“Tudo coberto excepto os seus olhos: que cultura cruel dominada pelo homem;
- Nada coberto excepto os seus olhos: que cultura cruel dominada pelo homem.”
(ilustração reproduzida daqui)
“A persistência do quadro
teológico-político como um horizonte nunca ultrapassado deixa perceber as
razões pelas quais o conceito de laicidade está completamente armadilhado”,
escreve António Guerreiro, no Público
de sexta-feira passada. O texto reproduz-se a seguir:
O secularismo republicano francês,
fixado com força de lei no conceito jurídico-político da laicidade, que
institucionaliza a separação entre o Estado e a religião, consagra logicamente
“a defesa da liberdade de consciência individual contra todo o proselitismo” e,
por conseguinte, a proibição de “signos religiosos ostensivos” na esfera
pública. O princípio da laicidade é o da universalização da cidadania
republicana de modo a anular o comunitarismo e os seus efeitos de segregação.
Assim, ordem temporal, o saeculum, e
ordem intemporal, a religião, devem manter-se estritamente separados.
A laicidade francesa visa a
formação de uma cidadania esclarecida que responda à injunção iluminista do
“ousar saber” e do uso público da razão. Entendida nesta perspectiva, a
laicidade opõe-se a um multiculturalismo que reforça o poder regressivo do
dever de pertença étnico-religiosa. Quando se passa desta dimensão teórica da
laicidade para os desafios reais – sociais e políticos – com que ela se
confronta, as coisas complicam-se bastante, como sabemos. A verdade é que a
laicidade francesa, que no seu princípio visa a neutralização da afirmação
religiosa em tudo o que é tutelado pelo Estado, se tornou a ideologia de uma
república obcecada com o religioso, praticando uma espécie de teologia política
negativa que instaura o religioso como categoria separada.
A noção de laicidade transporta
consigo a sombra daquilo que quer negar, tal como a noção, usada por Habermas,
de sociedade pós-secular. Porém, Habermas indicou explicitamente essa sombra,
em vez de recalcá-la, desenvolvendo a ideia de que essa designação – a de
“sociedade pós-secular” – supõe que a religião continua a afirmar-se num
ambiente secular. A categoria de laicidade faz parte de um léxico
constitutivamente teológico-político, está vinculada precisamente ao que ela
quer subtrair. E essa contradição no plano teórico transfere-se para o plano
pragmático, manifesta-se na realidade. A teologia política e a teologia
económica determinam as regras do nosso tempo e do mundo em que vivemos. E a
máquina teológico-política continua a funcionar a toda a velocidade, por mais
que a modernidade tenha colocado grãos de areia na engrenagem.
Uma manifestação desta vitalidade
pode ser vista na recente proliferação de livros e de debates filosóficos,
tanto na Europa como nos Estados Unidos, sobre a teologia política. Nunca a
afirmação com que Carl Schmitt abre um capítulo da sua “teologia política”
tinha sido tão citada e glosada: “Todos os conceitos pregnantes da teoria
moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados”; nunca o fragmento de
Walter Benjamin sobre O Capitalismo como
Religião – onde se diz que o capitalismo é uma religião culpabilizante e um
culto contínuo sem interrupções nem feriados – foi tão lido; nunca a relação semântica
entre débito e culpa, que se encontra na tese de Max Weber sobre a ascese
protestante da origem do capitalismo, foi tão actualizada. É evidente que o
conceito de teologia política tem significados diferentes, conforme os autores:
tanto é a legitimação religiosa do poder como a força política da religião,
tanto é a influência do teológico sobre o político (segundo a tese de Schmitt),
como a influência do político sobre o religioso (segundo a tese de Jan Assmann,
um outro nome importante nesta questão).
Seja como for, a persistência do
quadro teológico-político como um horizonte nunca ultrapassado deixa
perceber as razões pelas quais o conceito de laicidade está completamente
armadilhado. E a prova está à vista.
Publicação anterior
Com o erro se aprende - comentário de Vítor Gonçalves aos textos da liturgia católica de Domingo
1 comentário:
Precisamos de modelos fundamentais e não apenas de constatações (Schmitt) ou de descrições justificativas ou mesmo legitimizadoras, assentes em teleologias (Benjamin e Weber). A Filosofia e as Ciências Sociais deixam-me muitas vezes incomodado por esta insuficiência de fundamentos. Espero que se lá chegue. Entretanto, se pensarmos que aquilo que está sob a capa definidora de "capitalismo" inclui átomos - iniciativa, inovação, racionalização (detesto o termo, mas falta-me melhor neta altura) de recursos, mesmo uma putativa ética própria (para que Max Weber não rebole na sepultura) e reprodução de dinheiro - posso dizer que, a menos da reprodução do dinheiro, tudo o resto não é exclusividade do capitalismo. O capitalismo "democratizou" a reprodução do dinheiro e o arquétipo inerente "success to the successful" (por alguns designado por acumulação do capital), curiosamente desfeito/refeito por vários fenómenos, incluido quando uma massa crítica, socialmente inaceitável, é atingida.
Sobre a laicidade e a religião, os tribalismos têm de ser cuidadosamente assimilados e uniformizados, por mecanismos multipolares, mas não unificados, para que a diversidade cultural se liberte das simbólicas do poder social e político.
(artigos destes fazem-me escrever coisas destas)
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