Primeiro
identificativo cristão era um peixe desenhado com dois traços
Marc Chagall, Ressurreição
óleo sobre tela, 1937-1948
(ilustração reproduzida daqui)
No princípio,
não era a cruz. O primeiro e grande símbolo dos cristãos foi um peixe desenhado
com apenas dois arcos cruzados. O sinal remetia para a actividade piscatória
que envolvera boa parte dos discípulos de Jesus. Ao mesmo tempo, a palavra
grega para designar peixe, ictus,
correspondia ao anagrama de Iesus (Jesus) Christos (Cristo) Theou (Deus) Uios
(Filho) Soter (Salvador).
Com o tempo,
a cruz foi tomando o lugar desse identificativo inicial. Jesus morreu depois de
torturado e pregado numa cruz, passando esta a simbolizar, para os cristãos, o
dom total de Cristo pela salvação de todos os homens e mulheres. Se ela traduz,
assim, um terrível sofrimento, adquire também, para os crentes, o significado
simultâneo de despojamento e plenitude.
“Não posso
responder nada aqueles que dizem: ‘Há demasiado mal no mundo para que eu possa
acreditar em Deus’”, escreve o filósofo Paul Ricoeur. “O único poder de Deus é
o amor desarmado. Deus não quer o nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus
torna-se ‘todo-amoroso’. Deus não tem nenhum outro poder para além de amar e de
nos dirigir, quando sofremos, uma palavra de auxílio. O que é difícil para nós
é poder ouvi-la.”
A cruz é símbolo
desse despojamento quase absurdo, sinal do desarmamento divino. Mas que assume
em si quotidianos de sofrimentos, alegrias, lutas e júbilos, como tão bem
representam os crucifixos das pinturas populares latino-americanas ou esta Ressurreição de Chagall.
No decorrer
da história, a cruz acabou por ganhar, para muitos cristãos, uma dimensão totalitária,
esquecendo que ela testemunhava outro sinal maior – o da vitória sobre a morte
como o último dos limites da humanidade. Acentuou-se o pietismo, o sofrimento
pelo sofrimento, a “recompensa” do vale
de lágrimas presente numa vida futura…
No seu
sentido profundo, a cruz assume os fardos de cada um. Nela, cada um assume os
fardos dos outros. Com esse horizonte, a liturgia católica criou, para a
Sexta-feira Santa, a celebração da Adoração da Cruz. Para recordar que, no auge
da tortura e do sofrimento, o próprio Jesus perdoou aos que o executavam. No
século VI, escrevia Isaac de Nínive: “Deus só pode dar o seu amor.”
(texto publicado no Público a 25 de Março de 2005)
(texto publicado no Público a 25 de Março de 2005)
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