(Este blogue estará com publicações intermitentes nas próximas semanas)
Foto CNS/Paul
Haring, reproduzida daqui
O Papa
Francisco canonizou hoje Madre Teresa de Calcutá, a “santa das sarjetas”. Na
homilia (que pode ser lida em português, na íntegra, aqui), destacou,
sobre o sentido do trabalho da fundadora das Missionárias da Caridade: “A sua
missão nas periferias das cidades e nas periferias existenciais permanece nos
nossos dias como um testemunho eloquente da proximidade de Deus junto dos mais
pobres entre os pobres.”
A acção de
Madre Teresa de Calcutá tem sido posta em causa por vários textos, já desde
antes da sua morte. Um exemplo mais recente disso mesmo é este texto de
Krithika Varagur no Huffington Post,
onde se recordam argumentos para criticar métodos, posições e ideias da
fundadora das Missionárias da Caridade.
Alguns
desses argumentos poderão ser discutidos – a forma como Madre Teresa falava sobre
o aborto, por exemplo –, mas não se pode dizer, como se faz no final do texto,
que ela deixava morrer pessoas doentes. Antes era alguém que pegava em
moribundos que agonizavam nas ruas e no lixo, socorrendo-os e permitia que tivessem uma morte digna, longe da
miséria em que vegetavam. Também se diz que ela será a padroeira de pessoas
brancas, mas não de indianos, esquecendo a popularidade de que ela goza(va) na
Índia, apesar de ser uma freira católica num país maioritariamente hindu.
Noutra
perspectiva, escreveu John Allen Jr., no Crux,
que a principal razão para Madre Teresa ser declarada santa é a sua santidade,
mas que a sua vida “também tem algo a dizer a outros níveis: a misericórdia
tornada prática, a defesa da fé face aos críticos e o papel da mulher na Igreja
católica”. (O texto pode ser lido aqui na íntegra, numa tradução portuguesa; aqui pode ser lido outro texto, em inglês, sobre a importância da santidade de Teresa de Calcutá)
Uma das
notas da vida de Madre Teresa foi a sua continuada dedicação a uma missão de
serviço, apesar de ela própria ter atravessado uma “noite espiritual” e muitas
dúvidas de fé. A seguir reproduzo um texto que publiquei no Público/Ípsilon, em 21 de Março de 2008, exactamente sobre este tema:
Quando Deus se esconde dos que nele acreditam
É possível
ter fé e não sentir Deus na sua vida? Pode amar-se em nome de Deus e viver a
experiência “terrível” de “estar sem Deus”? Madre Teresa de Calcutá parece ter
experimentado isso mesmo. A publicação em português das cartas que ela queria
ver destruídas é pretexto para revisitar a noite espiritual da “santa das
sarjetas” e outras noites espirituais.
Madre Teresa
de Calcutá (1910-1997) viveu, afinal, cinco décadas com dúvidas de fé? A sua
experiência da “noite espiritual”, que só alguns conheciam, foi trazida à luz
do dia com a publicação das suas cartas, em Setembro do ano passado. Reunidas
em Vem, Sê a Minha Luz, as cartas
foram na semana passada publicadas em Portugal (ed. Alêtheia).
Gonxha Agnes
Bojaxhiu, como a futura Madre Teresa foi baptizada, não foi a única, no
interior do cristianismo, a viver a fé sem sentir Deus como experiência
sensível. Uma vivência que vem desde a Bíblia e atravessa os séculos. Há outros
exemplos, de pessoas nada meigas, antes calejadas pela vida: um frade preso e
torturado num convento; uma freira reformadora; um pastor da Igreja Luterana
alemã fuzilado pelos nazis na prisão; uma judia que admirava o cristianismo e
acabou morta em Auschwitz; e, agora, a “santa dos pobres” que ajudava os
miseráveis a morrer depois de lhes retirar do corpo as larvas que os roíam.
A
“escuridão” de que fala a fundadora das Missionárias da Caridade começa após a
decisão de fundar as Missionárias da Caridade, deixando o conforto da
congregação do Loreto e do colégio onde leccionava. Logo em 1937, escreve ela
ao padre Franjo Jambrekovic, seu antigo confessor em Skopje: “Não pense que a
minha vida espiritual é um mar de rosas – que é flor que raramente encontro no
meu caminho. Bem pelo contrário, o mais frequente é ter como companheira a
‘escuridão’.”
Essa
experiência atravessa toda a sua vida. Foi mesmo “uma das suas companheiras
mais regulares”, diz o padre Brian Kolodiejchuck em entrevista ao Ípsilon.
Membro dos Missionários da Caridade, Kolodiejchuck, 51 anos, canadiano com
ascendência ucraniana, é o editor das cartas e postulador da causa de
canonização de Madre Teresa.
“Bem vê,
padre, a contradição que é a minha vida”, escreve Teresa em Abril de 1961, já
depois de a “escuridão” se ter tornado permanente. “Desde 49 ou 50 esta
terrível sensação de perda, esta solidão, esta ânsia permanente de Deus.” É
quase o desespero o que a freira de Calcutá descreve: “No meu coração não há fé
nem amor nem confiança. Há tanta dor, a dor da ânsia. A dor de não ser
querida.”
Deus, que
não se mostra visível nem mesmo a quem crê, joga às escondidas com os seus? Vem
na Bíblia uma experiência assim: “Até quando, Senhor? Esqueceste-me para
sempre? Até quando me esconderás a tua face?”, pergunta o
Salmo 13. Nas Moradas do Castelo Interior,
Teresa d’Ávila (1515-1582), reformadora das carmelitas e referência de Teresa
de Calcutá, diz que esta é uma prova dos escolhidos de Deus: “Muitas vezes Deus
quer que seus escolhidos sintam essa miséria e aparta um pouco o seu favor.”
O
despojamento preenche – ou esvazia – tudo em redor, o próprio Deus torna-se
impotente. Dietrich Bonhoeffer, pastor protestante alemão, fuzilado numa prisão
nazi de Berlim pela sua oposição a Hitler, escrevia em Resistência e Submissão:
“O homem está chamado a sofrer com Deus no sofrimento que o mundo sem Deus
inflige a Deus. Deve viver, pois, realmente, no mundo sem Deus e não lhe é
lícito escamotear, transfigurar religiosamente a sua carência de Deus.”
Deus
torna-se desejo, ardência, sede insaciável. Em Teresa d’Ávila, tal anseio chega
à experiência do êxtase. Em Dostoïevski é causa de grande dor: “Sou filho da
dúvida e da descrença… Que grande sofrimento supôs e supõe esta sede de
acreditar, tanto mais forte quanto mais encontro em mim argumentos contrários…
Foi através do cadinho da dúvida que passou o meu ‘hossana’.”
O irmão
Roger (1915-2005), prior da comunidade ecuménica de monges de Taizé, foi muito
influenciado pela avó, de fé protestante calvinista, que escrevia, após perder
o pai, três irmãos e um filho com tuberculose: “Não sou feita para lutar… Tenho
dúvidas… Ajuda-me! Senhor, nós não somos capazes de perseverar na luta, mas
isso é uma razão para não te abandonarmos, para permanecermos perto de ti.”
Já a
romancista Flannery O'Connor escrevera que “é muito mais duro crer que não
crer”. Uma proposição impopular, dizia Tolentino Mendonça, “para o agnosticismo
prático em que a cultura dominante mergulhou, como para um cristianismo
domesticado por boas intenções e maneirismos, servido por uma estética
viciosamente adocicada, que pretende dar respostas rápidas àquilo que
obviamente não tem resposta”.
“Em momentos
determinantes da experiência religiosa”, acrescentava, “o sussurro é o de um
corpo divino que se atravessa, obscuro e fulgurante, um corpo que se agarra ao
nosso corpo, num combate nocturno, primitivo.”
Será a dúvida o próprio Deus?
Mas essa
sede, essa luta, por vezes a própria dúvida, será já o próprio Deus? O autor
anónimo de A Nuvem do Não Saber, um
dos mais belos textos da mística medieval (século XIV), escrevia que só quando
“a inteligência fracassa é que tem êxito, porque aquilo em que ela falha nada
mais é do que Deus somente”.
A noite
espiritual, a intangibilidade de Deus, é, antes de mais, uma experiência de
solidão. Teresa de Calcutá assim o viveu, durante cinco décadas, e mesmo algumas
das pessoas mais próximas ignoravam em absoluto o turbilhão que lhe atravessava
o interior: “Mesmo as irmãs que viviam com ela diariamente não percebiam o que
se passava”, diz o padre Brian. “Um dia, em Calcutá, li-lhes algumas cartas e
ficaram surpreendidas. Algumas choraram.”
Teresa
d’Ávila já prevenira: “Muitas vezes, Senhor meu, considero que, se com alguma
coisa se pode suportar o viver sem Vós, é na soledade.” Outro espanhol, o poeta
e filósofo Miguel de Unamuno (1864-1936), exprimia-se assim, no poema “A fé e a
noite”: “Sonhei que acabava o sonho/ E acordei. Fazia escuro;/ Não via estrelas
nem lua/ Estava sozinho no mundo.// Voltei para trás o olhar/ Perdi a fé por
não ver;/ Ganhei-a ao olhar em frente/ Pois só se crê no futuro.”
O mesmo
Unamuno descobre que, afinal, Deus está presente num lugar outro: “Está aqui/
Mais dentro de mim que eu mesmo,/ Sim, está aqui/ No divino abismo/ Em que se
espelha a fugidia eternidade”, escrevia em “A invisível presença”.
Escreve o
irmão Roger, de Taizé: “Pode acontecer, surpreendentemente, que cheguemos a
dizer: Jesus ressuscitado estava em mim e eu não sentia nada da sua presença.
Procurei-o muitas vezes noutros sítios. Enquanto fugia das fontes por ele
depositadas no mais profundo do meu ser, podia ir longe, muito longe, mas
perdia-me em caminhos sem saída. Parecia impossível encontrar em Deus uma
alegria.”
Mesmo
escondido, Deus, afinal, revela-se, está lá. Tolentino Mendonça afirmava: “É,
assim, uma aproximação pelas trevas, pela noite mais escura. (…) Não se trata
apenas de reconhecer a insuficiência do dizer humano, mas a profundidade
indizível, o nomadismo infatigável, o afundamento numa realidade radicalmente
outra.” Angelus Silesius (1624-1677), místico alemão, escrevia: “Vai onde não
possas/ vê onde não vês:/ escuta onde nada ressoa/ e assim estarás onde Deus
fala”,
A ausência
de Deus torna-se presença na mais íntima intimidade. Etty Hillesum foi uma das
muitas mulheres judias que morreu em Auschwitz. No seu diário (que será
finalmente publicado em breve em Portugal), descoberto há duas décadas como uma
extraordinária revelação, escrevia assim, em 26 de Agosto de 1941: “Há em mim
um poço muito profundo. E nesse poço está Deus. Às vezes, consigo chegar a ele,
mas o mais frequente é que as pedras e escombros obstruam o poço e Deus fique
sepultado. Então é necessário voltar a trazê-lo à luz.”
Esta
preocupação de Etty, que morreu antes de completar 30 anos, iria ela
expressá-la de outra maneira quase um ano depois, a 12 de Julho de 1942: “Vou
ajudar-te, meu Deus, a não te apagares em mim, mas não posso garantir-te nada
adiantado. No entanto, há uma coisa que se me apresenta cada vez com maior
claridade: não és tu quem pode ajudar-nos, mas somos nós quem podemos ajudar-te
a ti e, ao fazê-lo, ajudar-nos a nós mesmos.”
A mesma
experiência que, afinal, Madre Teresa foi fazendo. A par da escuridão, uma
grande certeza de que o trabalho que escolhera para a sua vida era o lugar onde
encontrava Deus. Numa carta de Junho de 1961, ela dizia que, apesar da
“escuridão muito profunda” e da “dor muito grande”, fizera o propósito de
manter “um caloroso ‘sim’ a Deus, um grande ‘sorriso’ para toda a gente”.
Brian
Kolodiejchuk não tem dúvidas de que o que Teresa de Calcutá identificava como a
maior pobreza contemporânea – não ser amado, não ser querido, não ser cuidado,
sentir-se rejeitado – era também o que ela sentia na sua relação com Deus. E
uma forma de “partilhar a pobreza daqueles a quem ajudava”. Com Jesus, ela
nunca deixava de se sentir enamorada, tratando-o muitas vezes por esposo – na
linha do que também fizera Teresa d’Ávila.
Na
apresentação do livro, dizia Tolentino Mendonça: “O amor está sempre a ser
proposto e reproposto: nunca é construção terminada. Há um ritmo incessante de
movimentos, quase vertiginoso em alguns momentos. O amor faz dos enamorados
nómadas, buscadores e mendigos. Todo o diálogo de amor é uma conversa entre
mendigos: não entre gente que sabe, mas entre quem não sabe; não entre gente
que tem, mas entre quem nada retém.”
Sim, Madre
Teresa queria ser santa, diz o padre Brian ao Ípsilon. “Não uma santa
canonizada” no Vaticano, mas alguém em quem “as outras pessoas vissem Jesus”.
Escreveu Madre Teresa em Março de 1962: “Se alguma vez vier a ser santa, serei
com certeza uma santa da ‘escuridão’.”
Referências bibiográficas
Vem, Sê a Minha Luz – Os Escritos Privados da
santa de Calcutá, ed. Alêtheia
Teresa de
Jesus, Obras Completas, ed. Carmelo
S. João da
Cruz, Poesias Completas, ed. Assírio
& Alvim
Miguel de
Unamuno, Creio do Futuro, ed. AO –
Apostolado da Oração
Irmão Roger
de Taizé, Deus Só Pode Amar, ed.
Gráfica de Coimbra
Angelus
Silesius, A Rosa é Sem Porquê, ed.
Vega
Anónimo, A Nuvem do Não-Saber, ed. Assírio &
Alvim
Dietrich
Boenhoeffer, Escritos Esenciales, ed.
Sal Terrae (Espanha)
Etty
Hillesum, Diário e Cartas, ed. Assírio e Alvim
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