A
imagem de Óscar Romero no pórtico dos mártires na
Abadia de Westminster, a
catedral anglicana de Londres;
a estátua de Romero está colocada entre as que
representam Luther King e Dietrich Bonhoeffer
Antes da missa, o seu último acto
tinha sido ir até junto ao mar, com um grupo de amigos, para “estudar” um recente
texto do Papa João Paulo II sobre formação do clero.
Nesse dia, antes de celebrar a eucaristia
na capela do Seminário Maior, em San Salvador, decide mudar o texto do
Evangelho. Escolhe a passagem de São João, capítulo 12, quando Jesus diz: “Se o
grão de trigo não cair na terra e não morrer, continuará ele só. Mas, se
morrer, dará muito fruto.”
Antes de ser morto, o arcebispo Óscar
Romero ainda tivera tempo de explicar, durante a homilia, que, apesar das
ameaças de morte que lhe eram feitas, ele estava disposto a continuar a lutar
contra a violência e a favor dos mais desprotegidos de El Salvador. “Outros
continuarão, com mais sabedoria e santidade, os trabalhos da Igreja e do meu
país”, dizia.
Nesse dia, o arcebispo de San
Salvador (capital de El Salvador) seria morto, durante a celebração da missa, pelas
balas dos esquadrões paramilitares.
A história das últimas horas de
vida do arcebispo de San Salvador, que foi assassinado há 35 anos (que passaram
dia 24) foi contada há dois anos, em Lisboa, por Gregorio Rosa, bispo auxiliar
de San Salvador, que chegou a trabalhar, já nesse cargo, com Óscar Romero.
D. Gregorio esteve em Portugal em
2013 para apresentar o livro A Doce
Violência do Amor (Consolata Editora), que recolhe excertos de textos e
homilias de D. Óscar. Como este, que serve de epígrafe e justifica o título:
“Nunca ensinamos a violência. Apenas a violência do amor, a violência que
pregou Cristo numa cruz, a violência que faz cada um a si mesmo para vencer os
seus egoísmos para que não haja desigualdades tão cruéis entre nós. Essa não é
a violência da espada ou do ódio. É a violência do amor e da fraternidade; a
violência que se propõe transformar as armas em foices de trabalho.”
Agora, e após 35 anos de
hesitações, o Vaticano reconheceu finalmente o martírio de Óscar Romero, que abre
caminho à sua beatificação – a 23 de Maio próximo, em San Salvador.
Esta decisão só foi possível
graças à decisão do Papa Francisco, tomada pouco depois da sua eleição, em
2013. Até porque, como reconheceu há pouco o arcebispo italiano Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família e
postulador da causa de beatificação de Romero, houve muitos obstáculos a vencer
dentro do próprio Vaticano.
Entre os adversários de D. Óscar,
estavam dois influentes cardeais colombianos: Alfonso López Trujillo, que já
morreu, e Darío Castrillón Hoyos, aposentado. Ambos eram conhecidos pelas
suas posições ultra-conservadoras e ocupavam, na década de 1990, importantes
cargos na Cúria Romana.
“López Trujillo temia que a
beatificação de Romero se
transformasse na canonização da Teologia da Libertação”, comentava Andrea
Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, movimento que apoiou a
causa de Romero. Mais elementos sobre a história do crime contra o
arcebispo e dos bloqueios que o seu martírio pode ter tido no Vaticano (e que
algumas fontes apontam mesmo à própria Congregação para a Doutrina da Fé, então
presidida pelo cardeal Ratzinger) podem ser lidos aqui.
“Ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza”
“Ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a pobreza”
Durante anos, ainda enquanto
estava vivo, e mesmo depois de morto, Romero era acusado por políticos e
militares de extrema-direita de ser “desequilibrado”, “marxista” e um “títere
manipulado por padres da Teologia da Libertação que escreviam para
ele os inflamados sermões” contra a oligarquia, as injustiças sociais e a
repressão em seu país.
A proximidade do arcebispo com Jon
Sobrino, teólogo jesuíta que tinha escapado ao massacre de Ignacio Ellacuria e
dos outros mártires da Universidade Centro-Americana, em 1989 (e que continuam
também à espera do reconhecimento do seu martírio) era outros dos factores que
levavam os detractores de Romero a acusá-lo.
Na última semana, a propósito da
publicação em França de duas das suas obras cristológicas mais importantes (Jésus-Christ libérateur. Lecture
historico-théologique de Jésus de Nazareth, e La foi en Jésus-Christ, ambos nas Éditions du Cerf), o La Croix citava Jon Sobrino: “Muitos
bispos, padres e fiéis também se deram conta de que, neste mundo, ser humano,
ser cristão, ser membro da Igreja significava buscar a justiça e viver a
pobreza.” E, lembrava o jesuíta, as décadas de 1980-90, foram também décadas de
mártires na América Latina: Juan Gerardi, na Guatemala, Enrique Angelelli, na Argentina, os professores
e funcionários da UCA e Óscar Romero, em Salvador.
Foi precisamente Ellacuria que
apresentou Jon Sobrino ao arcebispo, conta a notícia do La Croix, que pode ser lida aqui numa tradução em português.
Jon Sobrino (foto reproduzida daqui)
E, recorda o teólogo jesuíta no
mesmo texto, “depois de 1977, em El Salvador, 17 padres e cinco religiosas
foram mortos, assim como centenas de cristãos e de cristãs.” E acrescenta: “Eles
doaram as suas vidas para defender os pobres e os oprimidos. Nas suas vidas e
nas suas mortes, esses cristãos e cristãs se assemelharam a Jesus. Nós os
chamamos de ‘mártires jesuficados’. Muitos outros, dezenas de milhares, foram
mortos. vítimas inocentes e indefesas. Nós os chamamos de ‘povo crucificado’."
Também Sobrino confirma ter tido
problemas com a Congregação para a Doutrina da Fé: “Foi feita uma guerra
obstinada contra” a teologia da libertação. “Desde os meus primeiros artigos
sobre Jesus Cristo e o Reino de Deus, eu tive problemas com
Roma: falar de Jesus de Nazaré não era apreciado pela Congregação para a
Doutrina da Fé.”
No mesmo artigo, recorda-se que,
em 1983, quando o colombiano Trujillo foi nomeado cardeal, anunciou
claramente que queria “acabar” com teólogos
como Gutiérrez, Boff ou Sobrino. “O que foi atacado não foi
nem Boff, nem Gutiérrez, nem Sobrino, mas Jesus de Nazaré,
Deus que se uniu aos pobres e que ouviu o seu clamor”, diz agora o teólogo que,
no mesmo texto, avalia ainda a actualidade dos seus dois livros e da missão da
Igreja latino-americana: “Há muito tempo, um agricultor contava: ‘Dom
Romero dizia a verdade, defendia a nós, os pobres, e por isso o mataram’.
É isso que a Igreja deve fazer. Dizer a verdade, dizer que aquilo que acontece
hoje é um desastre. Defender os pobres, isto é, não só ajudá-los, mas também
estar do seu lado contra os opressores, sejam eles quem forem.”
Também Gustavo Gutierrez, o autor
de Teologia da Libertação, o livro
que cunhou a designação dessa corrente teológica, escreveu esta semana no
diário La República, do Peru, um
texto sobre O testemunho de Monsenhor Romero. Nele, escreve que o processo que
agora culmina com a beatificação “não foi fácil” e que o caso do arcebispo
assassinado se insere “numa longa e dolorosa história, de sinal martirial,
vivida por muitos no continente desde há 50 anos”. Romero, acrescenta o teólogo
peruano, “não buscou o martírio, encontrou-o no caminho da sua fidelidade à
entrega de Jesus Cristo”, na sua “firme atitude de pastor que não calou perante
o mau trato a um povo vítima de injustiças e humilhações quotidianas”. (O
artigo pode ser lido aqui na íntegra, em castelhano.)
Perguntas incómodas na rádio
Perguntas incómodas na rádio
A voz de Romero fazia-se ouvir
mesmo através da rádio. Num tempo em que a maior parte dos mais importantes
media do país evitavam relatar a violência militar, o arcebispo recusava a
censura e o silêncio conivente e usava a estação de rádio e o semanário da
diocese para denunciar, através das suas homilias, textos ou intervenções as
torturas, assassinatos ou desaparecimentos de pessoas.
“Romero fazia perguntas na rádio”
sobre esses casos, recordava o bispo Gregorio Rosa, na sua passagem por
Portugal, sobre os contornos de uma das suas características que são recordados
também neste texto.
Óscar Romero na rádio (foto reproduzida daqui)
Esse confronto de Romero com o
poder político-militar, fortemente apoiado pelos Estados Unidos, é também
recordado por Noam Chomsky no texto que pode ser lido aqui.
O martírio de Óscar Romero tem ainda
um alcance ecuménico. O ex-arcebispo de Cantuária e primaz da Comunhão
Anglicana, Rowan Williams, afirmou que considerava o arcebispo não só “como um
mestre e um mártir que testemunha a justiça junto dos pobres, mas como um
mestre que tem algo fundamental, vital para nós sobre o que e quem somos
enquanto Igreja, enquanto igrejas que buscam estar mais unidas”. E
acrescentava: “A interrogação que ele nos põe é: se estaremos verdadeiramente
unidos quando estivermos mais profundamente unidos com Cristo, então há um
lugar simples para começarmos a nossa caminhada em direção à unidade, e este é
aprender a estar unidos com o grito, a necessidade e a pauta daqueles que estão
em risco, e onde for o caso de irmos e partilharmos deste risco.” (Excertos
alargados do texto do arcebispo Williams podem ser lidos aqui, numa tradução
para português.)
No livro A Doce Violência do Amor, pode ler-se um excerto da homilia de
Romero, a 21 de Janeiro de 1979, na missa do funeral do padre Octávio Ortiz e
de mais quatro jovens assassinados pelas forças de segurança salvadorenhas numa
casa de retiros: “Este mundo passa; somente permanece a alegria de se ter
vivido para implantar, nele, o reino de Deus. Passarão pela boca do mundo todos
os boatos, todos os triunfos, os capitalismos egoístas, os falsos êxitos da
vida. Tudo isso passa. O que não passa é o amor, a coragem de reverter o
dinheiro, os bens, a profissão ao serviço dos outros, a dita de compartilhar e
de sentir todos os homens como irmãos. Ao entardecer da vida, julgar-te-ão pelo
amor.”
Óscar Romero foi um grão de trigo
que já multiplicou o amor.
1 comentário:
Excelente texto sobre um sacerdote genuíno e corajoso que lutou a favor de quem devia e que João Paulo II ignorou cinica e completamente , mesmo quando Romero lhe denunciou a selvajaria da ditadura de El Salvador.
Quanto ao Vaticano, salvaguardando as devidas excepções, é um poço de víboras.
Basta ler, só para exemplificar, "O Vaticano Contra Cristo", escrito por elementos da Cúria.
Santa Páscoa.
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