terça-feira, 3 de março de 2015

Religião, humor e ofensa – um debate em Lisboa

No sítio do Observatório da Liberdade Religiosahá uma crónica sobre o recente debate Religião, Humor e Ofensa, realizado a 6 de Fevereiro no âmbito da Semana Mundial pela Harmonia Inter-religiosa, que decorreu na Casa dos Mundos, em Lisboa.
Reproduz-se a seguir o texto.



Nilton, Joaquim Franco, Jorge Bacelar Gouveia 
e António Marujo (foto CMLisboa)

O Observatório para a Liberdade Religiosa (OLR) organizou o debate Religião, Humor e Ofensa, na Casa dos Mundos, em Lisboa, a 6 de fevereiro, no âmbito da World Interfaith Harmony Week, em parceria com o Gabinete Lisboa Encruzilhada de Mundos (CML).
A iniciativa juntou o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, o jornalista António Marujo e o humorista Nilton, um mês depois dos acontecimentos de Paris, poucos dias antes de um novo ataque terrorista em Copenhaga, ainda com um caricaturista como alvo.
Para Bacelar Gouveia, a “liberdade religiosa – expressão dos sentimentos religiosos também no espaço público – tem de ser respeitada pela liberdade de expressão – liberdade para expressar a nossa opinião –, que tem limites, que não é absoluta, que não pode ofender a honra das pessoas, como está de resto estabelecido em código penal pelos crimes de difamação, injúria e calúnia”.
O constitucionalista verifica, no entanto, que identificar “o destinatário do alvo da ofensa” é uma dificuldade. Se os crimes de difamação, injúria e calúnia têm um alvo identificado – a pessoa que praticou o crime –, no caso da religião “não se dirige especificamente a ninguém, mas a uma filosofia ou uma doutrina: há pessoas que se sentem ofendidas, mas outras que nem tanto”.
Esta dificuldade é difícil de ultrapassar, sublinhando Bacelar Gouveia que “estes crimes – difamação, injúria e calúnia – são dirigidos especificamente a algo que uma pessoa fez ou não fez, enquanto no caso dos sentimentos religiosos há uma relação mais difusa entre o modo como se sente a ofensa e a ofensa a esse credo ou sentimento religioso.”
António Marujo, coordenador do blogue RELIGIONLINE, referiu a importância da difamação para a própria dinâmica religiosa. Recordou que “a blasfémia foi importante para purificar a religião, nomeadamente no percurso histórico da Igreja”. Atualmente, lembrou Bacelar Gouveia, o código penal português consagra a proteção dos sentimentos religiosos de forma “muito ténue”, embora contemplando a prática de crimes como a profanação de túmulos ou incitamento ao ódio religioso, reconhece o constitucionalista, acrescentando que, enquanto católico, sentir-se-ia pessoalmente ofendido se um jornal “fizesse por exemplo uma caricatura erótica de Jesus ou de Nossa Senhora”, justificando esta, a seu ver, uma ação nos tribunais. “Há uma diferença entre ofender e brincar com sentimentos religiosos. Se não se estabelecesse esta diferença, muitos humoristas estavam presos pelo que dizem sobre os políticos”, ironizou Bacelar Gouveia.

Nilton sente hoje mais intolerância em relação ao humor, talvez porque “as pessoas têm mais facilidade em reagir à ofensa através das redes sociais”. Trabalhar numa rádio católica é um problema para um humorista? “Brincamos muito”, diz Nilton, animador do programa da manhã na RFM. O único limite que admite ter, “de senso comum”, é o cuidado com algumas temáticas, “como o sexo, por causa das crianças que viajam com os pais à hora do programa”.

Humor, a degradação de alguma coisa?

Nilton cita Alexander Bain (1818-1903) que disse depender o humor da “degradação de alguma coisa”. “Isto nem sempre é verdade”, reclama o humorista, “porque é que o humor tem de estar ligado à ofensa?”, questiona, admitindo que “o que não é ofensivo para uns, pode ser ofensivo para outros”. Será uma questão de atitude por parte do próprio humorista. “Que conforto posso ter no meu trabalho se fizer humor para ofender deliberadamente alguém?”, pergunta Nilton, sublinhando que “ser humano está acima do ser humorista” e, até por isso, “não faz mal nenhum a um humorista pedir desculpas se, porventura, o seu humor ofender alguém”.
Diariamente “há sempre uma pessoa ofendida que me manda um e-mail com qualquer queixa”, revela Nilton que, por experiência própria, diz ser o futebol a área mais delicada para fazer humor. O humorista lembra que recentemente fez uma piada em que falava de Eusébio e o seu pai foi abordado por anónimos que o confrontaram com a anedota contada pelo filho na rádio. “Sempre que toco no universo do futebol, tenho problemas.”
Nilton diz ter mudado com a idade, assumindo já ter dito coisas “muito tolas a fazer humor”. Explica que “brinca” muito com a religião dependendo do local. “Se estiver numa aldeia no interior do país terei mais cuidado, naturalmente. Hoje tenho muito mais noção do peso das minhas palavras. O que faço é medir. Se estou num espetáculo fechado, onde posso controlar a situação e sei que as pessoas estão sintonizadas, estico-me um pouco mais. Vou entrando devagarinho e vou percebendo, pelas reações, se posso continuar ou se devo parar. Adapto-me ao momento e tenho em conta também o contexto onde estou a trabalhar.”
Não sendo legislável a “capacidade de encaixe” no humor, Bacelar Gouveia lembra que “para se saber quando se ultrapassa o limite, o direito trabalha com uma norma geral e objetiva, quanto à sensibilidade das pessoas é diferente”. O direito terá de contar com fatores como o meio, o nível cultural de quem ouve, o local, o ambiente, o contexto e isto “é muito difícil para quem julga uma queixa por causa do humor”.
Sobre os acontecimentos de Paris, António Marujo diz estar “instalada uma lógica de guerra polarizada em torno da questão religiosa – o Papa falava há pouco tempo “numa guerra mundial feita por episódios”; é o caso do conceito de “guerra contra o terrorismo” – em que só há possibilidade de haver dois campos, pelo que qualquer gesto ou atitude, como uma caricatura, é vista do lado oposto como declaração de guerra, uma traição, uma ofensa do inimigo”.
Nilton confessa ter algum receio. “Três pessoas causaram o que causaram em Paris, vivemos uma nova realidade, para onde caminhamos? Temo que seja apenas o início da retaliação cultural e política, pois cada míssil ocidental que cai numa casa do Iraque ou na Palestina, alimenta o ódio das novas gerações para com o ocidente.”

Limites ao religioso no espaço público

“Estes atos terroristas introduzem a questão política aos alegados sentimentos religiosos, e a partir desse momento a questão é também política”, constata Bacelar Gouveia. “A França tem grandes limites à religião no espaço público” e Bacelar Gouveia tem “dúvidas sobre esta obrigação de restringir a manifestação do sentimento religioso no espaço público, por quem, com uma mentalidade laicista, não quer que esses sentimentos sejam expressos em liberdade”.
António Marujo, que acompanhou várias visitas papais a Portugal, diz que também em Portugal vem sentindo uma “clara diferença” na forma de debater a presença do Papa no espaço público. Há quem ponha em causa esse direito, quando “ninguém se escandaliza se o Marquês de Pombal encher para celebrar uma vitória no futebol”.
Intervindo no debate, Paulo Mendes Pinto lembrou que o contexto português, “apesar de tudo, é diferente, uma vez que a laicidade do estado português construída nos últimos 150 anos contemplou o hábito cultural de usar a sátira, por vezes muito mordaz, para abordar a temática religiosa, nomeadamente a realidade eclesial”. Ou seja, os próprios protagonistas religiosos estão habituados em Portugal a conviver com a liberdade humorística e até com um “sentimento de ofensa” em relação à Igreja Católica.
"Veja-se o caso de Eça de Queiroz, como exemplo de tantos outros vultos da cultura que constantemente atacavam a religião – falando por exemplo de escândalos com padres e freiras – também como estratégia para, temos de reconhecer, vender livros”, lembrou o diretor do curso de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Isto faz com que a relação dos portugueses com a sátira religiosa seja pacífica. “Sabemos, mesmo em contexto religioso, rir-nos de nós próprios”, conclui Mendes Pinto.
Na conclusão, Jorge Bacelar Gouveia defendeu a criação de plataformas inter-religiosas para que se atenue o desconhecimento do “outro” na perspetiva religiosa.
Em nome da organização, Joaquim Franco – moderador do debate e coordenador do OLR – fez um “balanço bastante positivo” da World Interfaith Harmony Week, salientando “a importância da criação de espaços de encontro entre pessoas de credos diferentes”. As boas relações entre lideranças religiosas são conhecidas em Portugal, mas “falta trabalhar as bases, onde o diálogo se faz pela experiência concreta da relação, atenuando eventuais equívocos e despistando preconceitos”.
A pensar já na Semana da Harmonia entre Religiões de 2016, o OLR propõe uma plataforma de diálogo “que não fique apenas pelas lideranças” e permita, num ano de trabalho e debate, a elaboração de uma “carta de compromisso inter-religioso, enquadrada nos Direitos Humanos, valorizando a cidadania e a participação”, para realçar “o que é essencial, comum e construtivo, apesar das diferenças naturais entre credos, religiões e outros planos de consciência”.

Com o apoio da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, do gabinete do vereador Carlos Castro, do gabinete Lisboa Encruzilhada de Mundos da Câmara Municipal de Lisboa e do Parlamento Mundial das Religiões, o “Compromisso de Lisboa pretende ser um documento que “nos marque enquanto cultura”, um “monumento ao trabalho de diálogo que nesta cidade se tem produzido, mas também um profundo desejo de ir mais longe na afirmação pública de um comprometimento perante toda a sociedade”.

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