terça-feira, 18 de setembro de 2018

Uma rota para respirar o tempo

Exposição
Texto de António Marujo


Santa Maria da Graça; séc. XVI (1º quartel), 
autor desconhecido, prov. Catedral de Setúbal
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)

Quando se entra, três grandes ecrãs dão o mote a esta exposição diferente: neles se vêem imagens, captadas com uma câmara fixa, dos claustros das catedrais do Porto, Santarém e Évora. Vêem-se pessoas a atravessar uma ala do claustro, saem da imagem, surgem pessoas noutro ecrã e saem de novo na nossa direcção ou caminham em sentido contrário. As catedrais são espaços vivos, dizem-nos as imagens. São utilizadas e visitadas, são lugares onde se respira o tempo, na articulação entre o passado que as construiu, o presente que ali se vive e o futuro que promete mais vida ainda. 
Assim a exposição Na Rota das Catedrais: Construções (d)e Identidades possa contribuir para isso. Patente no Palácio Nacional da Ajuda até final deste mês (desde 28 de Junho), ela traz, até junto do grande público, tesouros de 26 catedrais portuguesas (as 20 das dioceses existentes, mais quatro antigas (Bragança, Coimbra, Elvas e Silves), mais duas con-catedrais (Miranda e Castelo Branco). 
Esta exposição consubstancia ainda a ideia de uma rota a ligar o país, lugares que ajudaram a estruturar a geografia, o urbanismo e a cultura. Enfim, a estruturar identidades, como se sugere no título: “Pelas catedrais passa a história de Portugal, passa a história da arte portuguesa, passa a história das mentalidades, da sociedade, da religião, do conhecimento, da arquitectura, da urbanidade, dos valores civilizacionais em que nos revemos e identificamos”, escreve Paula Araújo da Silva, directora-geral do Património Cultural, no texto de apresentação do roteiro da mostra.  


Menino Jesus da Cartolinha; séc. XVII, autor desconhecido,  
prov. Catedral de Miranda do Douro
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)


No livro, podem ver-se fotos de todas as catedrais recenseadas e perceber os diferentes estilos arquitectónicos presentes, muitas vezes cruzados no mesmo edifício, pelas reconstruções ou remodelações que foram sofrendo: românico, gótico, barroco, neoclássico, contemporâneo... Seria interessante, aliás, que no roteiro se tivessem publicado alguns dados “biográficos”, sobre anos e épocas de construção ou remodelações e acrescentos principais, autores conhecidos e peças mais importantes, por exemplo. 

A exposição, com 111 peças e duas instalações em vídeo, segue um percurso coerente e completo, começando por fazer referência à dupla designação, em português, das igrejas-sede do bispo: a sé (do latim sede) ou catedral (do grego cathedra), ambos designando cadeira – dá-se mesmo o caso de, em roteiros turísticos, sinalização das cidades ou mesmo em instituições catedralícias, se referir um redundante “sé catedral”. 
Desde logo, repara-se na diferente materialização do conceito da catedral: espaço de várias funções – sede do bispo e do seu governo, lugar de liturgia e culto, escola de música ou de arte, definidora de espaços urbanos – as catedrais são lugares múltiplos, também na forma como constroem as diferentes linguagens artísticas, litúrgicas, rituais, urbanas... 


PúlpitoJoão Correia Monteiro, c. 1752, 
prov. Catedral de Lamego
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)

Por isso, as peças que aqui se podem ver tanto podem ser uma pequena cruz de ferro e ouro (proveniente da antiga catedral de Idanha-a-Velha) como o esboço para uma enorme rosácea ou um imponente púlpito (século XVII, Lamego). E os materiais vão desde a madeira (por vezes tosca) até ao ouro e às pedras preciosas (de que um dos exemplos mais extraordinários é a custódia em prata dourada, oriunda de Coimbra). “Com um papel de primordial relevância na estruturação do território e na organização das cidades, a catedral é aqui entendida, não apenas pela sua materialidade, mas igualmente pela sua presença intangível estreitamente ligada à comunidade que a edificou, habita e frui”, escreve, também no roteiro, a directora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, Sandra Costa Saldanha. 

Símbolos e protagonistas do poder


Cátedra dos antigos bispos de Ceuta; séc. XV, autor desconhecido, 
prov. Igreja da Colegiada de Santo Estêvão, Valença do Minho
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)


Os três primeiros núcleos são, assim, dedicados ao símbolo e aos protagonistas do poder da e na catedral. A sé é, por excelência, o lugar do bispo, onde ele toma assento e a partir do qual governa a porção de território que lhe é confiada. “Sede ou Cathedra”, o primeiro núcleo, remete para o lugar de ensino e de governo, aqui simbolizado, entre outras, pela belíssima e sóbria cátedra dos antigos bispos de Ceuta, a mais antiga cátedra episcopal portuguesa, peça medieval em madeira pintada e ferro forjado. 
“O Bispo na sua sede” (segundo núcleo) mostra os símbolos do poder episcopal, de diferentes épocas: o báculo (entre a aprumada escultura do arcebispo de Braga, João Peculiar, e o báculo inspirado nos cajados dos pastores da Serra da Estrela, esculpido por Emília Nadal, em 1983, para o bispo de Coimbra, Albino Cleto, natural de Manteigas); a cruz (onde se destaca a do bispo de Leiria, Alberto Cosme do Amaral), a mitra e o anel (em paralelo também exemplares antigos e contemporâneos, alguns dos quais com os seus autores ainda vivos). No terceiro núcleo, “O cabido: colégio para o governo”, sublinhe-se uma imponente estante de coro do século XVIII, em pau santo entalhado, proveniente de Aveiro, e um magnificente fragmento de espaldar de cadeiral, do século XVI (Guarda). 


D. João Peculiar, 5º arcebispo de Braga (?); séc. XII, autor desconhecido, 
prov. Igreja paroquial de São Pedro de Rates (Póvoa de Varzim)
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)

As duas secções seguintes – “Os fiéis: da oração à tumulação” e “Celebração e ritualidade: a casa-mãe da oração plena” – falam das funções litúrgicas. Para a catedral, como para qualquer outra igreja, convergem os fiéis, mas só ali algumas celebrações ou ritos têm lugar, sob a presidência do bispo. Note-se o contraste entre os dois bancos toscos da catedral de Viseu, construídos no século XIX, ou a elegância e fineza do Livro de Horas, iluminado no século XV em Rouen, e pertencente a frei Manuel do Cenáculo, bispo de Évora e de Beja. 
No tema da ritualidade, várias peças pedem tempo: o atril (espécie de ambão) com uma ave de suporte e o braseiro (ambos de Viseu); a caixa dos santos óleos desenhada em 2001 por Irene Vilar para a sé do Porto; o fragmento de confessionário proveniente de Viana; o imponente Candelabro das Trevas (Castelo Branco, século XVIII); e, sobretudo, três peças dos séculos XX e XXI: o estudo de Almada Negreiros para o vitral sobre o sacramento da ordem (Seminário de Cristo-Rei, Lisboa, c. 1950), a Pietá, de José Rodrigues (2012), para a nova catedral de Bragança; e o esboço para a rosácea da sé de Vila Real, da autoria de João Vieira (2002). 


PietàJosé Rodrigues,  2012, prov. Catedral de Bragança
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)


O papel das catedrais na estruturação das cidades 

O sexto núcleo, “A fisionomia da catedral e a estrutura da cidade” remete para uma outra questão central no papel das catedrais: a da estruturação das cidades onde se inserem e, ao mesmo tempo, da relação do edifício com a época em que é (re)construído ou na afirmação do gosto de cada época para a escolha do mobiliário ou das alfaias litúrgicas necessárias ao culto. Há aqui, como em quase todos os núcleos, um “cruzamento de olhares entre o espólio da chamada arte antiga e a interpretação dos mesmos temas a partir do pensamento da arte contemporânea que, embora desconhecida, também povoa as catedrais portuguesas”, como nota Marco Daniel Duarte, comissário científico da exposição.  
Nesta secção, duas peças, ambas provenientes de Coimbra, merecem destaque: a custódia em prata dourada, do século XVI; e a banqueta de altar, de João Frederico Ludovice e António Nunes Neves, em prata fundida (séc. XVIII). Um pequeno e importante filme mostra as intervenções de restauro que as catedrais portuguesas têm tido, confirmando a ideia que estes espaços continuam vivos e atentos ao evoluir dos tempos. 




Banqueta de altar; séc. XVIII, João Frederico Ludovice (desenho) e António Nunes Neves (ourives), 
prov. Catedral de Coimbra/Museu Nacional Machado de Castro
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)

“As marcas da governação: sinais, símbolos e sinetes” é o título do sétimo núcleo da exposição, onde predominam símbolos heráldicos. Além dos azulejos de Fernan Martinez Qijarro, de 1503 (Coimbra), e de várias peças com armas e brasões, vale a pena reparar no diploma de D. Afonso Henriques, que confirma a carta de couto outorgada à Sé de Braga por Afonso VII de Leão, e sua mãe, D. Urraca. 
“Sob o patrocínio da Virgem Maria” é o oitavo núcleo, que atesta a dedicação da maioria das catedrais portuguesas (com excepção das de Angra do Heroísmo e de Castelo Branco) à figura da mãe de Jesus, em diferentes invocações. Destacam-se a Senhora da Boa Morte (Coimbra, século XVIII), numa naveta tumular, a Virgem Maria (Funchal) e Santa Maria da Graça (Setúbal), ambas do séc. XVI. 

Memórias perdidas e lugares de acolhimento

A memória das dioceses extintas está no núcleo “De igrejas catedrais a igrejas paroquiais”. Quer neste, quer no núcleo seguinte, “A música nas catedrais”, fica-se com água na boca, com desejo de ver mais peças e outras referências, mesmo que as que ali se mostram sejam também importantes de de grande qualidade (com destaque para a pequena cruz de Idanha, do século IV, o grande e belo Antifonário proveniente da antiga catedral de Silves e a carranca de órgão oriunda da Guarda). 


Carranca de órgão; 1749, autor desconhecido, prov. Catedral da Guarda
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)


Nesta secção também se toma consciência da falta que faz ter uma música de fundo mais apropriada do que aquela delico-doce que está em fundo. Os sons de órgão ou do gregoriano ou de tanta música medieval, polifónica ou barroca (muitos deles gravados em catedrais) seriam sem dúvida uma aposta mais coerente, digna e bela para uma exposição desta qualidade. 
Os três últimos núcleos, enfim, trazem aspectos complementares mas igualmente muito importantes: “A catedral na confluência de outras culturas e de outros espaços” mostra como as sés se tornaram lugares habitados por todos, incluindo os pobres, os peregrinos ou as pessoas oriundas de outras regiões do mundo, aquando da primeira globalização – os dois negros a segurar lampadários são um dos exemplos. “A memória dos mortos, dos santos e os cultos locais” recorda isso mesmo, incluindo fundadores de capelas ou outros que nas catedrais se fizeram sepultar. “Património catedralício e os ‘Tesouros’ das catedrais” mostra algumas peças guardadas nos tesouros e museus das catedrais portuguesas, incluindo algumas anteriores à cristianização. O Nascimento de Cristo e a Circuncisão, ambos de Vasco Fernandes (séc. XVI, Viseu), são obviamente duas peças imensas na sua importância e beleza. 
Enfim, uma exposição a não perder, que nos aguça o apetite para dar a volta ao país a visitar estas pérolas do património cristão e cultural. 


Lampadários, séc. XVIII, autor desconhecido, prov. Catedral de Faro
(Foto © Manuel Costa/Agência Ecclesia)


(Aqui pode ver-se, em filme, uma reportagem da Ecclesia sobre a exposição)

Até 30 de Setembro de 2018

Palácio Nacional da Ajuda – Largo da Ajuda, Lisboa
Todos os dias, excepto quartas-feiras, das 10h00 às 18h00
Bilhetes: 5 euros (exposição); ou 8 euros (exposição e visita ao Palácio)

Tel.: 213637095 / 213620264
Correio electrónico: geral@pnajuda.dgpc.pt

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