quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Alberto Neto [1931-1987] – Um profeta com palavras de poeta

Sábado passado, no Souto da Casa (Fundão), decorreu um encontro de homenagem ao padre Alberto Neto, pedagogo e educador de gerações, renovador do catolicismo, que foi durante vários anos assistente da Juventude Estudantil Católica, capelão da Capela do Rato, em Lisboa e, depois, pároco de Rio de Mouro. Alberto Neto morreu em 1987, vítima de um crime até hoje nunca esclarecido. 
Um texto com algumas impressões e uma síntese sobre o encontro de sábado pode ser lido aqui (de onde se reproduz também a imagem ao lado). Uma outra notícia pode ser lida aqui
Durante a homenagem, Jorge Wemans deu um testemunho sobre as suas memórias acerca de Alberto Neto, que a seguir se reproduz na íntegra:


Alberto Neto [1931-1987] – O homem que desenhava portas e janelas nos muros insuperáveis  

Muito obrigado por este convite que me deixa meio sem jeito… estão na sala pessoas que terão conhecido melhor o P. Alberto Neto e outras que com ele conviveram mais longamente do que eu e, portanto, seria muito mais interessante ouvi-las a elas... Algumas, se as conheço devo-o ao P. Alberto.
Quero agradecer na pessoa do Dr. António Lourenço Marques a todos os que contribuíram para esta homenagem e aos que para ela hoje convergiram. Saúdo de modo especial D. Estela, no rosto de quem revemos a fisionomia do irmão.
Tive a sorte de ser acompanhado pelo Alberto – desculpem a informalidade do tratamento, mas era assim que nos referíamos a ele quando não estava presente – em momentos muito importantes da minha vida e da nossa vida coletiva, desde os anos finais de década de sessenta até meados dos anos oitenta. Tê-lo como amigo nesses anos cruciais foi uma espantosa benção que nunca poderei agradecer suficientemente.
O primeiro contato com ele tive-o por ocasião das operações de socorro organizadas a partir da equipa de sacerdotes da Martens Ferrão como respostas às cheias de novembro de 1967. Depois foi um crescendo de aproximação: foi assistente da minha equipa de base da JEC, era capelão da Capela do Rato quando da vigília de dezembro de 1972, na sequência da qual fui preso, era ele que conduzia o carro em que um grupo de nós foi exigir e saudar a libertação dos presos políticos em Caxias (26/04/1974). Presidiu à celebração do meu casamento, batizou o nosso primeiro filho, já depois de casado vivi durante dois anos na Casal Ribeiro numa comunidade que ele também integrava… enfim… as nossas vidas não se cruzaram apenas, foram, por períodos longos e decisivos, mesmo muito próximas. O que constituiu para mim uma enorme bênção!

Escolhi trazer para esta manhã de celebração da memória do Alberto três virtudes suas. Mas antes do mais quero dizer-vos como é comovente estarmos aqui tantos anos depois da sua morte sem qualquer outro objetivo para além de recordar um homem que não fundou obra, escola, partido, seita ou qualquer instituição. Limitou-se a viver. Levou o viver a sério. Foi nosso amigo. E é essa amizade que nos traz aqui hoje.

Apaixonado por Cristo, interessava-se pelas pessoas com quem se cruzava e era movido por uma esperança enorme apenas igual à sensibilidade com que denunciava a injustiça. Era um poeta. E um músico. Era também um ator. Mais do que tudo isto: era um oficiante da palavra, no sentido em que a sua palavra era performativa – o que ela anunciava acontecia: nos corações das pessoas que o escutavam e na própria realidade das coisas novas que ela suscitava. Estou convencido que para entender este homem, para nos aproximarmos de quem foi, é preciso conhecer a centralidade que a Palavra e a palavra detinham no seu modo de ser.
Se quiséssemos ser sintéticos sem faltar à verdade bastaria dizer que o P. Alberto foi um profeta com palavras de poeta.
E não é a verdadeira palavra sempre uma profecia, um poema? Uma profecia na medida que desvela o futuro desejado, querido, e um poema que, dispondo as palavras numa relação inabitual, nos permite voltar a entender as coisas, as pessoas, os lugares e a história de um modo novo nunca antes visto pelos nossos olhos? Não são esses os modos de ser da palavra que é verdadeira palavra?
Não me refiro a este meu pobre balbuciar, mas à verdadeira palavra...

Estamos pois aqui hoje por causa de um homem excepcional que foi nosso amigo. Um homem que viveu intensamente o seu tempo (os seus tempos, pois viveu ao longo da sua vida tempos bem diversos) e sobre quem, mais do que sobre qualquer outro, ouvi gente muito diversa afirmar: “O P. Alberto foi uma das pessoas que em toda a minha vida mais me marcou.” Digo o mesmo.

Uma das virtudes do Alberto de que guardo mais funda recordação é a confiança com que ele encarava a vida, o modo como confiava nas pessoas, a forma como se entregava confiante às tarefas e desafios que fazia seus. Creio que esta confiança espontânea no interlocutor que mal acabara de conhecer explica boa parte da aceitação que sempre teve junto dos jovens.
Mas à confiança natural e imediata nas pessoas, o Alberto juntava a confiança amadurecida, refletida e ponderada. Vale a pena recordar. Quem não participou ativamente na luta contra a ditadura e a guerra colonial tem grande dificuldade em perceber quanto de informal e inorgânico marcou os anos que antecederam o 25 de Abril. Com a perceção de que a abertura marcelista era incapaz de nos conduzir à democracia ou de resolver a questão colonial, muita gente começou a tomar consciência de que o regime estava completamente bloqueado.
Esses primeiros anos da década de setenta viram muitos despertar para a contestação à ditadura. Sobretudo jovens estudantes e gente de sectores católicos. Para não repetir erros e modelos do passado foi preciso desenvolver redes mais ou menos informais disponíveis para se mobilizarem para vários tipos de ações suportadas por organizações tão diversas como as AAEE, os movimentos católicos, as organizações políticas clandestinas, os clubes culturais e as associações de todo o género, etc... E, por causa da forte repressão policial, era preciso não saber muito, ou melhor, era preciso saber o menos possível. Assim se corria menor risco de, sob tortura, revelar nomes e denunciar estruturas.
Neste contexto, houve quem andasse sempre desconfiado e cheio de receios à procura de fantasmas... O Alberto confiava, confiava ativamente, isto é, favorecia o encontro de pessoas para porem de pé ações, iniciativas, atividades dele desconhecidas, mas que confiava serem necessárias. Acreditava sem ver. Via os rostos das pessoas e isso lhe bastava para as ajudar a se encontrarem. Como conhecia imensa gente e gente de todo o tipo deve ter sido das pessoas que mais fios permitiu que se tecessem, ainda que sem os conduzir, dirigir ou orientar. Desse ponto de vista também é verdade dizer que o Alberto era um educador com urgências. Sabia que as pessoas só crescem se lhes forem dadas oportunidades de conhecerem o que ainda não viram. E havia naquele tempo muita pressão para que não se visse... para que as pessoas permanecessem infantilizadas, diminuídas, bonsais de si mesmas. Tudo destinos com os quais o Alberto não contemporizava.

Mas em tudo o Alberto era uma pessoa extremamente livre e libertadora. Nunca foi prisioneiro de nenhum grupo (até em relação ao Sporting mantinha o seu espírito crítico e as suas distâncias). Com todas as interrogações e dúvidas viveu o seu sacerdócio sem qualquer restrição do seu indomável espírito de liberdade. Precisava do seu tempo para si e impunha-se as suas paragens. Ausentava-se e voltava ainda mais alegre, animado e animador. Livre como era só podia ser libertador. Nunca o vi perder tempo a dizer mal de alguém. Com o seu humor era capaz de ser corrosivo e eram intermináveis os serões de risadas até doerem as bochechas em que todos à vez eram fustigados pelo seu olhar contundente. Contudo... era demasiado livre para perder tempo com maledicência!
Tinha uma capacidade única de desafiar cada um, cada uma, para pensar, fazer, responsabilizar-se pelas coisas mais inesperadas. Eram sempre desafios para os quais não nos sentíamos preparados, mas depois vínhamos a perceber que eram os mais justos para nós, para cada um de nós, para aquele ou aquela. A sua liberdade era um contágio de esperança e confiança.

Recordo ainda do Alberto a espantosa capacidade de não aceitar situações fechadas, fatalidades imutáveis, becos sem saída. Digo-o porque vi: ele desenhava portas e janelas nos muros insuperáveis, intransponíveis.
Nos altos muros que naqueles anos nos rodeavam por todos os lados, de forma sufocante. Em muros de todo o tipo. Muros interiores de cada um, de que nem o próprio suspeitava, altas barreiras interpessoais, caducas paredes eclesiais impossibilitando a comunicação e o conhecimento, muros de desconfiança entre grupos, paredes de indiferença, muros da política e da pobreza... Primeiro nomeava-os com a coragem que poucos tinham e depois desenhava neles portas e janelas por onde passarmos. Claro, competia-nos a nós escavar essas portas e janelas com as nossas próprias mãos, mas quem mostrava que seria possível furar e superar os muros da nossa vergonha pessoal, política, social e comunitária era ele mesmo. Nisso, graças ao Alberto, muitos da minha geração vislumbraram a mais nítida aproximação do que será o olhar de Deus sobre o homem, a mulher e o mundo.

Na sua morte chorámos a brutalidade e o absurdo do seu assassinato, chorámos o vazio que nos deixava e a falta que então logo começou a fazer-nos, mas chorámos também pelos nossos filhos e por todas as pessoas que nesse dia perderam a possibilidade de virem a conhecer o Alberto e de por ele serem desafiadas a construir uma vida melhor para si e um mundo mais habitável para todos.

Jorge Wemans

Souto da Casa, 24 de setembro de 2016


Publicação anterior no blogue
Textos da espiritualidade cristã encenados no Mosteiro da Batalha

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