terça-feira, 11 de setembro de 2018

Juan Maria Uriarte: A resistência ao Papa durará, porque ele afronta interesses

Entrevista de António Marujo 



Juan Maria Uriarte: O problema central da pedofilia é a 
muito baixa maturidade afectiva e sexual das pessoas
(foto © Diana Quintela)


No JN de domingo, foi publicada uma versão mais reduzida desta entrevista. Fica a seguir a versão completa.

Há uma resistência contra o modo de governar do Papa, pela sua abertura no campo disciplinar e pelo seu modo de afrontar os problemas sociais , diz Juan Maria Uriarte, ex-bispo de San Sebastián. 

Quando o celibato não se vive bem, acentua o carácter de poder, opressão e controlo sobre as pessoas, diz o bispo emérito de San Sebastián (Espanha), Juan Maria Uriarte, que esteve [na] semana [passada] em Fátima, a participar no 9º Simpósio do Clero, com quase meio milhar de padres. Uriarte defende que o problema central da pedofilia é a muito baixa maturidade afectiva e sexual das pessoas e que os abusos cometidos por membros do clero baixaram drasticamente com as medidas já tomadas. E defende a maior integração de áreas como a psicologia e sociologia na formação de seminaristas. 

P. – Não refere muito no seu livro O Celibato (ed. Paulinas), nem o fez em Fátima, ao tema dos abusos. Ele não tem relação com o celibato?
JUAN MARIA URIARTE – Os estudos que conheço provam que não existe uma correlação positiva entre celibato e pedofilia. O problema central da pedofilia é a muito baixa maturidade afectiva e sexual das pessoas. A imensa maioria dos casos de pedofilia acontecem com pessoas casadas, no seio das famílias, e também há casos entre líderes de outras confissões religiosas que se casam. 
A imensa maioria dos padres que conheço têm alguma maturidade. Há um grupo nada desprezível de sacerdotes que vivem elegantemente e com alegria interior a sua vida célibe. Há outro grande grupo para quem o celibato é uma experiência honesta e um adquirido aceitável. Há outro grupo para quem o celibato é um problema que lhes provoca sofrimento e, se pudessem casar-se, fá-lo-iam.
P. – Então a causa principal dos abusos é essa falta de maturidade?
R. – Sim, é o nível muito baixo de maturidade, que leva, por vezes, a repetir esquemas que os próprios sofreram na sua infância. Mas também há elementos da cultura actual que não ajudam: uma mentalidade que tendeu a uma prática sem limites, talvez em resposta a costumes demasiado restritivos do passado – já Freud dizia que uma praxis genital desorbitada alimentava a propensão a formas arcaicas e desviadas; e a ideia da satisfação ilimitada e imediata. Duas coisas importantíssimas na educação seria ajudar a digerir a insatisfação e a tolerar a frustração. 
P. – Já há notícias de novas investigações como a da Pensilvânia. Vamos continuar a ouvir a mesma história mais dez ou vinte anos ou a Igreja deve ser mais proactiva e fazer uma investigação geral e limpar a casa de vez? 

R. – As medidas restritivas que a Santa Sé tomou nos últimos anos, baixaram drasticamente o número de abusos cometidos. A sociedade e os meios de comunicação desvendaram e revelaram os crimes cometidos por muitos clérigos e, dessa maneira, contribuíram para reparar as vítimas. Mas, por amor à humanidade mais frágil – as crianças e adolescentes –, eu pediria que, quer os cidadãos, quer os juízes, os governantes e os meios de comunicação fizessem o mesmo esforço para desvelar outros grandes casos de pedofilia no mundo educativo, do ócio, familiar, etc.. É importante reprovar justamente os desvarios de clérigos e seria importante ter o mesmo zelo para revelar este problema que aflige a humanidade. 
P. – Mas a Igreja é uma instituição com uma hierarquia visível, e na qual não deveria existir um único caso – e esse é o motivo do escândalo. 
R. – Naturalmente. A Igreja, pela sua missão, pelo seu conteúdo evangelizador, pela tarefa educativa e pela sua função na sociedade, tem uma importante tarefa a realizar neste campo. Mas, por melhor que a cumpra, deixa a descoberto uma imensa parte que compete a outros. E não se trata de nenhum espírito reivindicativo, mas do amor a essas gerações mais frágeis, que sofrem a grande ofensa de ser vítimas de pedofilia. 


A conduta do monsenhor Viganò com o Papa Francisco parece-me deplorável
(foto © Diana Quintela)

P. – Como encara a carta do bispo Viganò e do seu pedido de que o Papa resigne? 
R. – A conduta do monsenhor Viganò com o Papa Francisco parece-me deplorável. Em alguns sectores da hierarquia, que mostram publicamente o seu desacordo com o Papa, pode existir o temor (a meu ver, infundado) de que determinadas mudanças disciplinares comportem mudanças doutrinais inadmissíveis. Não sei se em alguns casos particulares há outros interesses pelo meio. Fico admirado com a firmeza e a mansidão com que o Papa reage diante deles. 
P. – O que se passa manifesta uma grande resistência ao Papa e ao que ele propõe...
R. – A resistência durará algum tempo, porque [o Papa] ataca também interesses. Mas é uma resistência de uma parte minoritária, porque creio que a grande maioria da Igreja está com o Papa Francisco. E não só: também a sociedade; há muito tempo que não havia um Papa com um tal impacto na sociedade. Há uma resistência contra um modo de governar, uma linha mais aberta no campo disciplinar, a abertura aos leigos, o modo directo como aborda os problemas e fala com os bispos (no sentido de levar esta reforma evangélica e eclesial a todas as dioceses), o seu modo de afrontar os problemas sociais, o neocapitalismo... Tudo isto cria resistências na sociedade e numa parte minoritária da comunidade e de alguns bispos... 
P. – Evidenciou, no livro e em Fátima, uma visão positiva do celibato. Não poderíamos ter a mesma visão falando de padres casados?
R. – O celibato merece uma visão positiva, não só do ponto de vista crente, mas também a partir da psicanálise e da psicologia. Masters e Johnson, gigantes da psicologia sexual norte-americana, defendiam a sublimação da sexualidade, por motivos nobres. 
Também é verdade que, na Igreja primitiva, os ministros eram casados. Pouco a pouco, ao longo dos séculos, foi surgindo o celibato. Uma razão que levou à lei do celibato é que a família gerava alguns problemas para uma disponibilidade e mobilidade maiores, ou por problemas de herança, etc. Outra foi a valorização crescente da virgindade, a partir do século III. 
P. – Também porque nessa época havia uma visão negativa da sexualidade...
R. – Sim. E reflectia a visão neoplatónica, que sublinhava o espiritual, o imaterial, e menosprezava a matéria. A Igreja deixou-se influenciar por esse pensamento neoplatónico, filosofia professada por alguns grandes padres da Igreja, como Santo Agostinho. 
P. – As ciências humanas e a psicologia não deveriam estar mais integradas na formação dos padres?
R. – Nos meus anos de seminarista, em Bilbau, havia duas disciplinas de psicologia. Mas reconheço que é insuficiente. Seria necessário estudar psicologia geral, evolutiva e da religião. E diria o mesmo para a sociologia, deveriam ter mais relevo na formação. 
P. – Diz que o celibato é “uma renúncia ao poder”. Na carta que escreveu aos bispos do Chile, o Papa fala dos abusos como o culminar de um processo que radica na “psicologia elitista” dos padres, que conduz a espiritualidades narcisistas e autoritárias, “messianismo, elitismos, clericalismos”. Nada disto tem a ver com a actual disciplina do celibato?
R. – Estas palavras do Papa são muito adequadas para os que vivem um celibato inautêntico. Em Fátima, fiz alusão a algumas derivações do celibato, como a erótica do poder. Quando o celibato não se vive bem, acentua esse carácter de poder, de opressão, de controlo sobre as pessoas. Mas quem o vive autenticamente, identifica-se com um Jesus servidor, que lava os pés aos discípulos. O autêntico celibato está trabalhado por este espírito. 
P. – Critica as maneiras “idealistas, piegas e entusiásticas” de falar do celibato; quais são elas?
R. – Há dois mitos sobre o celibato: alguns consideram-no como uma fachada exterior, que encobre uma conduta clandestina amorosa e genital. Outros pensam que o célibe é uma espécie de anjo, que está ao abrigo de toda a tentação e de toda a inclinação sexual e afectiva. São ambos falsos. Quando falo de modos idealistas ou piegas, falo sobretudo deste segundo tipo. Falar do celibato e não falar de um sujeito que vive sempre como aprendiz do celibato, não faz sentido. Somos sempre aprendizes: de padres, de esposos, de célibes... Entre o que desejamos e o que temos, está o celibato que podemos.  
P. – E quando há uma tentação forte ou uma traição ao celibato, como se faz? Por exemplo, no caso em que um padre tem um filho, deve renunciar ou à vida familiar ou ao ministério. Não deveria também ter-se em conta a criança que entretanto surgiu?
R. – Há uma via mais justa: a de assumir responsabilidades para com o filho, mas sem viver em família. Como em outros casos os esposos assumem responsabilidade por um filho sem responsabilidade familiar, essa seria a maneira possível de não abandonar a responsabilidade da paternidade, de modo compatível com o exercício do ministério. Sem ser perfeita, essa fórmula seria a possível para manter os dois compromissos, que têm ambos identidade antropológica e espiritual. 
P. – No seu livro aponta as tarefas para aprender o celibato: interioridade, sobriedade, transparência, motivações purificadas, oblatividade e amizade. Mas olhamos para muitos padres e a sensação é que está tudo por aprender...
R. – Todos somos aprendizes de célibes. Nem todos chegarão a um nível de maturidade suficiente e de consequência prática com o celibato e os seus valores. Mas a experiência que tive com milhares de sacerdotes em Espanha, Portugal, Itália e seis ou sete países da América Latina, faz-me dizer que há sacerdotes que vivem estes valores de modo muito nobre, outros que o vivem de forma aceitável e alguns de maneira pouco aceitável.  


Perfil: Mediador com a ETA, formador de padres

Depois de ter sido bispo de Zamora (1991-2000), Juan Maria Uriarte voltou ao País Basco (onde nascera em 1933), como bispo de San Sebastián (2000-2009). Ordenado padre em 1957, em Bilbau (onde foi 15 anos bispo auxiliar), licenciou-se em teologia em Madrid (1963) e em psicologia em Lovaina (Bélgica), em 1974. No seu livro O Celibato (ed. Paulinas), cita pensadores marxistas e freudianos, psicólogos e teólogos heterodoxos, debatendo as suas ideias. “Ao estudar em universidades civis, onde há professores de todas as ideologias, inclusive ateus, habituamo-nos a escutar. Isso torna mais fácil dialogar com estas pessoas. E isso é próprio de todos os que viveram imersos num ambiente civil”, dizia, na entrevista. Defensor do diálogo como forma de resolver o conflito do País Basco, integrou, em 1998-99, o grupo de mediadores entre o Governo espanhol, de José María Aznar, e a ETA. Dedicou muito do seu tempo à formação do clero e dos seminaristas, na aproximação à contemporaneidade, tendo publicado vários livros sobre esses temas.  
(foto © Diana Quintela)

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