Esta foto de Ivan Alavarado/Reuters/CNS (reproduzida daqui) é mais um sinal dos sentimentos
de “raiva, nojo, náusea, horror e traição” que atingem fiéis católicos por todo o mundo:
dia 25 de Julho, numa missa na catedral de Santiago do Chile,
uma mulher segura um cartaz onde diz: “Não mais bispos encobridores”.
No Expresso Diário de quinta-feira, dia 16, publiquei um texto sobre os abusos sexuais por membros do clero em seis dioceses da Pensilvânia (Estados Unidos):
(...) um relatório de 1356 páginas regista 300 casos supostos de “padres depredadores” sexuais em seis dioceses, que vitimaram pelo menos mil crianças e adolescentes, entre 1947 e o início deste século.
O padre jesuíta Thomas Reese, do Catholic News Service, uma das vozes que tem defendido a abertura de arquivos e a tolerância zero para com estes casos, afirmou que o documento deve ser um “alerta” para outras dioceses: os responsáveis devem contratar investigadores externos para averiguar tudo o que se passou até hoje e publicar os resultados.
Naquele que é talvez o comentário mais certeiro ao caso, Reese acrescentou, citado pelo jornal digital Crux: “Muitos bispos pensam: ‘Isto aconteceu antes de eu chegar aqui, lamento que tenha acontecido, mas já mudámos os procedimentos e já não está a acontecer.’” O problema, acrescenta, é que não se averiguou toda a sujidade, ao mesmo tempo. Se isso tivesse sido feito “não estaríamos a ser mortos com mil golpes”. O relatório da Pensilvânia é apenas mais um, depois de outros. “É a mesma história em todos os lugares.”
(o texto pode continuar a ser lido aqui)
Como seria de esperar, o caso está a levantar uma avassaladora onda de reacções. A mais forte, até ao momento, será o apelo lançado por centena e meia de teólogos, educadores e leigos responsáveis de instituições católicas, que fizeram um apelo a que todos os bispos dos EUA apresentassem a sua resignação ao Papa Francisco, tal como fizeram, em Maio, os 34 bispos do Chile.
O apelo foi lançado sexta-feira mas, nesta tarde de sábado, o número de signatários já ia em mais de 700. “Hoje, pedimos aos bispos católicos dos Estados Unidos que orem e genuinamente considerem submeter ao Papa Francisco a sua renúncia colectiva como um acto público de arrependimento e lamento diante de Deus e do povo de Deus”, lê-se num texto publicado ontem mesmo, sexta-feira, em inglês e espanhol no blogue Daily Theology e noticiado pelo National Catholic Reporter (NCR).
Este seria “o primeiro de muitos passos para chegar à justiça, à transparência e à conversão” e só depois poderá começar o doloroso trabalho de cura, acrescenta o texto.
Num editorial do mesmo NCR, com o título O corpo de Cristo deve reclamar a nossa Igreja, a prestigiada publicação católica alinha pelo mesmo tom muito crítico, defendendo uma urgente Reforma da Igreja. O texto começa por escrever que “raiva e nojo não parecem palavras suficientemente fortes” para definir o que se está a passar e soma três palavras: “Náusea? Horror? Traição?”
O editorial acrescenta, depois: “As revelações dos últimos dois meses tornam inegavelmente claro que é a hora de os leigos reclamarmos que esta Igreja nos pertence. Nós somos o corpo de Cristo, nós somos a Igreja. É tempo de exigirmos que os bispos assumam as suas verdadeiras vocações como servos do povo de Deus. E eles devem viver desse modo. ”
Dizer duas coisas aos bispos
No texto, admite-se que os leigos, neste momento, podem “fazer muito pouco” para provocar as mudanças necessárias nas “grandes questões” que afligem a Igreja – “carreirismo, abuso de poder, falta de transparência, nenhuma prestação de contas”. Os leigos têm pouco poder, diz o editorial, mas a raiva deve ser transformada em “determinação” e na exigência de mudanças claras.
Duas coisas têm de ser ditas aos bispos, escreve-se no texto: a primeira é que os leigos não confiam “mais neles, individual ou colectivamente”, já que a confiança “está destruída”. A segunda é que, para recuperar a confiança, é necessária uma “reforma no funcionamento da Igreja como instituição”.
O editorial, especialmente cáustico, acrescenta que os leigos devem exigir a participação total em “todas as comissões e grupos de estudo”, bem como uma transparência total em tudo o que fizerem os comités e grupos que a Conferência dos Bispos Católicos venha a criar para enfrentar o problema. A mesma exigência de participação laical deve ser estendida a quaisquer tribunais, conselhos ou equipas visitadoras e não limitar-se a meras “funções consultivas”: “Se a lei canónica não permite o envolvimento dos leigos que pretendemos, respondemos: mude-se a lei.”
Também as mulheres – incluindo mulheres religiosas – deverão ter um papel decisivo, com representação paritária nos organismos de investigação ou nos tribunais. O Vaticano investigou há poucos anos as posições da Conferência de Superioras das Congregações Religiosas, recorda o editorial. Se o esforço tivesse sido dedicado a “limpar a casa de bispos e padres abusadores ou cúmplices” talvez a Igreja estivesse a curar-se do “cancro de abuso sexual que enfraquece a Igreja entre os seus seguidores e corrói a sua posição moral no mundo”.
O que hoje acontece, acrescenta o texto, “resultou da falta de responsabilidade dos bispos e superiores religiosos”. Qualquer católico tem o direito de questionar o seu bispo, um superior maior, o núncio apostólico, os dicastérios apropriados em Roma, até mesmo o Papa”. O problema é que a falta de transparência continua: “Sabemos, por exemplo – diz o NCR– que os funcionários da Congregação para a Doutrina da Fé se recusaram a enviar agradecimentos por terem recebido cartas de vítimas de abuso sexual de clérigos. Tal atitude perpetua uma cultura de impunidade que deve mudar.” Acrescente-se que o National Catholic Reporterfoi pioneiro na divulgação de casos de abusos, na década de 1990, muito antes ainda do Boston Globe com os casos que deram origem ao filme Spotlight.
“Isto afecta-nos a todos, o povo de Deus. É mais do que tempo de nós, os leigos, exigirmos mais dos nossos líderes da Igreja.”, conclui o texto.
“Do coração de uma Igreja ferida”
Na declaração divulgada no Daily Theology, lê-se: “Vemo-nos ajoelhados em repulsa e vergonha pelas abominações que estes padres cometeram contra crianças inocentes. Estamos enojados de igual maneira pela conspiração de silêncio entre os bispos que exploraram as feridas das vítimas como garantia de autoprotecção e preservação do poder. Está claro que foi a cumplicidade dos poderosos que permitiu que este mal radical florescesse com impunidade.”
O alcance geográfico da crise de abusos nos Estados Unidos parece ultrapassar o do Chile, que provocou o pedido de demissão de todos os bispos e a aceitação, para já, de três deles. “Depois de anos de verdades reprimidas, a decisão sem reservas das demissões dos bispos chilenos transmitiu aos fiéis uma mensagem que os fiéis nos Estados Unidos ainda não escutaram.”
O texto admite que muitos bispos são “servos humildes e pastores bem intencionados”. Mas a “escala catastrófica e a magnitude histórica do abuso deixam claro que este não é um caso de ‘algumas maçãs podres’, mas uma injustiça sistémica manifestada em todos os níveis da Igreja”, que não se resolve através da boa vontade individual” nem se cura com “declarações, investigações internas ou campanhas de relações públicas, mas através da responsabilidade colectiva, a transparência e a verdade”.
Para acabar com esta “epidemia catastrófica” é preciso uma mudança estrutural “previamente inimaginável”. Investigações externas, verdade e arrependimento, são passos necessários, a par da demissão colectiva, como “acto público de penitência, sem o qual não pode começar nenhum processo genuíno de cura e reforma”.
Os primeiros signatários do documento apresentam-se com um incisivo “Somos os baptizados”: professores de escolas católicas, colégios e universidades, funcionários de paróquias, casas de retiros e serviços diocesanos, músicos litúrgicos, catequistas, funcionários pastorais, responsáveis de grupos de crianças e jovens, capelães, estudantes, bibliotecários e investigadores, “mães e pais, tias e tios, filhos e filhas e religiosos consagrados”. Manifestam-se profundamente solidários com as milhares de pessoas vítimas de abusos, muitas das quais caíram no alcoolismo ou na droga, que acabaram com doenças mentais ou se suicidaram.
Para que não haja dúvidas de linguagem, dizem ainda: “O apelo que emitimos hoje não é liberal nem conservador. Não surge de uma facção ou ideologia em particular, mas do coração de uma Igreja ferida. É uma expressão de fidelidade às vítimas, a Jesus Cristo, à Igreja a cujo serviço dedicamos as nossas vidas.”
(Mais informação:)
O texto do padre Thomas Reese a que se faz referência no início pode ser lido aqui numa tradução em português.
Aqui, pode ler-se o editorial de Lucetta Scaraffia no L’Osservatore Romano sobre o papel dos média e os abusos.
Sobre o papel do cardeal Sodano e o significado da responsabilização, pode ler-se aqui uma análise de John Allen Jr., do Crux (aqui o texto original em inglês)
Sobre as decisões dos bispos dos EUA após a divulgação do relatório da Pensilvânia – uma “crise espiritual e catástrofe moral” – pode ler-se aqui a tradução da declaração do cardeal Daniel Di Nardo, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA.
E será isto tudo demasiada informação sobre um caso que não o merece? Luis Badilla, no Il Sismografo, explica porque essa ideia é errada, num texto cuja tradução para português pode ser lida aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário