Texto de Rui Pedro Vasconcelos
A publicação, no nosso contexto, de uma obra clássica da Tradição cristã – neste caso de Santo Agostinho – representa um acontecimento a registar. Agora, o leitor recebe nas suas mãos dois opúsculos de Agostinho de Hipona, escritos respetivamente em 395 e 420 d. C., sobre a temática da mentira. O primeiro opúsculo, A Mentira, adquire uma linguagem formal e académica, própria das investigações do autor na área da filosofia e da ética; já o segundo opúsculo, Contra a Mentira, consiste numa carta dirigida a um cristão, Consêncio, como resposta a dúvidas levantadas por este sobre a legitimidade de usar a mentira e táticas semelhantes para infiltrar grupos considerados heréticos, como os priscilianistas (movimento de caráter espiritual e popular muito influente na Península Ibérica ao longo dos séculos IV e V, fundado por Prisciliano, bispo de Ávila). Em ambos os opúsculos, Agostinho é perentório: a mentira nunca é, em caso algum, um meio legítimo de evangelização ou anúncio da verdade.
Agostinho procura responder a uma ampla corrente, oriunda da filosofia grega e difundida em significativos autores cristãos da época, segundo a qual a mentira poderia ser justificada em determinadas situações ou de acordo com a intenção de quem a proferisse. Agostinho defende que, podendo em alguns casos ser um mal menor ou leve, a mentira nunca é um bem ou um meio que se justifique, independentemente do fim – seja perseguir a verdade com a mentira ou defender a vida com o falso testemunho. Os mártires elevam-se como baluartes desta integridade da linguagem. Como é bem referido por José Maria Silva Rosa na sua Introdução à obra, a reflexão de Agostinho transporta-nos, hoje, para a natureza do discurso político. Um livro exigente, graças ao qual o leitor se aproximará da sua própria linguagem no comum dos dias.
São muitos os temas aos quais o pensamento de Agostinho conduziu ao paradoxo: o pecado original, perseguição por motivos religiosos (que Agostinho chega a justificar, quando o perseguidor é cristão) ou a separação dos poderes político e religioso. Mas a força paradoxal do seu pensamento advém, sem dúvida, quer do seu próprio percurso pessoal (numa busca atribulada e apaixonada da verdade), quer do contexto em que viveu (da destruição de Roma à chegada das tribos vândalas a Hipona). Trata-se de uma linguagem de urgência, da necessidade de respostas fortes e fundantes para as situações de crise nas quais os cristãos viviam. Pode, a esta luz, a leitura destes dois opúsculos éticos sobre a mentira transportar-nos para um tema difícil, que nos acompanha e que Agostinho, felizmente, não se furtou a aprofundar. Sempre como uma palavra penúltima.
«São muitos os géneros de mentira e nós devemos odiá-los a todos. De facto, não há mentira que não seja contrária à verdade. Efectivamente, assim como a luz e as trevas, a piedade e a impiedade, a justiça e a injustiça, a má acção e o bem agir, a saúde e a doença, a vida e a morte, assim são entre si contrárias a verdade e a mentira» (Contra a Mentira, 3,4).
(Este texto retoma, com alguns acrescentos, um artigo publicado na edição de Julho da revista Mensageiro de Santo António.)
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