terça-feira, 20 de setembro de 2016

Estrasburgo, a cidade onde católicos recebem monges budistas

No dia em que, em Assis, se reúnem líderes religiosos num encontro pela paz no mundo, trago aqui o exemplo de Estrasburgo, num texto publicado no DN de domingo passado. 

Estrasburgo é uma das capitais europeias do diálogo inter-religioso, com mais de 40 grupos que reúnem crentes de diferentes tradições e dezenas de iniciativas anuais. No fim-de-semana, o Dalai Lama esteve na cidade, e os budistas foram acolhidos por pessoas de outros credos, um dos exemplos da convivência inter-religiosa da cidade.


Lilia Bensedrine (muçulmana), Salomon Levy (judeu), Etienne Uberall 
(padre católico) Danielle Mathieu (católica e protestante): 
quatro dos responsáveis pela dinâmica inter-religiosa de Estrasburgo e Alsácia

Monique Karleskind, 55 anos, acolhe este fim de semana em sua casa, em Estrasburgo (França), uma monja budista de 61 anos, belga de origem a residir na Normandia (noroeste de França). Este é um dos exemplos da convivência entre religiões que se verifica em Estrasburgo, cidade-sede do Parlamento Europeu, onde o Dalai Lama está este fim-de-semana num encontro com largas centenas de budistas, sobretudo oriundos de regiões de França e Alemanha.
“Acolhemo-la porque a amizade entre pessoas de diferentes religiões é importante para nós”, diz ao DN, sobre as suas motivações, bem como as de Alain, 55 anos, e do filho Louis, 20 (as duas filhas do casal vivem no estrangeiro). Professora de economia e marketing numa escola de turismo, Monique é católica e participa nas actividades da sua paróquia. Mas a diversidade religiosa faz parte do dia-a-dia: o marido é protestante mas sem prática religiosa, o filho é crente mas não está ligado a qualquer igreja, uma parte da família próxima converteu-se ao islão. “Somos obrigados a praticar o diálogo em numerosas ocasiões”, diz.
Já tinham tido uma boa experiência: há três anos, a família acolheu jovens que participaram no encontro europeu promovido pela comunidade de Taizé (sudeste de França), que reúne monges católicos e protestantes. “Temos a sorte de viver numa cidade muito viva, espiritualmente, com muitas ocasiões para encontrar outras sensibilidades religiosas.” Na paróquia, há ainda um grupo inter-religioso, que reúne católicos, protestantes, judeus e muçulmanos, um dos muitos que existem na região (ver caixa).
Também à espera de acolher uma monja budista, Marianne Boudet, 75 anos, católica, viúva de um primeiro casamento, actualmente com um marido muçulmano, foi surpreendida à última hora com a notícia de que a sua hóspede já não poderia vir. De qualquer modo, ficou a convicção: “É importante, ainda mais hoje, abrir-se às outras religiões ou filosofias sem espírito de rivalidade. Conhecer-se, compreender-se e estimar-se, simplesmente enquanto seres humanos.”
A convivência entre pessoas de diferentes convicções e tradições faz de Estrasburgo uma das capitais europeias do diálogo inter-religioso. A par de outras cidades como Assis, onde terça-feira o Papa se encontra com líderes de todas as grandes religiões do mundo.
Tal como Monique, Danielle Mathieu vive a diversidade: católica, de ascendência protestante e judaica, é casada com um pastor da Igreja Protestante Unida de França. Ao lado, a muçulmana Lilia Bensedrine, que com ela trabalha em vários grupos inter-religiosos, ouve toda a história e pergunta: “Mas és católica ou protestante?” Danielle, professora numa escola técnica, diz a rir que nem sempre a resposta é fácil. Jurista, Lilia conclui: “Tu trazes contigo o ecumenismo e o diálogo.”

A dinâmica inter-religiosa em Estrasburgo e na Alsácia nasceu muito após os atentados de 11 de Setembro de 2001 e da profanação de vários cemitérios judaicos, em França. “O que procuramos é perceber o que outros vivem: quando uma religião experimenta um acontecimento grave, como um atentado ou uma profanação, todos nos sentimos atingidos”, diz o padre Uberall. Mas também se experimenta a capacidade de viver positivamente, como o acolhimento aos jovens de Taizé, há três anos, ou dos budistas, este fim-de-semana.
Começa por haver o problema de aceitação das diferenças no interior de cada comunidade, diz Etienne Uberall. “Se mudarmos da igreja para a mesquita, é a mesma coisa”, acrescenta Lilia, filha de um muçulmano tunisino que esteve em Assis, com João Paulo II, por duas vezes, nos encontros inter-religiosos promovidos pelo Papa Wojtyla. “Muitas vezes, não se aceita o outro por não ser puro em alguma coisa, mas é a Deus que cabe julgar, não a nós.”

“Também temos medo”

O conhecimento pessoal, a amizade, o encontro informal são uma etapa inicial. Para, diz Salomon Levy, “desmistificar o outro, perceber que não há nele nada de misterioso”. Conta, a propósito, que um dia alguém lhe dissera nunca ter visto um judeu. “Tem um diante de si”, respondeu.
Lilia Bensedrine, a quem também já disseram ser a primeira muçulmana que encontravam “ao vivo”, pensa que “o encontro reduz preconceitos”. A propósito do terrorismo, pergunta: “A quem podemos dizer os nossos medos? Nós, muçulmanos, também temos medo, por isso entendo os medos dos outros.”
A etapa seguinte é a do diálogo sobre convicções de fé, modos de entender Deus e os textos sagrados. “O diálogo obriga-me a aprofundar a identidade e a dizer no fim: que sorte conhecer diferentes experiências”, afirma Danielle Mathieu. Salomon Levy dá um exemplo: “No judaísmo, nós interpelamos Deus directamente. No islão, isso é inconcebível. No cristianismo, é possível, mas de modo menos vigoroso que entre os judeus.”
Percebe-se a cumplicidade entre os quatro. Danielle lamenta a pouca atenção mediática a estas dinâmicas. O padre Etienne lastima que as gerações mais novas não se envolvam tanto nelas quanto desejaria. Salomon brinca com uma das diferenças: “Para nós, a vinda do Messias será quando toda a gente reconhecer Deus. Podemos dizer que o cristianismo e o islão são duas etapas da vinda do Messias.” Lilia insiste que são as ignorâncias que separam, não as religiões. E que o terrorismo “é terrível, porque cria medos que criam muros”.

Mais de 40 grupos, calendários, cinema, jardins...


São mais de 40 os grupos que reúnem crentes de diferentes religiões, em Estrasburgo e na Alsácia. Alguns dos seus responsáveis são Danielle Mathieu, protestante, Lilia Bensedrine, muçulmana de origem tunisina, o padre Etienne Uberall, responsável católico para as relações com os muçulmanos, e Salomon Levy, presidente da Sinagoga judaica, médico e professor na Faculdade de Medicina. As iniciativas incluem encontros, debates, uma mediateca, concertos, a edição de um calendário inter-religioso anual, semanas de cinema árabe, cultura judaica e islamo-cristãs, e a criação de jardins inter-religiosos como o de Saverne. 


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Os responsáveis do Daesh podem estar junto de Deus? - o primeiro dia do encontro inter-religioso de Assis


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