domingo, 29 de março de 2015

Óscar Romero, 35 anos depois da morte: Se o grão de trigo morrer, dará muito fruto




A imagem de Óscar Romero no pórtico dos mártires na 
Abadia de Westminster, a catedral anglicana de Londres; 
a estátua de Romero está colocada entre as que representam Luther King e Dietrich Bonhoeffer


Antes da missa, o seu último acto tinha sido ir até junto ao mar, com um grupo de amigos, para “estudar” um recente texto do Papa João Paulo II sobre formação do clero.
Nesse dia, antes de celebrar a eucaristia na capela do Seminário Maior, em San Salvador, decide mudar o texto do Evangelho. Escolhe a passagem de São João, capítulo 12, quando Jesus diz: “Se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas, se morrer, dará muito fruto.”
Antes de ser morto, o arcebispo Óscar Romero ainda tivera tempo de explicar, durante a homilia, que, apesar das ameaças de morte que lhe eram feitas, ele estava disposto a continuar a lutar contra a violência e a favor dos mais desprotegidos de El Salvador. “Outros continuarão, com mais sabedoria e santidade, os trabalhos da Igreja e do meu país”, dizia.
Nesse dia, o arcebispo de San Salvador (capital de El Salvador) seria morto, durante a celebração da missa, pelas balas dos esquadrões paramilitares.
A história das últimas horas de vida do arcebispo de San Salvador, que foi assassinado há 35 anos (que passaram dia 24) foi contada há dois anos, em Lisboa, por Gregorio Rosa, bispo auxiliar de San Salvador, que chegou a trabalhar, já nesse cargo, com Óscar Romero.
D. Gregorio esteve em Portugal em 2013 para apresentar o livro A Doce Violência do Amor (Consolata Editora), que recolhe excertos de textos e homilias de D. Óscar. Como este, que serve de epígrafe e justifica o título: “Nunca ensinamos a violência. Apenas a violência do amor, a violência que pregou Cristo numa cruz, a violência que faz cada um a si mesmo para vencer os seus egoísmos para que não haja desigualdades tão cruéis entre nós. Essa não é a violência da espada ou do ódio. É a violência do amor e da fraternidade; a violência que se propõe transformar as armas em foices de trabalho.”
Agora, e após 35 anos de hesitações, o Vaticano reconheceu finalmente o martírio de Óscar Romero, que abre caminho à sua beatificação – a 23 de Maio próximo, em San Salvador.
Esta decisão só foi possível graças à decisão do Papa Francisco, tomada pouco depois da sua eleição, em 2013. Até porque, como reconheceu há pouco o arcebispo italiano Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família e postulador da causa de beatificação de Romero, houve muitos obstáculos a vencer dentro do próprio Vaticano.

Entre os adversários de D. Óscar, estavam dois influentes cardeais colombianos: Alfonso López Trujillo, que já morreu, e Darío Castrillón Hoyos, aposentado. Ambos eram conhecidos pelas suas posições ultra-conservadoras e  ocupavam, na década de 1990, importantes cargos na Cúria Romana.
“López Trujillo temia que a beatificação de Romero se transformasse na canonização da Teologia da Libertação”, comentava Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, movimento que apoiou a causa de Romero. Mais elementos sobre a história do crime contra o arcebispo e dos bloqueios que o seu martírio pode ter tido no Vaticano (e que algumas fontes apontam mesmo à própria Congregação para a Doutrina da Fé, então presidida pelo cardeal Ratzinger) podem ser lidos aqui.

“Ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza” 

Durante anos, ainda enquanto estava vivo, e mesmo depois de morto, Romero era acusado por políticos e militares de extrema-direita de ser “desequilibrado”, “marxista” e um “títere manipulado por padres da Teologia da Libertação que escreviam para ele os inflamados sermões” contra a oligarquia, as injustiças sociais e a repressão em seu país.
A proximidade do arcebispo com Jon Sobrino, teólogo jesuíta que tinha escapado ao massacre de Ignacio Ellacuria e dos outros mártires da Universidade Centro-Americana, em 1989 (e que continuam também à espera do reconhecimento do seu martírio) era outros dos factores que levavam os detractores de Romero a acusá-lo.
Na última semana, a propósito da publicação em França de duas das suas obras cristológicas mais importantes (Jésus-Christ libérateur. Lecture historico-théologique de Jésus de Nazareth, e La foi en Jésus-Christ, ambos nas Éditions du Cerf), o La Croix citava Jon Sobrino: “Muitos bispos, padres e fiéis também se deram conta de que, neste mundo, ser humano, ser cristão, ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza.” E, lembrava o jesuíta, as décadas de 1980-90, foram também décadas de mártires na América Latina: Juan Gerardina Guatemala, Enrique Angelellina Argentina, os professores e funcionários da UCA e Óscar Romero, em Salvador.
Foi precisamente Ellacuria que apresentou Jon Sobrino ao arcebispo, conta a notícia do La Croix, que pode ser lida aqui numa tradução em português.


Jon Sobrino (foto reproduzida daqui)

E, recorda o teólogo jesuíta no mesmo texto, “depois de 1977, em El Salvador, 17 padres e cinco religiosas foram mortos, assim como centenas de cristãos e de cristãs.” E acrescenta: “Eles doaram as suas vidas para defender os pobres e os oprimidos. Nas suas vidas e nas suas mortes, esses cristãos e cristãs se assemelharam a Jesus. Nós os chamamos de ‘mártires jesuficados’. Muitos outros, dezenas de milhares, foram mortos. vítimas inocentes e indefesas. Nós os chamamos de ‘povo crucificado’."
Também Sobrino confirma ter tido problemas com a Congregação para a Doutrina da Fé: “Foi feita uma guerra obstinada contra” a teologia da libertação. “Desde os meus primeiros artigos sobre Jesus Cristo e o Reino de Deus, eu tive problemas com Roma: falar de Jesus de Nazaré não era apreciado pela Congregação para a Doutrina da Fé.”
No mesmo artigo, recorda-se que, em 1983, quando o colombiano Trujillo foi nomeado cardeal, anunciou claramente que queria “acabar” com teólogos como Gutiérrez, Boff ou Sobrino. “O que foi atacado não foi nem Boff, nem Gutiérrez, nem Sobrino, mas Jesus de Nazaré, Deus que se uniu aos pobres e que ouviu o seu clamor”, diz agora o teólogo que, no mesmo texto, avalia ainda a actualidade dos seus dois livros e da missão da Igreja latino-americana: “Há muito tempo, um agricultor contava: ‘Dom Romero dizia a verdade, defendia a nós, os pobres, e por isso o mataram’. É isso que a Igreja deve fazer. Dizer a verdade, dizer que aquilo que acontece hoje é um desastre. Defender os pobres, isto é, não só ajudá-los, mas também estar do seu lado contra os opressores, sejam eles quem forem.”
Também Gustavo Gutierrez, o autor de Teologia da Libertação, o livro que cunhou a designação dessa corrente teológica, escreveu esta semana no diário La República, do Peru, um texto sobre O testemunho de Monsenhor Romero. Nele, escreve que o processo que agora culmina com a beatificação “não foi fácil” e que o caso do arcebispo assassinado se insere “numa longa e dolorosa história, de sinal martirial, vivida por muitos no continente desde há 50 anos”. Romero, acrescenta o teólogo peruano, “não buscou o martírio, encontrou-o no caminho da sua fidelidade à entrega de Jesus Cristo”, na sua “firme atitude de pastor que não calou perante o mau trato a um povo vítima de injustiças e humilhações quotidianas”. (O artigo pode ser lido aqui na íntegra, em castelhano.)

Perguntas incómodas na rádio

A voz de Romero fazia-se ouvir mesmo através da rádio. Num tempo em que a maior parte dos mais importantes media do país evitavam relatar a violência militar, o arcebispo recusava a censura e o silêncio conivente e usava a estação de rádio e o semanário da diocese para denunciar, através das suas homilias, textos ou intervenções as torturas, assassinatos ou desaparecimentos de pessoas.
“Romero fazia perguntas na rádio” sobre esses casos, recordava o bispo Gregorio Rosa, na sua passagem por Portugal, sobre os contornos de uma das suas características que são recordados também neste texto.


Óscar Romero na rádio (foto reproduzida daqui)

Esse confronto de Romero com o poder político-militar, fortemente apoiado pelos Estados Unidos, é também recordado por Noam Chomsky no texto que pode ser lido aqui.
O martírio de Óscar Romero tem ainda um alcance ecuménico. O ex-arcebispo de Cantuária e primaz da Comunhão Anglicana, Rowan Williams, afirmou que considerava o arcebispo não só “como um mestre e um mártir que testemunha a justiça junto dos pobres, mas como um mestre que tem algo fundamental, vital para nós sobre o que e quem somos enquanto Igreja, enquanto igrejas que buscam estar mais unidas”. E acrescentava: “A interrogação que ele nos põe é: se estaremos verdadeiramente unidos quando estivermos mais profundamente unidos com Cristo, então há um lugar simples para começarmos a nossa caminhada em direção à unidade, e este é aprender a estar unidos com o grito, a necessidade e a pauta daqueles que estão em risco, e onde for o caso de irmos e partilharmos deste risco.” (Excertos alargados do texto do arcebispo Williams podem ser lidos aqui, numa tradução para português.)
No livro A Doce Violência do Amor, pode ler-se um excerto da homilia de Romero, a 21 de Janeiro de 1979, na missa do funeral do padre Octávio Ortiz e de mais quatro jovens assassinados pelas forças de segurança salvadorenhas numa casa de retiros: “Este mundo passa; somente permanece a alegria de se ter vivido para implantar, nele, o reino de Deus. Passarão pela boca do mundo todos os boatos, todos os triunfos, os capitalismos egoístas, os falsos êxitos da vida. Tudo isso passa. O que não passa é o amor, a coragem de reverter o dinheiro, os bens, a profissão ao serviço dos outros, a dita de compartilhar e de sentir todos os homens como irmãos. Ao entardecer da vida, julgar-te-ão pelo amor.”

Óscar Romero foi um grão de trigo que já multiplicou o amor.

1 comentário:

São disse...

Excelente texto sobre um sacerdote genuíno e corajoso que lutou a favor de quem devia e que João Paulo II ignorou cinica e completamente , mesmo quando Romero lhe denunciou a selvajaria da ditadura de El Salvador.

Quanto ao Vaticano, salvaguardando as devidas excepções, é um poço de víboras.

Basta ler, só para exemplificar, "O Vaticano Contra Cristo", escrito por elementos da Cúria.

Santa Páscoa.