O altar construído no parque Ñu Guazu (Assunção, Paraguai),
onde o Papa celebrou a eucaristia domingo passado,
foi totalmente decorado com espigas e grãos de milho,
abóboras, coco e frutos da época (foto reproduzida daqui)
A viagem do Papa Francisco ao
Equador, Bolívia e Paraguai – os três países mais pobres da América do Sul – ficou
marcada por vários momentos e palavras. Mas o momento mais importante talvez
tenha sido o discurso do Papa no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos
Populares, organizado pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz. Um discurso “marcante”,
que assinala uma espécie de “refundação” da doutrina social da Igreja, como o
caracterizou o Religion Digital.
A intervenção do Papa seguiu-se à
leitura do documento de conclusões do encontro, denominado Carta de Santa Cruz.
No seu texto, o Papa Francisco
recorda algumas das ideias que já tinha vincado na sua intervenção conclusiva
do I encontro, realizado em Roma, no final de Outubro do ano passado.
O Papa Bergoglio voltou a repetir
que terra, tecto e trabalho – os 3 T, como os definiu – são “direitos
sagrados”. E acrescentou que se referia a problemas não só dos
latino-americanos mas, “em geral, de toda a humanidade”.
No discurso, perante mais de 1500
representantes de movimentos de camponeses, trabalhadores precários, migrantes,
agricultores sem-terra, moradores de periferias urbanas e muitos outros,
convocados pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz para três dias de debates, o Papa afirmou que este sistema económico
“impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na
destruição da natureza”. É um sistema que “já não se aguenta: não o aguentam os
camponeses, não o aguentam os trabalhadores, não o aguentam as comunidades, não
o aguentam os povos... E nem sequer o aguenta a Terra, a irmã Mãe Terra, como
dizia São Francisco” (a tradução oficial para português utiliza a versão “não o
suportam” em vez de “não o aguentam”; mas, em castelhano, foi “aguentar” o
verbo utilizado pelo Papa).
Na intervenção, da qual se pode
ler aqui uma selecção de dez frases, Bergoglio criticou ainda o novo
“colonialismo ideológico” que chega a impor “medidas que pouco têm a ver com a
resolução” de problemas “e muitas vezes tornam as coisas piores”. E pediu
ainda perdão aos povos indígenas, “não só para as ofensas da própria Igreja,
mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista
da América”.
“Precisamos e queremos uma
mudança”, uma “mudança real, uma mudança de estruturas”, acrescentou Francisco.
Uma mudança que seja “redentora”, que contrarie os “danos irreversíveis” que estão
a castigar a terra e a infligir “tanto sofrimento, tanta morte e destruição”.
Sente-se, acrescentou, “o cheiro do que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco
do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica
em segundo plano”.
Esta realidade caracteriza a
“ditadura subtil” que se vive e provoca “efeitos malignos”. E contra isso o
Papa propõe três tarefas, “que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos
movimentos populares”: a de colocar “a economia ao serviço dos povos”, unir “os
povos no caminho da paz e da justiça” e “defender a Mãe Terra”.
O discurso é, possivelmente, o
mais longo do seu pontificado, até agora, o que também diz da importância que Francisco
lhe atribui. Quer nesta intervenção, que pode ser lida aqui na íntegra, quer em diversos outros momentos
da viagem, o Papa insistiu ainda na ideia de que o futuro está nas mãos dos
povos, mais do que das dos grandes dirigentes, elites ou potências.
“A pergunta é: porque esqueceu a Igreja?...”
A imprensa internacional comentou
em geral de forma muito positiva as diferentes intervenções do Papa. A viagem
foi vista como reflectindo uma Igreja cada vez menos romana e mais universal.
Muitas das afirmações do Papa serão
seguramente olhadas por muitas pessoas como intervenções políticas de um líder
espiritual, que não as devia fazer. Mas, como escrevia Andrea Tornielli no
Vatican Insider, estas palavras estão “em absoluta sintonia com a tradição
cristã”. E recorda: “‘Não partilhar os próprios bens com os pobres significa
roubá-los e privá-los da vida. Os bens que possuímos não são nossos, mas
deles’, escrevia São João Crisóstomo. (...) Não há que perguntar, pois, se o
Papa é comunista ou porque fala tanto sobre os pobres. A verdadeira pergunta é:
porque é que na Igreja se esqueceram estes ensinamentos a tal ponto que parece
revolucionária a pregação do Papa argentino?”
A viagem ficou marcada também,
como um fait-divers, pelo oferta de
um crucifixo sobre uma foice e um martelo, oferecido ao Papa pelo Presidente boliviano,
Eco Morales. Num primeiro momento, o Papa chamou a atenção para dizer que não
estava muito correcta aquela mescla de símbolos. Mas, depois, eventualmente
informado sobre a sua origem, o seu porta-voz esclareceu que o Papa não tinha
tido uma reacção especialmente negativa ao presente. O crucifixo tinha sido,
afinal, desenhado pelo padre jesuíta espanhol Luis Espinal Camps, que foi
torturado e assassinado por paramilitares em La Paz, em 1980, depois de
denunciar a violência política no país – aliás, pouco depois de chegar à Bolívia, o Papa deteve-se mesmo no lugar onde foi morto o padre Espinal. Por tudo isso, o Papa entendeu o
presente não como “uma confusão entre fé e ideologia”, mas como um sinal de“diálogo e liberdade”.
Já no voo de regresso, o próprio
Papa referiu-se ao episódio, dizendo que iria guardar a oferta no Vaticano e
que não considerou o presente como uma “ofensa”. Na mesma ocasião, referiu-se
ainda à crise europeia a propósito da Grécia, afirmando apoiar as pretensões do
governo grego por uma “revisão justa” da dívida.
Numa análise ao episódio do
crucifixo, John Allen escrevia, no Crux, que a oferta de Morales, se teve
intenção de ser um aproveitamento, poderia sair-lhe pela culatra. Em 1987,
recorda o jornalista, o Papa João Paulo II apareceu à varanda do palácio
presidencial com o então ditador Augusto Pinochet, num gesto muito criticado na
época. Menos de um ano depois, Pinochet autorizou – e perdeu – um referendo
sobre a sua liderança e o Chile retomou lentamente o caminho para a democracia.
Cinco anos antes, a junta militar que governava a Argentina também tentou
aproveitar a visita de João Paulo II como forma de caucionar o regime que,
menos de um ano mais tarde, tinha já caído. O mesmo aconteceu com o ditador Alfredo
Stroessner, no Paraguai, que caiu do poder menos de um ano depois da visita de
João Paulo II, em 1988. John Allen ressalva que Morales não é um ditador, foi
democraticamente eleito três vezes e continua a ter um forte apoio popular. Há
diferenças de pontos de vista, no entanto, entre o Papa e Morales –
nomeadamente em questões ambientais e nas relações Igreja-Estado. Por isso,
conclui, se Morales pretendesse fazer aproveitamentos políticos com a visita de
Francisco, isso poderia correr-lhe mal.
Já no
Paraguai, o Papa recordou as “heróicas mulheres” que lutaram contra a ditadura
de Stroessner e as vítimas do Plano Condor que, liderado pela CIA
norte-americana entre 1970 e 1980, permitiu que as ditaduras latino-americanas
perseguissem os seus opositores.
A espiritualidade de zapping
Noutro encontro da viagem, com
seminaristas e padres, de novo na Bolívia, o Papa denunciou as “castas”
eclesiásticas, que “estão continuamente a repreender o povo de Deus”. “Já não
são pastores, mas capatazes”, afirmou. O clero não deve ter a atitude de passar
ao lado da vida das pessoas, nem alimentar uma “espiritualidade de zapping”, que não consegue
“relacionar-se, envolver-se inclusive com o Senhor”. Antes deve manifestar compaixão pela situação de cada pessoa, fazendo um convite que leve à mudança. (O programa completo e os discursos da
viagem podem ser lidos aqui)
Em consequência directa (ou não) da
passagem do Papa por aqueles três países latino-americanos, as autoridades
chilenas propuseram à Bolívia o restabelecimento imediato de relações diplomáticas,
cortadas por causa da reivindicação boliviana de uma saída directa para o mar,
que o país deixou de ter na sequência de uma guerra que fez em conjunto com o
Peru, contra o Chile, em 1879.
Num outro texto de análise lateral
à viagem, John Allen descobre ainda que Francisco é o Papa da “falibilidade
papal”. Esse é o novo dogma, diz o jornalista e comentador, que descobriu,
apenas na conferencia de imprensa de regresso, a bordo do avião, sete afirmações de Francisco que remetem para essa ideia. (texto original, em inglês, aqui)
Sem comentários:
Enviar um comentário