terça-feira, 4 de setembro de 2018

Andar junto ao chão

Exposição/crónica de José Tolentino Mendonça


(Fotos de Rui Martins; reproduzidas daqui)


Numa crítica publicada na revista E, do Expresso, José Luís Porfírio descreve o que se vê: “A noite parece crescer a partir de um chão granuloso que se lamenta debaixo dos nossos pés convertidos em visão desta peça singular, o escuro cresce para melhor exaltar a luz deitada num esquife flutuando sobre o chão de ferro que geme e nos desequilibra. Ao longe, não sabemos onde nem quando, a água corre, temperando, cristalina, os lamentos do chão. Vemos com os ouvidos e vemos em estereofonia sentindo o piso irregular e a água correndo algures, porém, o mais importante é a luz que transfigura a matéria...”
Na Capela de Nossa Senhora da Bonança, conhecida como Capela do Rato, em Lisboa, pode ainda ver-se, entre quinta-feira e domingo (dias 6 a 9 de Setembro) a instalação “Junto ao chão”. Serão os últimos dias para poder ver esta mostra original, em que as cadeiras foram retiradas do espaço litúrgico e substituídas pela instalação do artista plástico Carlos Nogueira e textos do poeta Manuel de Freitas.
Essa matéria, escreve ainda José Luís Porfírio, é “escória de ferro escondida pela sombra, um leito de sal flutuando sobre a noite, é o foco de luz que o ergue do chão, e é o gravador trazendo a água e o vento”.
«capela/ escória de ferro, ferro, sal, luz,/ o som do vento e da água que corre,/ bonança» são os elementos presentes e evocados na instalação, que extraiu os bancos do espaço e o imergiu na penumbra, cobrindo o claro chão liso de porosa gravilha cinza.
«Junto ao chão é também o lugar de um corpo que só pode olhar para o alto, e tentar descobrir, como diz São João da Cruz citado por Carlos Nogueira, o caminho para chegar das coisas que vêem às coisas não se vêem», escreve Luísa Soares de Oliveira na folha da exposição. (Aqui podem encontrar-se elementos sobre o artista.)
Matéria, no texto citado, são ainda “os nossos corpos intrigados e hesitantes, barulhentos de vozes orientando-se nessa penumbra, ou o meu corpo isolado sem mais ninguém”, numa relação com o espaço que nos pode levar a “uma capela imaginária que pode morar dentro de nós.”

Na sua crónica semanal na revista EJosé Tolentino Mendonça escreveu também sobre esta exposição. Transcreve-se o texto a seguir:

Foi o escritor Gonçalo M. Tavares que um dia, na Capela do Rato, me disse: “vocês poderiam retirar todas estas cadeiras e encher de areia o pavimento, para lembrar aos crentes que a fé é experiência de nomadismo e estrada, mais do que confortável sedentarismo”. Ele talvez nem se recorde já, mas, desde aí, isso ficou-me na cabeça e tenho contado muitas vezes esta história, embora, confesso, mais como repto a uma desinstalação interior do que propriamente como desafio a uma reconfiguração do espaço sagrado em tais moldes.

Depois aconteceu isto: há muito tempo que na Capela do Rato, onde fui estes anos capelão, se vinha pensando aproveitar o habitual fecho estivo da capela para lançar um convite a artistas que nos ajudassem, com outras linguagens e até outros pontos de vista, a aprofundar a procura que ali, em comunidade, fazemos. A Luísa Soares de Oliveira aceitou ficar como curadora deste projeto e propôs uma dupla para iniciá-lo: Carlos Nogueira, que criaria uma instalação, e o poeta Manuel de Freitas, que teria à sua responsabilidade a elaboração dos textos. Ora, logo nas primeiras conversas, e sem saber do comentário de Gonçalo M. Tavares, Carlos Nogueira propôs-se retirar as cadeiras do espaço e cobri-lo com escória de ferro, ocultando completamente o soalho atual e forçando a que, no caminhar, tomemos maior consciência da forma e do som dos nossos próprios passos (coisa tão necessária, mas afinal tão pouco frequente). Este verão, quem entrar na capela, escutará antes de tudo a marcha dos seus passos através da escuridão. E não é fácil caminhar sobre a gravilha irregular ali colocada: é como se o corpo precisasse de se interrogar de novo acerca disso que é mover-se de um ponto a outro, de uma exterioridade a um interior, de um aqui a um além. Sim, que trânsito é esse? E ainda: como se faz? É como se o nosso corpo fosse implicado num processo de interrogação, pensamento e reaprendizagem.  


Na clareira central, Carlos Nogueira colocou uma escultura de ferro, longa e branca como uma mesa aberta ou um sepulcro vazio. O impacto do branco é obtido por uma coesa camada de sal sobre a qual recai uma luz que acentua o cromatismo. Um branco assim pode ser lido como um signo cristológico, pois recorda a passagem do Evangelho de Marcos, no episódio da transfiguração de Jesus: “as suas vestes tornaram-se tão brancas como nenhum lavadeiro sobre a terra as poderia branquear” (Mc 9,3). E se tivermos presente que o branco da escultura é uma exalação do sal, encontramos um novo envio a Jesus, que disse aos seus discípulos: “Vós sois o sal da terra” (Mt 5,13).  No antigo ritual do batismo, colocava-se na boca do neófito um grão de sal, enquanto o celebrante repetia: “Deus dos nossos pais, Deus, autor de toda a verdade, encarecidamente vos pedimos, olhai com bondade para o vosso servo que acaba de provar este primeiro alimento, o sal. Saciai-o quanto antes com o pão celeste”. Talvez não seja despropositada esta referência ao batismo, pois Carlos Nogueira pontua também o silêncio da capela com o som da água que corre – na gramática cristã, uma alusão à fonte batismal – e de um vento delicado que esparsa o invisível – símbolo da efusão do Espírito Santo e dos seus dons. 
A exposição chama-se “Junto ao chão” e, como explica o poeta Manuel de Freitas, “num silêncio cada vez maior... oferece-nos um chão perdoável”. Acho que é exatamente isso, qualquer que seja a chave com o que o interpretemos.

Junto ao chão
Capela do Rato (Lisboa) – Calçada Bento da Rocha Cabral, 1 – B
Quinta-feira a Domingo, entre as 14h30 e as 19h00; até 9 de Setembro

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