incompreensível”.
Mais ainda: o Sínodo significou
que se puseram a nu “os corações fechados que, frequentemente, se escondem
mesmo por detrás dos ensinamentos da Igreja ou das boas intenções”, julgando, “às
vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias
feridas”. E, acrescentou, o Evangelho não pode ser encerrado como “pedras
mortas” para atirar a outros.
De resto, Bergoglio reafirmou, na
mesma ocasião, a importância de “afrontar sem medo” os problemas. Mesmo
reafirmando a doutrina tradicional da Igreja Católica – o matrimónio é
indissolúvel, entre um homem e uma mulher –, o Papa disse que não se deve
“esconder a cabeça na areia” perante “todas as dificuldades e dúvidas que
desafiam e ameaçam a família”.
Um aviso aos críticos
Destacando o valor da experiência
feita enquanto debate livre de ideias, Bergoglio admitiu que “aquilo que parece
normal para um bispo de um continente, pode resultar estranho, quase um
escândalo, para o bispo doutro continente;
aquilo que se considera violação de um direito numa sociedade, pode ser
preceito óbvio e intocável noutra; aquilo que para alguns é liberdade de
consciência, para outros pode ser só confusão”.
No debate franco no entanto, não
vale tudo, avisou o Papa, criticando o anonimato de alguns ataques que lhe têm
sido dirigidos.:“No caminho deste Sínodo, as diferentes opiniões que se
expressaram livremente – e às vezes, infelizmente, com métodos não inteiramente
benévolos – enriqueceram e animaram certamente o diálogo”, disse.
Nesta afirmação, pode ler-se uma
chamada de atenção indirecta a uma carta que 13 cardeais – alguns dos quais
negaram depois ter assinado a mesma – dirigiram ao Papa, criticando o método do
Sínodo.
O patriarca de Lisboa considera
igualmente que o facto de este debate ter sido feito em duas etapas – com uma assembleia
extraordinária no ano passado e uma regular este ano – foi muito positivo. “Com
este Papa, a sinodalidade vai ser uma constante na vida da Igreja” e merecia
mesmo um Sínodo dos Bispos para debater o tema. Essa foi a proposta de D.
Manuel nos momentos finais da assembleia, quando os bispos foram convidados a
deixar sugestões de temas para as próximas reuniões.
(texto publicado no Diário de Notícias de segunda-feira, dia 26 de
Outubro)
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Sínodo: "A imagem viva duma Igreja que não usa formulários preparados por antecipação" - excertos do discurso do Papa no final do Sínodo
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