Jornadas em Lisboa incluem apresentação
de livro
Género e interioridade na vida religiosa: conceitos, contextos e
práticas é o tema e título das jornadas de estudo que, esta sexta e sábado,
decorrem em Lisboa, organizadas pelo Centro de Estudos de História Religiosa.
Sexta-feira, às 18h, na sala Brasil do edifício da Biblioteca João Paulo II, o
programa prevê a apresentação do livro Vozes da vida religiosa feminina: experiências, textualidades e silêncios (séculos XV-XXI). Estudos sobre questões tão diversas quanto a relação entre
as leituras bíblicas e as ânsias amorosas, os temas do destino e da redenção na
época de ouro do fado, os aspectos do discurso religioso de Maria de Lourdes
Pintasilgo, a escrita conventual feminina, um sermão feito por uma freira
clarissa, o silêncio e o misticismo, as vozes femininas na génese de institutos
regulares ou as estratégias discursivas hagiográficas na observância dominicana
portuguesa são alguns dos temas da obra.
Coordenado por João Luís Fontes,
Maria Filomena Andrade e Tiago Pires Marques, o livro recolhe ainda um estudo
de Ivone Freitas Leal sobre as fontes, os itinerários e as problemáticas acerca
das mulheres na vida religiosa portuguesa. Um conjunto de estudos que pretende
resgatar, na história religiosa, as vozes das mulheres que “têm estado
particularmente ausentes tanto por razões historiográficas como por razões
propriamente históricas”.
Recordam os coordenadores: “o
lugar das mulheres no cristianismo foi, desde o seu início, marcado pela tensão
entre a ideia de igual dignidade diante de Deus e uma interdição sacerdotal e
apostólica com efeitos nas possibilidades de se fazerem ouvir. (...) é inegável
que muitos universos cristãos, e nomeadamente nos que à história do catolicismo
se referem, se estruturaram sobre uma distinção rígida entre homens e mulheres,
com consequências significativas nas formas de vida religiosa, no seio das
ordens e entre os leigos.”
Para lá das questões da santidade
e das representações da mulher, tópicos em que se tem centrado a maior parte
dos estudos sobre esta questão específica, aprofunda-se aqui a via mística e
novas formas de vida comunitária que “permitiram às mulheres aceder à palavra
religiosa, ainda que o discurso religioso feminino permanecesse excecional”.
O livro reúne, assim, a maior
parte dos estudos que resultaram das jornadas Formas de vida religiosa, identidades
e pertenças, organizadas pelo Centro de Estudos de História Religiosa, da
Universidade católica Portuguesa (CEHR/UCP), em 2013.
Um dos textos porventura mais inesperados
será o de Cátia Tuna, sobre O Fatum feminino: destino e redenção na “época de
ouro do fado”, que propõe estudar a voz religiosa feminina no repertório das
cantadeiras de fado entre 1930 e 1960, e a forma como ela “exprime uma
intencionalidade de natureza religiosa na construção e na forma como faz uso da
voz para se sublevar como protagonista no âmbito social e espiritual.”
Essas mulheres fadistas
apropriam-se do fado urbano enquanto instância criativa de elaboração de
enunciados em que prevalece a mundividência devocional católica, e jogam com os
mecanismos de destino e de salvação nela presentes para redefinirem a
interpretação dos seus comportamentos e da sua trajetória biográfica”, indo
mesmo ao ponto de reelaborar “um julgamento da mulher em que lhe é concedida
voz e a possibilidade abonatória de redenção ou, ao invés, a legitimidade para
a sua subalternidade em relação ao homem na ideia de um fatum feminino
destinado por Deus”.
A fadista surge, assim, como
sujeito ou objecto da oração: “Uma particularidade das letras escritas por
mulheres
nesta época é que, sendo estas de
escassa quantidade, revelam com frequência
um
traço que é a identificação do sujeito, na
primeira pessoa, como orante, como
alguém
habituado a dirigir‐se a Deus.” E isto é feito, por vezes, colocando em
justaposição ou em concorrência, elementos como beijos e orações, amor e
pecado, o amado e Deus.
Sobre ânsias amorosas e leituras
bíblicas, e a propósito do inédito Livro de Apontamentos, da monja cisterciense
Joana de Jesus (1617-1681), escreve Joana Serrado. “Profundamente influenciada
por Luís de Granada e por Teresa de Jesus, Joana conquista um pensamento único
na elaboração da noção de ânsias. Estas ânsias tornam‐se condição de
possibilidade e efeito de um contacto com o Divino e conduzem‐na a uma exegese
bíblica pessoal”, diz a autora. Numa das passagens do Livro de Apontamentos,
Joana de Jesus escreve: “emtão indo já para a comonidade me deu o Senhor a
emtender que o Eterno Padre me aceitava por filha e tendo eu com isto grande
temor e umildade, o Senhor me deu a emtender aquelas palavras que dise à Santa
Maria Magdalena, dipois de resuscitado: Vou a meu Pai e a voso Pai, a meu Deus
e a voso Deus e que se ele era Pai de todos, como reparava eu em que ele me
aceitase por filha, com isto fiquei fora de dúvidas e com grande fé, mas com
maior umildade e grande comfusão e todo aquele dia senti a presença das três
devinas pesoas e quando queria buscar ao filho, achava‐o em o Padre e o Padre
achava‐o em o filho e o filho em o ispirito santo e conhecendo que estas
devinas pesoas erão distintas, conhecia que todas erão hum só Deos verdadeiro,
com quem a minha alma com grande fé e amor se abraçava...”
Comenta a autora: “Quando Joana
busca o Pai, encontra o Filho, quando busca o Filho encontra o Pai, e quando
busca os dois encontra o Espírito Santo (símbolo também da inspiração e do ar
que é vital no vivenciar das ânsias). Joana continua dizendo que o Eterno Pai
(e não Cristo) a aceitava como Filha. A Filiatio transforma‐se em filiatio
feminina. Ela não é simplesmente “esposa de Cristo” ou uma das criaturas da
humanidade salvas pela morte do Filho na Cruz. Joana, como Jesus vai a meu Pai
e a vosso Pai, a meu Deus e a vosso Deus (Jo 20:17), numa inclusividade que,
embora não exclua a masculinidade, a silencia nesta passagem. Este silêncio do
masculino é relativamente excecional na nossa tradição patriarcal. Tal
silenciamento permite a Joana identificar‐se com a humanidade de Cristo e,
assumindo a sua feminilidade, ser plenamente filha de Deus Pai.”
Pintasilgo, a experiência da fé, o papel das
mulheres e Portugal
Um outro estudo a merecer atenção
é o de Paula Borges Santos, sobre Aspetos
do discurso religioso de Maria de Lourdes Pintasilgo (1968-2004): a experiência
da fé e o papel das mulheres no cristianismo. No texto, a autora procura
aprofundar a relação entre a identidade religiosa de Maria de Lourdes
Pintasilgo com a especialização do seu discurso e a sua intervenção social,
incluindo a reflexão sobre o papel das mulheres no cristianismo.
“Particularizando como
especialmente importante na corrente feminista sua contemporânea o papel dos
grupos de mulheres cristãs, Maria de Lourdes defenderia que os mesmos
representavam ‘uma força nova no cristianismo’, situando‐se no fluxo histórico
do diálogo de Deus com a humanidade, pela possibilidade que criavam de as
mulheres reencontrarem a ‘palavra singular e plural’ e de oferecerem ‘à
mensagem de Cristo um meio social em que a sua radicalidade possa tomar
forma’”, escreve Paula Borges Santos.
Pintasilgo proporia, além disso,
uma espiritualidade das mulheres: “Essa ideia assentava na imagem das mulheres
como parte integrante do Povo de Deus, envolvidas na realização de um caminho
de pesquisa espiritual. Esse caminho deveria sedimentar‐se no acontecimento e
na expressão da ‘cultura feminina’, de forma que o ‘ser‐mulher’ pudesse
manifestar‐se em ‘vocação’, isto é, na realização de missões em que ganhariam
sentido os dons e as condições de vida de cada mulher.”
Já nos últimos anos da sua vida, a
antiga primeira-ministra “abandonaria essa terminologia, preferindo falar de ‘humanidade’
ou simplesmente da ‘pessoa humana’”. Num dos seus últimos textos, sobre “Uma
espiritualidade para o século XXI”, escreveu que “a espiritualidade faz sistema
com a cultura, o religioso e a ética, e que é exigente de uma representação
simbólica que leva até ao limite a capacidade de se produzir essa representação”.
E acrescentava que não existia “uma fronteira visível na humanidade, separando
a comunidade dos cristãos da comunidade de toda a humanidade”, uma ideia na
linha de Yves Congar, o dominicano que ela considerava “um dos maiores teólogos
do século XX”.
No texto que serve de pórtico ao
conjunto de estudos, sobre As mulheres na vida religiosa portuguesa: fontes,
itinerários e problemáticas, Ivone Freitas Leal problematiza o que te se tem
passado em Portugal nos estudos sobre esta questão: a invisibilidade das mulheres
na vida social, notada por viajantes estrangeiros; a “prevalência da aparência
sobre a essência” em situações como adultério, bigamia, barregania,
prostituição, mães solteiras ou crianças abandonadas, em que a doutrina da
Igreja não tinha correspondência na prática social, muito mais permissiva; e a
ambiguidade da atenção que a Igreja prestou à mulher: “Das palavras e dos atos
de Jesus Cristo permaneceu a marca indelével de que é filha de Deus, digna de
tanta atenção e carinho como os homens. Tão capaz de testemunhar o evangelho
como os homens. Esta é a teoria. Na prática há uma condição: contanto que a ordem
instaurada não se subverta.” Para concluir, depois de citar muitos outros
exemplos contemporâneos, incluindo a questão do acesso das mulheres aos ministérios
na Igreja: “Não estão ainda completamente ultrapassadas as milenárias
suspeições quanto à malícia e à incapacidade das mulheres.”
As jornadas destes dois dias
propõem novas vertentes para o estudo das práticas, discursos ou experiências
religiosas. Com contributos do âmbito da história religiosa, antropologia, literatura,
sociologia e história da ciência, elas pretendem, dizem os organizadores, “problematizar
historicamente as formas de interioridade na sua relação com a diferença sexual
e as práticas de género”, cruzando a “dimensão histórica com o problematizar do
género como elemento diferenciador”.
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