O Papa Francisco e o patriarca da
Igreja Ortodoxa Russa encontram-se hoje, ao final da tarde (hora de Lisboa), em
Havana. Sábado passado, dia 6, no DN, publiquei um texto antecipando as razões e a
importância deste encontro. É esse texto que a seguir se reproduz, actualizando as datas.
Depois de mil anos de separação, o
Papa e o patriarca de Moscovo encontram-se pela primeira vez. Outro inédito: o
encontro será em Cuba.
A palavra “histórico” é a que
melhor traduz o que se passará esta tarde, em Cuba: pela primeira vez em vinte
séculos de cristianismo – e nos mil anos de separação –, um Papa católico e o
Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa irão encontrar-se. E são muitas as razões
para a “importância extraordinária” do acontecimento, como definiu o porta-voz
da Santa Sé, padre Federico Lombardi.
O encontro era desejado pelos
últimos papas, mas nunca aconteceu por razões religiosas e políticas. Desta
vez, depois de dois anos de preparação, será concretizado numa escala do Papa
Francisco na sua viagem para o México – o próprio já dissera estar disponível
para tal encontro, onde e quando Cirilo quisesse – “basta ele dizer-me e eu
vou”, afirmou o Papa, no voo de regresso da Turquia, em Dezembro de 2014.
O anúncio foi feito dia 5, em
simultâneo, no Vaticano e em Moscovo, a “terceira Roma” (a segunda é
Constantinopla): será “o primeiro na história e marcará um importante passo nas
relações entre as duas igrejas”, confirma o comunicado oficial.
As primeiras reacções também não
poupam nos adjectivos: “Um novo começo” nas relações entre ambas as igrejas e
uma “grande notícia”, resumia o padre jesuíta David Nazar, reitor do Instituto
Pontifício Oriental, católico ucraniano originário do Canadá, em declarações ao
Catholic News Service, citadas pelo National Catholic Reporter.
O pretexto da conversa são as
perseguições aos cristãos no Médio Oriente, um tema que une os dois líderes
acima das suas divergências – o Papa chama-lhe “ecumenismo de sangue”, pois os
cristãos são perseguidos ou mortos independentemente de serem católicos,
protestantes ou ortodoxos.
A reunião de duas horas entre
Francisco e o patriarca Cirilo decorrerá no aeroporto de Havana – o líder
ortodoxo está em Cuba, uma das etapas da visita de um patriarca ortodoxo de
Moscovo à América Latina, que o leva também ao Brasil e Paraguai. Os encontros
de Francisco com o Presidente cubano Raul Castro e a proximidade do regime
cubano com Moscovo terão ajudado à escolha de Cuba.
No final da conversa, Francisco e
Cirilo assinam uma declaração comum, que deverá falar do tema do encontro e da
aproximação entre as duas igrejas.
Ficarão de fora, possivelmente, os
escolhos que ainda subsistem nas relações entre as duas igrejas. O mais
importante deles é a questão dos uniatas – os católicos unidos ao Papa mas com
liturgia semelhante à dos ortodoxos, que sempre viram aquelas comunidades como forma
de conquistar fiéis à ortodoxia. A Igreja Ortodoxa entende mesmo que o
território russo é o seu “território canónico” e, por isso, não deve haver
outra autoridade cristã no país que não a sua.
Após o fim da União Soviética, os
uniatas começaram a pedir a devolução de igrejas, seminários e outros bens que
Estaline lhes teria tirado, para entregar à Igreja Ortodoxa, o que também
causou muita fricção entre as duas igrejas. Se juntarmos a isto o facto de um
importante número de uniatas se concentrar na Ucrânia, temos a tempestade
perfeita.
Mais fundas são as feridas
históricas, que levaram ao cisma e à excomunhão mútua entre cristãos do
Ocidente e cristãos do Oriente, em 1054. Na sua origem, estiveram sobretudo
razões políticas (Roma e Constantinopla competiam pela herança do Império
Romano). Depois, o cisma agravou-se com diferenças teológicas mas o pior talvez
tenham sido episódios como os massacres de católicos por ortodoxos em 1182 ou o
saque de Constantinopla e massacres de ortodoxos às mãos dos cruzados, em 1204,
bem como a recusa do Ocidente em apoiar Constantinopla contra os turcos, em
1453. Tais acontecimentos ainda marcam o
subconsciente colectivo em várias regiões da Europa de Leste.
Nas últimas décadas, a tendência é
de aproximação: em 1964, o Papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras, de
Constantinopla, levantaram as excomunhões mútuas; desde então, os diferentes
papas e patriarcas de Constantinopla tiveram uma boa relação. Com João Paulo II
(e Bento XVI) houve gestos de reconciliação em relação a Moscovo – entre os
quais, a devolução, em 2004, do ícone de Nossa Senhora de Kazan, objecto de uma
grande devoção dos russos, que tinha desaparecido do país.
Do lado ortodoxo, a eleição de
Cirilo foi uma boa notícia: antes, ele tinha sido o encarregado das relações da
Igreja Ortodoxa Russa com outras igrejas. Sete anos depois, pode ter chegado o
momento de quebrar o gelo que ainda existe no interior da sua Igreja para com o
catolicismo.
A política pode ter ajudado também
à aproximação: em 2013, o Papa contestou a hipótese de uma intervenção militar ocidental
para depor o Presidente sírio – posição que terá sido bem vista pelos russos,
aliados de Bashar al-Assad.
O actual momento da ortodoxia também
é importante: ao contrário do catolicismo, em que o Papa tem jurisdição sobre
todo o mundo, as igrejas ortodoxas são autocéfalas. O patriarca de Constantinopla
é um “primus inter pares” e as relações com Moscovo (a ortodoxia russa, com
cerca de 150 milhões de crentes, tem dois terços dos 225 milhões de ortodoxos do
mundo), nem sempre são fáceis. Em Junho, também pela primeira vez em mil anos, um
concílio pan-ortodoxo juntará, em Creta, os diferentes patriarcas, bispos e
responsáveis das diferentes Igrejas Ortodoxas.
O tempo é, por isso, propício ao
encontro.
Texto anterior no blogue
Enigmas, misericórdia e política, e inseminação vocacional - crónicas de Anselmo Borges, Paulo Terroso e Fernando Calado Rodrigues
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