A refeição, um importante ritual em várias religiões
Depois da celebração do
Domingo de Ramos, em que se recorda a entrada de Jesus em Jerusalém, poucos
dias antes de morrer crucificado, os cristãos (católicos, protestantes e
anglicanos; pela diferença de calendários, os ortodoxos só celebram a Páscoa daqui
a uma semana) evocam hoje a última ceia que Cristo come com os seus mais
próximos.
A importância da refeição
no ritual religioso não nasce com Jesus e o cristianismo. A ceia que acabou por
ser ritualizada pelos cristãos em memória de Cristo era, ela própria, a
celebração da Páscoa judaica: à volta da mesa e de um cordeiro ou cabrito, os
judeus recordavam o tempo em que tinham saído do Egipto, fugindo à escravatura
dos faraós.
Na primeira Páscoa, aquela
que preparou a fuga aos exércitos do faraó, juntaram-se as famílias vizinhas, com
sandálias nos pés e cajado na mão. “Comê-la-eis à pressa. É a Páscoa em honra
do Senhor”, diz o texto bíblico do livro do Êxodo, que pede “um memorial (…) ao
longo das gerações”.
A última ceia de Jesus
ficou, no cristianismo, e por pedido do próprio – “Fazei isto em memória de mim”
– como a celebração maior. Mas o valor bíblico da refeição não se resume à
Última Ceia e alguns dos ensinamentos decisivos de Jesus ligam-se ao acto de comer
juntos: é durante uma refeição em casa de um fariseu que Jesus causa escândalo
ao perdoar os pecados da mulher que aparece a chorar e a lavar-lhe os pés;
Jesus faz multiplicar os pães quando coloca a multidão faminta a partilhar o
que cada um tem; depois da ressurreição, é à mesa que dois discípulos o
reconhecem e Jesus aparece várias vezes junto dos amigos mais próximos para
comer com eles; e, em casa de Lázaro e das suas irmãs Marta e Maria, Jesus
parava várias vezes a repousar e a comer do pão que as mulheres lhe preparavam
– como Vermeer representa no quadro aqui reproduzido.
O valor religioso do acto
de comer junto com outros não se limita ao cristianismo e ao judaísmo. É com
uma refeição festiva que os muçulmanos assinalam o final do Ramadão, o mês do
jejum e da purificação. E os sikhs recordam o seu primeiro mestre espiritual:
em 1649, Guru Nanak pegou em vinte rupias – uma fortuna que o pai lhe dera para
gastar e, ao ver alguns homens santos que não tinham que comer, decidiu comprar
alimento para partilhar com eles.
No acto de comer juntos,
quebram-se barreiras, celebra-se a igualdade da mesa, transfiguram-se alimentos
– o pão, o vinho – num ágape de amizade. Foi com esse gesto que Jesus iniciou a
sua Páscoa. E se o tempo, muitas vezes, sacralizou e preencheu de rituais quase
mágicos essa memória, o sinal maior continua a ser o do pão que se reparte.
(texto publicado no Público a 24 de Março de 2005)
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