sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O encontro de Francisco com o patriarca Cirilo será mesmo histórico

O Papa Francisco e o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa encontram-se hoje, ao final da tarde (hora de Lisboa), em Havana. Sábado passado, dia 6, no DN, publiquei um texto antecipando as razões e a importância deste encontro. É esse texto que a seguir se reproduz, actualizando as datas.

Depois de mil anos de separação, o Papa e o patriarca de Moscovo encontram-se pela primeira vez. Outro inédito: o encontro será em Cuba.


O patriarca Cirilo, de Moscovo 
(foto de CNS/Sergei Chirikov, EPA, reproduzida daqui)

A palavra “histórico” é a que melhor traduz o que se passará esta tarde, em Cuba: pela primeira vez em vinte séculos de cristianismo – e nos mil anos de separação –, um Papa católico e o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa irão encontrar-se. E são muitas as razões para a “importância extraordinária” do acontecimento, como definiu o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi.
O encontro era desejado pelos últimos papas, mas nunca aconteceu por razões religiosas e políticas. Desta vez, depois de dois anos de preparação, será concretizado numa escala do Papa Francisco na sua viagem para o México – o próprio já dissera estar disponível para tal encontro, onde e quando Cirilo quisesse – “basta ele dizer-me e eu vou”, afirmou o Papa, no voo de regresso da Turquia, em Dezembro de 2014.
O anúncio foi feito dia 5, em simultâneo, no Vaticano e em Moscovo, a “terceira Roma” (a segunda é Constantinopla): será “o primeiro na história e marcará um importante passo nas relações entre as duas igrejas”, confirma o comunicado oficial.

As primeiras reacções também não poupam nos adjectivos: “Um novo começo” nas relações entre ambas as igrejas e uma “grande notícia”, resumia o padre jesuíta David Nazar, reitor do Instituto Pontifício Oriental, católico ucraniano originário do Canadá, em declarações ao Catholic News Service, citadas pelo National Catholic Reporter.
O pretexto da conversa são as perseguições aos cristãos no Médio Oriente, um tema que une os dois líderes acima das suas divergências – o Papa chama-lhe “ecumenismo de sangue”, pois os cristãos são perseguidos ou mortos independentemente de serem católicos, protestantes ou ortodoxos.
A reunião de duas horas entre Francisco e o patriarca Cirilo decorrerá no aeroporto de Havana – o líder ortodoxo está em Cuba, uma das etapas da visita de um patriarca ortodoxo de Moscovo à América Latina, que o leva também ao Brasil e Paraguai. Os encontros de Francisco com o Presidente cubano Raul Castro e a proximidade do regime cubano com Moscovo terão ajudado à escolha de Cuba.
No final da conversa, Francisco e Cirilo assinam uma declaração comum, que deverá falar do tema do encontro e da aproximação entre as duas igrejas.
Ficarão de fora, possivelmente, os escolhos que ainda subsistem nas relações entre as duas igrejas. O mais importante deles é a questão dos uniatas – os católicos unidos ao Papa mas com liturgia semelhante à dos ortodoxos, que sempre viram aquelas comunidades como forma de conquistar fiéis à ortodoxia. A Igreja Ortodoxa entende mesmo que o território russo é o seu “território canónico” e, por isso, não deve haver outra autoridade cristã no país que não a sua.
Após o fim da União Soviética, os uniatas começaram a pedir a devolução de igrejas, seminários e outros bens que Estaline lhes teria tirado, para entregar à Igreja Ortodoxa, o que também causou muita fricção entre as duas igrejas. Se juntarmos a isto o facto de um importante número de uniatas se concentrar na Ucrânia, temos a tempestade perfeita.
Mais fundas são as feridas históricas, que levaram ao cisma e à excomunhão mútua entre cristãos do Ocidente e cristãos do Oriente, em 1054. Na sua origem, estiveram sobretudo razões políticas (Roma e Constantinopla competiam pela herança do Império Romano). Depois, o cisma agravou-se com diferenças teológicas mas o pior talvez tenham sido episódios como os massacres de católicos por ortodoxos em 1182 ou o saque de Constantinopla e massacres de ortodoxos às mãos dos cruzados, em 1204, bem como a recusa do Ocidente em apoiar Constantinopla contra os turcos, em 1453. Tais  acontecimentos ainda marcam o subconsciente colectivo em várias regiões da Europa de Leste.
Nas últimas décadas, a tendência é de aproximação: em 1964, o Papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras, de Constantinopla, levantaram as excomunhões mútuas; desde então, os diferentes papas e patriarcas de Constantinopla tiveram uma boa relação. Com João Paulo II (e Bento XVI) houve gestos de reconciliação em relação a Moscovo – entre os quais, a devolução, em 2004, do ícone de Nossa Senhora de Kazan, objecto de uma grande devoção dos russos, que tinha desaparecido do país.
Do lado ortodoxo, a eleição de Cirilo foi uma boa notícia: antes, ele tinha sido o encarregado das relações da Igreja Ortodoxa Russa com outras igrejas. Sete anos depois, pode ter chegado o momento de quebrar o gelo que ainda existe no interior da sua Igreja para com o catolicismo.
A política pode ter ajudado também à aproximação: em 2013, o Papa contestou a hipótese de uma intervenção militar ocidental para depor o Presidente sírio – posição que terá sido bem vista pelos russos, aliados de Bashar al-Assad.
O actual momento da ortodoxia também é importante: ao contrário do catolicismo, em que o Papa tem jurisdição sobre todo o mundo, as igrejas ortodoxas são autocéfalas. O patriarca de Constantinopla é um “primus inter pares” e as relações com Moscovo (a ortodoxia russa, com cerca de 150 milhões de crentes, tem dois terços dos 225 milhões de ortodoxos do mundo), nem sempre são fáceis. Em Junho, também pela primeira vez em mil anos, um concílio pan-ortodoxo juntará, em Creta, os diferentes patriarcas, bispos e responsáveis das diferentes Igrejas Ortodoxas.

O tempo é, por isso, propício ao encontro.

Texto anterior no blogue
Enigmas, misericórdia e política, e inseminação vocacional - crónicas de Anselmo Borges, Paulo Terroso e Fernando Calado Rodrigues

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