sexta-feira, 3 de abril de 2015

A cruz, sinal do desarmamento divino, símbolo de Deus ‘todo-amoroso’

Primeiro identificativo cristão era um peixe desenhado com dois traços



Marc Chagall, Ressurreição
óleo sobre tela, 1937-1948
(ilustração reproduzida daqui)

No princípio, não era a cruz. O primeiro e grande símbolo dos cristãos foi um peixe desenhado com apenas dois arcos cruzados. O sinal remetia para a actividade piscatória que envolvera boa parte dos discípulos de Jesus. Ao mesmo tempo, a palavra grega para designar peixe, ictus, correspondia ao anagrama de Iesus (Jesus) Christos (Cristo) Theou (Deus) Uios (Filho) Soter (Salvador).
Com o tempo, a cruz foi tomando o lugar desse identificativo inicial. Jesus morreu depois de torturado e pregado numa cruz, passando esta a simbolizar, para os cristãos, o dom total de Cristo pela salvação de todos os homens e mulheres. Se ela traduz, assim, um terrível sofrimento, adquire também, para os crentes, o significado simultâneo de despojamento e plenitude.
“Não posso responder nada aqueles que dizem: ‘Há demasiado mal no mundo para que eu possa acreditar em Deus’”, escreve o filósofo Paul Ricoeur. “O único poder de Deus é o amor desarmado. Deus não quer o nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus torna-se ‘todo-amoroso’. Deus não tem nenhum outro poder para além de amar e de nos dirigir, quando sofremos, uma palavra de auxílio. O que é difícil para nós é poder ouvi-la.”
A cruz é símbolo desse despojamento quase absurdo, sinal do desarmamento divino. Mas que assume em si quotidianos de sofrimentos, alegrias, lutas e júbilos, como tão bem representam os crucifixos das pinturas populares latino-americanas ou esta Ressurreição de Chagall.
No decorrer da história, a cruz acabou por ganhar, para muitos cristãos, uma dimensão totalitária, esquecendo que ela testemunhava outro sinal maior – o da vitória sobre a morte como o último dos limites da humanidade. Acentuou-se o pietismo, o sofrimento pelo sofrimento, a “recompensa” do vale de lágrimas presente numa vida futura…

No seu sentido profundo, a cruz assume os fardos de cada um. Nela, cada um assume os fardos dos outros. Com esse horizonte, a liturgia católica criou, para a Sexta-feira Santa, a celebração da Adoração da Cruz. Para recordar que, no auge da tortura e do sofrimento, o próprio Jesus perdoou aos que o executavam. No século VI, escrevia Isaac de Nínive: “Deus só pode dar o seu amor.”

(texto publicado no Público a 25 de Março de 2005)

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