Em Braga, começou na semana passada, e continua já nesta
sexta-feira, dia 10, o ciclo de cinema Cinevita. As sessões decorrem às 21h30,
no claustro do Auditório Vita (R. São Domingos, 94-C), com entrada livre. A
propósito, publica-se a seguir um texto do padre João Paulo Costa, da diocese
de Braga, um dos responsáveis do ciclo.
Texto de João Paulo Costa
O cinema enquanto arte é um lugar de revelação das questões
essenciais da vida. A sétima arte não só dá a ver como dá que pensar. O filme não
só dá a ver como é tocável e tocante, na medida em que activa em nós a
sensibilidade singular pelo outro humano, pela existência ou pela morte, pelo devir
ou pelo gozo de uma presença. O cinema constitui-se como um dos espaços
comunitários qualificativos da nossa comum humanidade, criando afectos
solidários e diálogos abertos em torno das questões fundamentais da nossa
existência.
Imagem do filme Ida, do realizador polaco Pawel Pawlikowski,
“uma poderosa metáfora dos dilemas da vida religiosa na relação com a vida do mundo”
O tema – Visões de uma
memória da compaixão ou recordação provocante? – é, antes de mais, uma
questão! O intuito é de apelar ao silêncio interrogativo das imagens, por forma
a gerar novas visões da nossa vida comum, sem deixar cair no esquecimento o
drama do outro Homem. O título deste ciclo evoca a teologia de Johann Baptist
Metz (n. 1928), impulsionador da chamada nova teologia política.
A teologia política da compaixão não é uma ideologia partidária,
mas prática solidária da vida do Reino. Esta teologia da compaixão é, portanto,
na feliz expressão do próprio teólogo, uma “mística de olhos abertos”, atenta à
frágil realidade do mundo nos seus mais diversificados contextos
sócio-culturais.
O retorno hodierno do movimento filosófico “novo realismo” vem, em
parte, de encontro ao movimento cinematográfico “neo-realismo” de outrora e da
“nova teologia política”. A relação entre estes três movimentos poderá ser
fecunda na interpretação da complexidade do existir. Neste sentido, teologia,
filosofia e experiência cinematográfica unem-se para questionar e pensar esta
“hora zero do mundo” (Eduardo Lourenço) em que nos encontramos. A imaginação
poético-fílmica, se devidamente habitada e acolhida em sua significação própria
(sem procura de moralismos ou de ilustrações simplistas da realidade), pode
tornar-se uma chance de “transfiguração da realidade e de “produção de sentido”
(Walter Benjamin).
Os filmes a exibir neste ciclo expressam a complexidade da
realidade e a preocupação pelo humano num contexto de globalização e de
transformações profundas nas sociedades contemporâneas. A pergunta que os move
é de saber se é possível ainda colocar em acto a memória vivente da compaixão (de
consentir com/o outro em sua presença, ora de silêncio impotente ora de
actuação arriscada nos diversos contextos). Num contexto de evolução técnico-científica,
sem que isso signifique sempre maior progresso humano, de teorias e práticas trans-humanistas
já em acto, será anacrónico propor as sete obras de misericórdia enquanto
cifras interpretativas da qualidade crente da existência humana?
Quatro filmes, quatro estilos
Ermanno Olmi, Steve McQueen, Aki Kaurismäki e Pawel Pawlikowski. Quatro
cineastas, quatro estilos diversos de ressentir o mundo da vida. A linha de
fundo que os acomuna é o humano tout
court, a sua contingência enquanto tal, em situação de opressão e submissão
pelas potências sistémicas financeiras, ideológicas ou religiosas. O que os une
é, portanto, a dimensão política da vida enquanto acto de atenção pela
edificação da polis, de um ethos de justiça e de compaixão actuante entre os
humanos. Este “novo realismo” cinematográfico é uma poética dramática do
quotidiano. Por isso nos questionamos se não estará aqui a dimensão profética
do génio artístico contemporâneo contra uma certa passividade das instituições
e dos indivíduos na hospitalidade do estrangeiro, do exilado ou do pobre?
Estas quatro visões evocam subtilmente os actos de compaixão
actuante testemunhados pela grande tradição cristã ao longo dos tempos: dar de
comer aos famintos, dar de beber aos sedento, vestir os nus, acolher os
peregrinos, visitar os enfermos e os presos, sepultar os mortos (cfr. Mt 25,
34-46). Estes filmes revelam-nos uma “espiritualidade clandestina” (Manuel
Frias Martins) e um sentimento crente profundamente kenótico na condivisão do
sofrimento do outro humano.
Para dar corpo à ideia subjacente a este ciclo, o filme A Aldeia de Cartão (2011), de Ermanno Olmi
(exibido no passado dia 3) coloca-nos diante do “risco da caridade” para com os
exilados e refugiados da história recente e da dificuldade de colocar em acto a
hospitalidade sem protocolos, mesmo no interior da instituição-Igreja, onde
Deus monta a sua tenda em prol do humano ferido. Uma comunidade, um pároco e
uma igreja que são regenerados na sua expressão crente por refugiados africanos
que apenas sonham uma nova vida em terra de liberdade.
Steve McQueen, no seu extraordinário filme Fome (2008), parte dos 66 dias de greve de fome de Bobby Sands,
activista do IRA, e dos restantes presidiários políticos na Irlanda do Norte,
para iniciar uma reflexão sobre a violência gratuita do poder, a fragilidade do
corpo, a dialéctica entre indivíduo e o Estado, a perda e a promessa. O filme (a exibir amanhã, dia 10) é
originalíssimo em duas cenas: o diálogo/confissão intenso entre Bobby e o seu
amigo padre que o visita na prisão (sem pietismos; é talvez a melhor
apresentação de sempre da figura do padre na história do cinema) e a parte
final com a refiguração da paixão crística no “corpo de carne” de Bobby (sem
artificialismos: o espírito é expedito, mas a carne é frágil).
Le Havre (2011), de Aki Kaurismäki, é poesia
dramática (sessão do dia 17 de Julho).
A irrupção do estrangeiro na vida tediosa de Marcel Marx (bar, trabalho e casa)
transfigura-o paulatinamente. De escritor e boémio a engraxador de sapatos na
zona costeira de Havre, depara-se com um adolescente refugiado que lhe pedirá
abrigo, iniciando a prática da compaixão na luta pela dignidade deste ser
humano perseguido pela polícia e pelas políticas repressivas de combate à emigração.
Não obstante a doença terminal da sua esposa, Marx redescobre, através do acto
hospedal daquele adolescente perseguido, a alegria de viver na abertura de si
ao outro humano.
Ida (2014) é o filme do realizador polaco Pawel
Pawlikowski que nos apresenta uma poderosa metáfora dos dilemas da vida
religiosa na relação com a vida do mundo (a
exibir dia 24 de Julho). Anna (Ida), antes de professar os votos
definitivos para entrar numa ordem religiosa, é enviada pela superiora da comunidade
(Halina Skoczynska) a visitar a sua única familiar sobrevivente do nazismo: a
tia Wanda. Filmado com uma sensibilidade ímpar, ao nível de um Tarkovski ou de um
Bergman, Ida é uma enérgica reflexão
sobre a memória da compaixão e da força humanizadora das feridas entreabertas pelos
múltiplos afectos humanos e da impossibilidade da história os obnubilar.
Este modo de pensar o mundo da vida singular e comunitária vem de
encontro à perspectiva da teologia política da compaixão, tornando-se ponto de
encontro fecundo entre imaginação cinematográfica e pensar teologal. Este acto
de imaginação profética de activação consciencial, intui possibilidade da arte
e do pensamento se unirem na proposta plausível de um tempo novo. A justiça dos
afectos para com o outro semelhante é a condição que poderá dar corpo a uma recriação
dos entrelaçamentos humanos com a inteira Criação.
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