Texto de Maria Wilton
Bairro na periferia da Cidade do Cabo: a África do Sul
é a segunda economia “mais miserável do mundo”
(Foto © José Rebelo)
“O que sentimos é que [as igrejas não têm] um grande apelo sobre as pessoas. Questões culturais como a crença nos espíritos e na cura são difíceis de penetrar e fazem com que nós, os católicos, sejamos considerados estranhos.” A afirmação é do padre José Rebelo, dos Missionários Combonianos, 57 anos, a viver em Pretória, África do Sul, há sete anos. A trabalhar no país pela segunda vez, depois de ali ter estado no final do regime do apartheid, José Rebelo está, agora, a dirigir a revista WorldWide, dos Combonianos. E descreve a realidade altamente desigual e pobre que encontrou na nação pós-regime do apartheid e depois da presidência de Jacob Zuma (2009-2018), acusado de estar envolvido em escândalos de corrupção.
Um dos problemas graves no país é também o da violência xenófoba. Na semana passada, o arcebispo de Joanesburgo, Buti Joseph Tlhagale, denunciou ataques de violência xenófoba ocorridos em Zeerust e Soweto. Pelo menos quatro comerciantes estrangeiros perderam a vida: “Mais uma vez, tivemos de ver fotos de bem vestidos e bem alimentados sul-africanos a pilhar lojas de estrangeiros, atacando os donos e deixando para trás devastação e mortes”, afirmava, citado pela agência Fides, o também presidente do Instituto para os Migrantes e Refugiados da Conferência Episcopal da África Austral (África do Sul, Botswana e Suazilândia).
Arcebispo de Joanesburgo, Buti Joseph Tlhagale
(Foto © José Rebelo)
De acordo com o sítio de informação financeira Bloomberg, a África do Sul é a segunda economia “mais miserável do mundo” (apenas atrás da Venezuela), com uma das maiores taxas de desemprego do mundo (27,5 por cento) e com uma alta inflação (5,1 por cento).
Adicionalmente, relatórios da polícia nacional divulgados pelo The Guardian dão conta de uma subida da taxa de homicídios em mais de sete por cento, com um total de 20 mil pessoas mortas entre abril de 2017 e março de 2018 (ou seja, 57 mortes diárias, em média).
Perante esta realidade, José Rebelo refere os obstáculos que as igrejas encontram para prestar auxílio às pessoas que mais precisam: “A Igreja Católica na África do Sul é minoritária, não tendo grande relevância – até por causa de uma falta de identidade católica –, e por isso é difícil conseguir ajudar a população mais fragilizada.” O missionário português conta ainda que o crime também já acontece dentro das igrejas, com episódios de roubos da coleta de domingo, em alguns casos duas vezes em três meses.
Além das dificuldades económicas, o padre Rebelo comenta as afirmações do arcebispo sobre os conflitos preocupantes no âmbito multicultural e interconfessional. Segundo José Rebelo, os ataques referidos por Buti Joseph Tlhagale já se repetem com frequência. A situação, diz, pode mesmo manter-se ou agravar-se: “O sul-africano tem pouco conhecimento do ‘outro’. Na escola, muitos não aprenderam história nem geografia. Portanto, o seu conhecimento do mundo é escasso, tendo ideia que o país é muito rico e que os imigrantes vêm roubar empregos.”
Cidade do Cabo: “O sul-africano tem pouco conhecimento do ‘outro’.
Na escola, muitos não aprenderam história nem geografia.”
(Foto © José Rebelo)
O missionário descreve ainda que os imigrantes vêm de todo o continente: Congo, Camarões, Malawi, Zimbabué, Zâmbia, Moçambique... Por serem pessoas com vontade de trabalhar em qualquer coisa, algo que os sul-africanos por vezes “não se encontram dispostos a fazer” geram-se tensões constantes, que acabam por culminar em episódios que contribuem para as elevadas taxas de criminalidade do país: “Obviamente, quando se fala de racismo, pensa-se que é dos brancos em relação a negros. Muitas vezes, esquece-se que há preconceitos dos africanos em relação a outras culturas.”
Nação arco-íris?
Designada como “nação arco-íris”, a África do Sul é uma nação muito diversa. Nela habitam 57 milhões de pessoas divididas em quatro grupos étnicos: negros (a maioria, com 80,2 por cento), mulatos, caucasianos e uma menor percentagem de asiáticos, que falam onze línguas oficiais diferentes. O Estado, secular, garante liberdade religiosa. A maioria (80 por cento) da população afirma-se cristã, distribuindo-se por, pelo menos, dez igrejas protestantes e a Igreja Católica. Outras religiões, como o islão e o hinduísmo, estão também presentes.
As igrejas cristãs históricas, como a Católica, Anglicana e Metodista, abrangem cerca de oito por cento da população cada uma. A maioria dos cristãos pertencem a comunidades ou igrejas de cariz local e matriz pentecostal: dando grande importância ao Antigo Testamento, as comunidades pentecostais permitem combinar as ideias religiosas com alguns aspetos da cultura local.
Sul-africanos numa celebração litúrgica: os cristãos são a maioria,
mas as igrejas históricas representam apenas cerca de um quarto da população do país
(Foto © José Rebelo)
José Rebelo observa que, para muitos sul-africanos, essa simbiose é normal. E ilustra com uma história recente: “Uma das nossas melhores catequistas não apareceu na missa durante dois meses. Achei estranho e fui visitá-la, tentar perceber o que se passava. Contou-me que, nos últimos meses, quando ia receber o salário ao banco e ia depois às compras, o dinheiro desaparecia-lhe do bolso. Isto traduz a crença zulu no fantasma tokoloshe,que faz as coisas desaparecer. Uma das vezes em que foi ao banco buscar o salário, veio um pastor de uma igreja pentecostal que rezou por ela e o dinheiro nunca mais desapareceu.”
Perante uma mentalidade tão mítica, como é que as igrejas cristãs podem reagir? “É difícil. A nossa pastoral teria de ser reformulada em muitos aspetos, de modo a conseguir atingir mais pessoas...”
Sem comentários:
Enviar um comentário