Ilustração: Bernadette Lopez, Berna,
O lava-pés (5), reproduzida daqui
O Papa Francisco disse, quinta-feira à tarde,
que o tráfico de armas é uma das razões dos atentados terroristas. Foi na celebração
da Última Ceia de Jesus, durante a qual cumpriu o rito do lava-pés, um dos
símbolos da Páscoa. Este texto fala desse símbolo, da refeição, da cruz e do
fogo. Foi publicado na edição de hoje do Diário de Notícias:
O Papa
Francisco celebrou ontem a liturgia do lava-pés, com um grupo de refugiados de
vários países e religiões, incluindo muçulmanos e hindus. “Todos irmãos, filhos
do mesmo Deus, que queremos viver em paz”, disse o Papa.
No final da
cerimónia, no centro de acolhimento de Castelnuovo di Porto, 30
quilómetros a norte de Roma, vários
cristãos coptas começaram a cantar. “É belo viver juntos, como irmãos, com
culturas, religiões e tradições diferentes. Mas somos todos irmãos e isto tem
um nome: paz e amor. Obrigado”, disse Francisco, antes de passar por todas as
filas a saudar os refugiados, um por um, os quase 900 refugiados (incluindo 554
muçulmanos), de 26 nacionalidades.
Na homilia,
o Papa referiu os atentados de Bruxelas: por trás do terroristas, estão também “os
que fabricam e traficam armas”, que “querem a guerra”, disse. “Pobres daqueles
que compram armas para destruir a fraternidade.”
Francisco ajoelhou depois
perante oito homens e quatro mulheres: uma funcionária do centro, quatro
nigerianos católicos, três ortodoxas da Eritreia, um hindu e três muçulmanos da
Síria, Paquistão e Mali, regista a agência Ecclesia.
“Os gestos falam mais do que as
imagens e do que as palavras”, disse, referindo depois o significado do
lava-pés, um dos símbolos mais importantes das liturgias dos quatro dias de
Páscoa: “Todos nós estaremos a fazer o gesto da fraternidade e dizemos todos
que somos diferentes, distintos, com culturas e religiões diferentes, mas somos
irmãos e queremos viver em paz.”
Foi a primeira vez que o Papa
celebrou o gesto depois de, em Janeiro, ter decretado que a cerimónia passe a
incluir também mulheres: apesar de ele sempre ter incluído mulheres, uma regra
litúrgica instituía que o celebrante deveria lavar os pés a doze homens ou
rapazes.
O
símbolo: comer juntos
O
lava-pés repete o gesto de Jesus realizado durante a ceia em que se despediu do
grupo de seguidores. No texto do Evangelho de São João, o lava-pés é mesmo o
grande gesto da despedida de Jesus, ao contrário do que acontece nos outros
três textos – de Mateus, Marcos e Lucas.
A
ceia é o outro símbolo maior destes dias e o centro da memória cristã de Jesus.
Comer juntos uma refeição e fazer desse ritual um lugar religioso central não é
exclusivo do cristianismo. A última ceia de Jesus era a celebração da Páscoa
judaica, em que os hebreus celebram a libertação do regime de escravatura a que
estavam sujeitos no Egipto dos faraós.
É
também com uma refeição festiva que os muçulmanos terminam o Ramadão. E os
sikhs recordam que, em 1649, Guru Nanak, seu mestre espiritual, deu de comer a
muita gente, usando a fortuna que o pai lhe dera para gastar.
A
última ceia de Jesus nasce de um desejo: “Tenho ardentemente desejado comer
esta Páscoa convosco”, disse Jesus, segundo os relatos dos evangelhos. A memória
de Jesus faz-se, assim, à volta de um desejo e de uma refeição, o momento em
que se estabelece a igualdade e os alimentos se transfiguram em fraternidade.
O
pão repartido remeter, assim, para a entrega total ao outro e a partilha de
tudo – incluindo da própria vida. Em Do
Lugar do Pobre, escreve o teólogo brasileiro Leonardo Boff: “Não basta a
busca de justiça para tornar a eucaristia autêntica. Jesus dá um passo além: a
celebração pressupõe a superação das rupturas do tecido social e a
reconciliação.”
O
problema: comer com todos
“O
problema era que Jesus comesse de qualquer maneira e com toda a espécie de
pessoas”, escreve José Tolentino Mendonça. “Comendo com pecadores, Jesus
praticava o Reino que estava proclamando”, acrescenta o biblista português, em A Leitura Infinita.
Este
factor acaba por ser decisivo para o condenar à morte na cruz, que assume, com
os séculos, o símbolo do despojamento pleno: para os crentes, é o próprio Deus
que se anula para se entregar por todos. O filósofo Paul Ricoeur escrevia: “O
único poder de Deus é o amor desarmado. Deus não quer o nosso sofrimento. De
todo-poderoso, Deus torna-se ‘todo-amoroso’.” E, no século VI, Isaac de Nínive
escrevia: “Deus só pode dar o seu amor.”
É
essa a perspectiva que o Papa quis dar à via-sacra que, logo à noite, será
celebrada no Coliseu. Memória do caminho de Jesus carregando a cruz até ao
lugar da sua morte, a via-sacra de hoje irá recordar, de modo especial, os
migrantes e refugiados, as perseguições religiosas, os judeus exterminados na
II Guerra Mundial, as famílias em dificuldade, a precariedade laboral e os
menores abusados.
A
experiência e o símbolo da cruz completam-se, na liturgia cristã, com a ideia
do fogo: a vivência da ressurreição de Jesus é, segundo os relatos das suas
primeiras testemunhas, a de algo que lhes dá um fogo novo, uma energia
redobrada. Por isso é que, na liturgia católica, a vigília pascal – que, sábado
à noite, celebra a ressurreição – se inicia com a bênção do lume novo e com a
oração do “precónio pascal”: este, em forma de história cantada, conta a força
da luz na narrativa bíblica. Uma luz que vem para dar “alegria aos tristes,
derrubar os poderosos, dissipar os ódios, estabelecer a concórdia e a paz”.
Texto anterior no blogue
Condenar os “actos de horror” - comentários de instituições e lideres religiosos aos atentados de Bruxelas
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