Domingo de Páscoa, celebrar a luz
nova
Teófanes o Grego, Transfiguração
do Senhor
(início do século XV; ilustração reproduzida daqui)
A experiência do ressuscitado é,
para os primeiros seguidores de Jesus, semelhante a um fogo misterioso e
intenso. Dois deles, que iam a caminho de uma aldeia chamada Emaús, são disso
testemunhas. Pelo caminho, o próprio Cristo ressuscitado junta-se a eles, sem
ser reconhecido, e explica-lhes os textos bíblicos que a ele mesmo se referiam.
Os dois discípulos só o
reconhecem quando Jesus se senta à mesa com eles. Ao regressarem a Jerusalém,
para dizer aos companheiros que tinham visto o ressuscitado, comentavam: “Não nos
ardia o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava as
escrituras?”
Esse fogo já antes o tinham experimentado
outros três discípulos – Pedro, Tiago e João – quando Jesus se transfigura
perante eles, mudando-se o rosto e resplandecendo as vestes. Sem entenderem
plenamente o que acontece, os três intuem que o acontecimento prenuncia algo
mais forte – que viria a ser a ressurreição.
Não se sabe o que terá sido a experiência
da transfiguração – como a representada no ícone aqui reproduzido – nem, muito
menos, a da ressurreição. Sabe-se, apenas, que elas mudaram a vida de um
punhado de mulheres e homens. Dentro deles, descobriram de repente, por causa
de um homem que se afirmava filho de Deus, potencialidades ignoradas.
“Quando a noite se torna espessa”
– escreve o irmão Roger, da comunidade monástica de Taizé – o amor de Deus “é
um fogo que vem atear o que sob as cinzas permanecia todavia incandescente”.
A experiência do fogo dá lugar a
um dos símbolos mais importantes da liturgia católica. Na noite que passou, a
Vigília Pascal começou com a bênção do lume novo. A oração do Precónio Pascal fala dessa noite diferente,
que contém em si a força da luz na história bíblica: o inicial “Faça-se luz”
rompe as trevas dominadoras; o pecado dissipa-se pela coluna de fogo que conduz
os israelitas através do deserto, fugindo à escravatura egípcia; a ressurreição,
acontecimento fundador do cristianismo e vitória sobre a morte, dissipa “as
trevas de todo o mundo”; a terra rejubila “inundada por tão grande claridade”.
Esta foi a noite de prenúncio de
uma aurora nova. “Esta noite santa afugenta os crimes, lava as culpas; restitui
a inocência aos pecadores, dá alegria aos tristes; derruba os poderosos, dissipa
os ódios, estabelece a concórdia e a paz.”
Hoje, Domingo de Páscoa, é essa
luz nova que os cristãos celebram.
(Texto publicado no Público a 27 de Março de 2005)
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