No dia em que, em Assis, se reúnem líderes religiosos num encontro pela paz no mundo, trago aqui o exemplo de Estrasburgo, num texto publicado no DN de domingo passado.
Estrasburgo é uma das capitais europeias do diálogo inter-religioso,
com mais de 40 grupos que reúnem crentes de diferentes tradições e dezenas de
iniciativas anuais. No fim-de-semana, o Dalai Lama esteve na cidade, e os
budistas foram acolhidos por pessoas de outros credos, um dos exemplos da
convivência inter-religiosa da cidade.
Lilia Bensedrine (muçulmana), Salomon Levy (judeu), Etienne Uberall
(padre católico) e Danielle Mathieu (católica e protestante):
quatro dos responsáveis pela dinâmica inter-religiosa de Estrasburgo e Alsácia
Monique Karleskind, 55 anos,
acolhe este fim de semana em sua casa, em Estrasburgo (França), uma monja
budista de 61 anos, belga de origem a residir na Normandia (noroeste de
França). Este é um dos exemplos da convivência entre religiões que se verifica
em Estrasburgo, cidade-sede do Parlamento Europeu, onde o Dalai Lama está este
fim-de-semana num encontro com largas centenas de budistas, sobretudo oriundos
de regiões de França e Alemanha.
“Acolhemo-la porque a amizade
entre pessoas de diferentes religiões é importante para nós”, diz ao DN, sobre
as suas motivações, bem como as de Alain, 55 anos, e do filho Louis, 20 (as duas
filhas do casal vivem no estrangeiro). Professora de economia e marketing numa escola de turismo,
Monique é católica e participa nas actividades da sua paróquia. Mas a
diversidade religiosa faz parte do dia-a-dia: o marido é protestante mas sem
prática religiosa, o filho é crente mas não está ligado a qualquer igreja, uma
parte da família próxima converteu-se ao islão. “Somos obrigados a praticar o
diálogo em numerosas ocasiões”, diz.
Já tinham tido uma boa
experiência: há três anos, a família acolheu jovens que participaram no
encontro europeu promovido pela comunidade de Taizé (sudeste de França), que
reúne monges católicos e protestantes. “Temos a sorte de viver numa cidade
muito viva, espiritualmente, com muitas ocasiões para encontrar outras sensibilidades
religiosas.” Na paróquia, há ainda um grupo inter-religioso, que reúne
católicos, protestantes, judeus e muçulmanos, um dos muitos que existem na
região (ver caixa).
Também à espera de acolher uma
monja budista, Marianne Boudet, 75 anos, católica, viúva de um primeiro
casamento, actualmente com um marido muçulmano, foi surpreendida à última hora
com a notícia de que a sua hóspede já não poderia vir. De qualquer modo, ficou
a convicção: “É importante, ainda mais hoje, abrir-se às outras religiões ou
filosofias sem espírito de rivalidade. Conhecer-se, compreender-se e
estimar-se, simplesmente enquanto seres humanos.”
A convivência entre pessoas de
diferentes convicções e tradições faz de Estrasburgo uma das capitais europeias
do diálogo inter-religioso. A par de outras cidades como Assis, onde
terça-feira o Papa se encontra com líderes de todas as grandes religiões do
mundo.
Tal como Monique, Danielle Mathieu
vive a diversidade: católica, de ascendência protestante e judaica, é casada
com um pastor da Igreja Protestante Unida de França. Ao lado, a muçulmana Lilia
Bensedrine, que com ela trabalha em vários grupos inter-religiosos, ouve toda a
história e pergunta: “Mas és católica ou protestante?” Danielle, professora
numa escola técnica, diz a rir que nem sempre a resposta é fácil. Jurista,
Lilia conclui: “Tu trazes contigo o ecumenismo e o diálogo.”
A dinâmica inter-religiosa em
Estrasburgo e na Alsácia nasceu muito após os atentados de 11 de Setembro de
2001 e da profanação de vários cemitérios judaicos, em França. “O que
procuramos é perceber o que outros vivem: quando uma religião experimenta um
acontecimento grave, como um atentado ou uma profanação, todos nos sentimos
atingidos”, diz o padre Uberall. Mas também se experimenta a capacidade de viver
positivamente, como o acolhimento aos jovens de Taizé, há três anos, ou dos
budistas, este fim-de-semana.
Começa por haver o problema de
aceitação das diferenças no interior de cada comunidade, diz Etienne Uberall.
“Se mudarmos da igreja para a mesquita, é a mesma coisa”, acrescenta Lilia,
filha de um muçulmano tunisino que esteve em Assis, com João Paulo II, por duas
vezes, nos encontros inter-religiosos promovidos pelo Papa Wojtyla. “Muitas
vezes, não se aceita o outro por não ser puro em alguma coisa, mas é a Deus que
cabe julgar, não a nós.”
“Também temos medo”
O conhecimento pessoal, a amizade,
o encontro informal são uma etapa inicial. Para, diz Salomon Levy,
“desmistificar o outro, perceber que não há nele nada de misterioso”. Conta, a
propósito, que um dia alguém lhe dissera nunca ter visto um judeu. “Tem um
diante de si”, respondeu.
Lilia Bensedrine, a quem também já
disseram ser a primeira muçulmana que encontravam “ao vivo”, pensa que “o
encontro reduz preconceitos”. A propósito do terrorismo, pergunta: “A quem
podemos dizer os nossos medos? Nós, muçulmanos, também temos medo, por isso
entendo os medos dos outros.”
A etapa seguinte é a do diálogo
sobre convicções de fé, modos de entender Deus e os textos sagrados. “O diálogo
obriga-me a aprofundar a identidade e a dizer no fim: que sorte conhecer
diferentes experiências”, afirma Danielle Mathieu. Salomon Levy dá um exemplo:
“No judaísmo, nós interpelamos Deus directamente. No islão, isso é
inconcebível. No cristianismo, é possível, mas de modo menos vigoroso que entre
os judeus.”
Percebe-se a cumplicidade entre os
quatro. Danielle lamenta a pouca atenção mediática a estas dinâmicas. O padre
Etienne lastima que as gerações mais novas não se envolvam tanto nelas quanto
desejaria. Salomon brinca com uma das diferenças: “Para nós, a vinda do Messias
será quando toda a gente reconhecer Deus. Podemos dizer que o cristianismo e o
islão são duas etapas da vinda do Messias.” Lilia insiste que são as
ignorâncias que separam, não as religiões. E que o terrorismo “é terrível,
porque cria medos que criam muros”.
Mais de 40 grupos, calendários,
cinema, jardins...
São mais de 40 os grupos que
reúnem crentes de diferentes religiões, em Estrasburgo e na Alsácia. Alguns dos
seus responsáveis são Danielle Mathieu, protestante, Lilia Bensedrine,
muçulmana de origem tunisina, o padre Etienne Uberall, responsável católico
para as relações com os muçulmanos, e Salomon Levy, presidente da Sinagoga judaica,
médico e professor na Faculdade de Medicina. As iniciativas incluem encontros,
debates, uma mediateca, concertos, a edição de um calendário inter-religioso
anual, semanas de cinema árabe, cultura judaica e islamo-cristãs, e a criação
de jardins inter-religiosos como o de Saverne.
Publicação anterior
Os responsáveis do Daesh podem estar junto de Deus? - o primeiro dia do encontro inter-religioso de Assis
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