Sábado passado, no Souto da Casa
(Fundão), decorreu um encontro de homenagem ao padre Alberto Neto, pedagogo e
educador de gerações, renovador do catolicismo, que foi durante vários anos assistente da Juventude Estudantil Católica, capelão da Capela do Rato, em Lisboa e, depois, pároco de Rio de Mouro. Alberto Neto morreu em 1987, vítima de
um crime até hoje nunca esclarecido.
Um texto com algumas impressões e uma síntese sobre o encontro de sábado pode ser lido
aqui (de onde se reproduz também a imagem ao lado). Uma outra notícia pode ser lida aqui.
Durante a homenagem, Jorge Wemans deu um testemunho sobre as suas memórias acerca de Alberto Neto, que a seguir se reproduz na íntegra:
Muito
obrigado por este convite que me deixa meio sem jeito… estão na sala pessoas
que terão conhecido melhor o P. Alberto Neto e outras que com ele conviveram mais
longamente do que eu e, portanto, seria muito mais interessante ouvi-las a
elas... Algumas, se as conheço devo-o ao P. Alberto.
Quero
agradecer na pessoa do Dr. António Lourenço Marques a todos os que contribuíram
para esta homenagem e aos que para ela hoje convergiram. Saúdo de modo especial
D. Estela, no rosto de quem revemos a fisionomia do irmão.
Tive
a sorte de ser acompanhado pelo Alberto – desculpem a informalidade do
tratamento, mas era assim que nos referíamos a ele quando não estava presente –
em momentos muito importantes da minha vida e da nossa vida coletiva, desde os
anos finais de década de sessenta até meados dos anos oitenta. Tê-lo como amigo
nesses anos cruciais foi uma espantosa benção que nunca poderei agradecer
suficientemente.
O
primeiro contato com ele tive-o por ocasião das operações de socorro
organizadas a partir da equipa de sacerdotes da Martens Ferrão como respostas
às cheias de novembro de 1967. Depois foi um crescendo de aproximação: foi
assistente da minha equipa de base da JEC, era capelão da Capela do Rato quando
da vigília de dezembro de 1972, na sequência da qual fui preso, era ele que
conduzia o carro em que um grupo de nós foi exigir e saudar a libertação dos
presos políticos em Caxias (26/04/1974). Presidiu à celebração do meu
casamento, batizou o nosso primeiro filho, já depois de casado vivi durante
dois anos na Casal Ribeiro numa comunidade que ele também integrava… enfim… as
nossas vidas não se cruzaram apenas, foram, por períodos longos e decisivos,
mesmo muito próximas. O que constituiu para mim uma enorme bênção!
Escolhi
trazer para esta manhã de celebração da memória do Alberto três virtudes suas. Mas
antes do mais quero dizer-vos como é comovente estarmos aqui tantos anos depois
da sua morte sem qualquer outro objetivo para além de recordar um homem que não
fundou obra, escola, partido, seita ou qualquer instituição. Limitou-se a
viver. Levou o viver a sério. Foi nosso amigo. E é essa amizade que nos traz
aqui hoje.
Apaixonado
por Cristo, interessava-se pelas pessoas com quem se cruzava e era movido por
uma esperança enorme apenas igual à sensibilidade com que denunciava a injustiça.
Era um poeta. E um músico. Era também um ator. Mais do que tudo isto: era um oficiante
da palavra, no sentido em que a sua palavra era performativa – o que ela
anunciava acontecia: nos corações das pessoas que o escutavam e na própria
realidade das coisas novas que ela suscitava. Estou convencido que para
entender este homem, para nos aproximarmos de quem foi, é preciso conhecer a
centralidade que a Palavra e a palavra detinham no seu modo de ser.
Se
quiséssemos ser sintéticos sem faltar à verdade bastaria dizer que o P. Alberto
foi um profeta com palavras de poeta.
E
não é a verdadeira palavra sempre uma profecia, um poema? Uma profecia na medida
que desvela o futuro desejado, querido, e um poema que, dispondo as palavras
numa relação inabitual, nos permite voltar a entender as coisas, as pessoas, os
lugares e a história de um modo novo nunca antes visto pelos nossos olhos? Não
são esses os modos de ser da palavra que é verdadeira palavra?
Não
me refiro a este meu pobre balbuciar, mas à verdadeira palavra...
Estamos
pois aqui hoje por causa de um homem excepcional que foi nosso amigo. Um homem que
viveu intensamente o seu tempo (os seus tempos, pois viveu ao longo da sua vida
tempos bem diversos) e sobre quem, mais do que sobre qualquer outro, ouvi gente
muito diversa afirmar: “O P. Alberto foi uma das pessoas que em toda a minha
vida mais me marcou.” Digo o mesmo.
Uma
das virtudes do Alberto de que guardo mais funda recordação é a confiança com
que ele encarava a vida, o modo como confiava nas pessoas, a forma como se
entregava confiante às tarefas e desafios que fazia seus. Creio que esta
confiança espontânea no interlocutor que mal acabara de conhecer explica boa
parte da aceitação que sempre teve junto dos jovens.
Mas
à confiança natural e imediata nas pessoas, o Alberto juntava a confiança
amadurecida, refletida e ponderada. Vale a pena recordar. Quem não participou
ativamente na luta contra a ditadura e a guerra colonial tem grande dificuldade
em perceber quanto de informal e inorgânico marcou os anos que antecederam o 25
de Abril. Com a perceção de que a abertura marcelista era incapaz de nos
conduzir à democracia ou de resolver a questão colonial, muita gente começou a
tomar consciência de que o regime estava completamente bloqueado.
Esses
primeiros anos da década de setenta viram muitos despertar para a contestação à
ditadura. Sobretudo jovens estudantes e gente de sectores católicos. Para não
repetir erros e modelos do passado foi preciso desenvolver redes mais ou menos
informais disponíveis para se mobilizarem para vários tipos de ações suportadas
por organizações tão diversas como as AAEE, os movimentos católicos, as organizações
políticas clandestinas, os clubes culturais e as associações de todo o género, etc...
E, por causa da forte repressão policial, era preciso não saber muito, ou
melhor, era preciso saber o menos possível. Assim se corria menor risco de, sob
tortura, revelar nomes e denunciar estruturas.
Neste
contexto, houve quem andasse sempre desconfiado e cheio de receios à procura de
fantasmas... O Alberto confiava, confiava ativamente, isto é, favorecia o
encontro de pessoas para porem de pé ações, iniciativas, atividades dele desconhecidas,
mas que confiava serem necessárias. Acreditava sem ver. Via os rostos das
pessoas e isso lhe bastava para as ajudar a se encontrarem. Como conhecia
imensa gente e gente de todo o tipo deve ter sido das pessoas que mais fios
permitiu que se tecessem, ainda que sem os conduzir, dirigir ou orientar. Desse
ponto de vista também é verdade dizer que o Alberto era um educador com
urgências. Sabia que as pessoas só crescem se lhes forem dadas oportunidades de
conhecerem o que ainda não viram. E havia naquele tempo muita pressão para que
não se visse... para que as pessoas permanecessem infantilizadas, diminuídas, bonsais
de si mesmas. Tudo destinos com os quais o Alberto não contemporizava.
Mas
em tudo o Alberto era uma pessoa extremamente livre e libertadora. Nunca foi
prisioneiro de nenhum grupo (até em relação ao Sporting mantinha o seu espírito
crítico e as suas distâncias). Com todas as interrogações e dúvidas viveu o seu
sacerdócio sem qualquer restrição do seu indomável espírito de liberdade. Precisava
do seu tempo para si e impunha-se as suas paragens. Ausentava-se e voltava
ainda mais alegre, animado e animador. Livre como era só podia ser libertador. Nunca
o vi perder tempo a dizer mal de alguém. Com o seu humor era capaz de ser
corrosivo e eram intermináveis os serões de risadas até doerem as bochechas em
que todos à vez eram fustigados pelo seu olhar contundente. Contudo... era
demasiado livre para perder tempo com maledicência!
Tinha
uma capacidade única de desafiar cada um, cada uma, para pensar, fazer,
responsabilizar-se pelas coisas mais inesperadas. Eram sempre desafios para os
quais não nos sentíamos preparados, mas depois vínhamos a perceber que eram os
mais justos para nós, para cada um de nós, para aquele ou aquela. A sua
liberdade era um contágio de esperança e confiança.
Recordo
ainda do Alberto a espantosa capacidade de não aceitar situações fechadas, fatalidades
imutáveis, becos sem saída. Digo-o porque vi: ele desenhava portas e janelas
nos muros insuperáveis, intransponíveis.
Nos
altos muros que naqueles anos nos rodeavam por todos os lados, de forma
sufocante. Em muros de todo o tipo. Muros interiores de cada um, de que nem o
próprio suspeitava, altas barreiras interpessoais, caducas paredes eclesiais
impossibilitando a comunicação e o conhecimento, muros de desconfiança entre
grupos, paredes de indiferença, muros da política e da pobreza... Primeiro
nomeava-os com a coragem que poucos tinham e depois desenhava neles portas e
janelas por onde passarmos. Claro, competia-nos a nós escavar essas portas e
janelas com as nossas próprias mãos, mas quem mostrava que seria possível furar
e superar os muros da nossa vergonha pessoal, política, social e comunitária
era ele mesmo. Nisso, graças ao Alberto, muitos da minha geração vislumbraram a
mais nítida aproximação do que será o olhar de Deus sobre o homem, a mulher e o
mundo.
Na
sua morte chorámos a brutalidade e o absurdo do seu assassinato, chorámos o
vazio que nos deixava e a falta que então logo começou a fazer-nos, mas
chorámos também pelos nossos filhos e por todas as pessoas que nesse dia perderam
a possibilidade de virem a conhecer o Alberto e de por ele serem desafiadas a construir
uma vida melhor para si e um mundo mais habitável para todos.
Jorge
Wemans
Souto
da Casa, 24 de setembro de 2016
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Textos da espiritualidade cristã encenados no Mosteiro da Batalha
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