É um texto histórico e um marco na doutrina social da Igreja, onde o Papa o situa. A encíclica Laudato Sí – Sobre o Cuidado da Casa Comum foi apresentada anteontem em Roma e está já a marcar o debate político, financeiro, ambiental até à Conferência de Paris sobre o Clima, no final do ano. Podem destacar-se do texto algumas notas, que não impedem a sua leitura integral por cada pessoa, já que o Papa o destina a cada habitante do planeta.
1. Um texto de doutrina
social católica
Quarta-feira, foi o próprio Papa que afirmou que a Laudato Sí (Louvado Sejas) é um
documento de doutrina social católica. E justificou: a nossa casa comum “está a
arruinar-se e isso faz mal a todos, especialmente aos mais pobres”.
O próprio texto sugere (49*): “uma verdadeira abordagem ecológica
sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos
debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o
clamor dos pobres”. E acrescenta (63) que a doutrina social da Igreja é
“chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios”.
A encíclica não é, portanto, um texto para simples meditação pessoal dos
crentes. Porque se dirige “a cada pessoa que habita neste planeta”; e porque apela
à acção consequente de cada indivíduo, e ainda de governos, poderes
financeiros, multinacionais e organizações internacionais – âmbitos onde se
percebe uma maior distância na aplicação de vários princípios da doutrina
social da Igreja.
O Papa recorda princípios básicos da doutrina social da Igreja: por
exemplo (93), a ideia de que a terra é “uma herança comum, cujos frutos devem
beneficiar a todos”; o de que “toda a abordagem ecológica deve integrar uma
perspectiva social que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos”;
e o princípio “da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos
bens” –do qual decorre a ideia de que “qualquer forma de propriedade privada”
tem uma “função social”.
2. A Igreja toma partido e
propõe acções concretas
Muitas vezes, diz-se da doutrina social católica que ela não toma
partido por este ou aquele campo político. Isso é verdade no campo circunstancial,
mas não é verdade na afirmação de princípios irrenunciáveis, que devem ter
tradução na forma como os crentes se posicionam.
A oposição
de alguns católicos à ideia de que o Papa se “meta em política ou economia” ou
a oposição de políticos católicos à condenação, feita por João Paulo II, da
invasão do Iraque, são reflexo de uma mesma recusa da “hierarquia de valores”,
afirmada pela doutrina católica. O Papa diz (23): “Há um consenso científico
muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do
sistema climático.” Se é sabido que há quem conteste esta ideia, é evidente que
Francisco está, por isso, a tomar partido por uma determinada leitura da
realidade.
Mas há
mais: o Papa aponta exemplos de como cada pessoa pode dar o seu contributo para
ajudar a melhorar o estado da casa comum: “A educação na responsabilidade
ambiental pode incentivar vários comportamentos (...) tais como evitar o uso de
plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar
apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros
seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo
com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias...”
Com tais
sugestões, o Papa indica que a educação para a criação tem de fazer parte da
missão da Igreja. Grupos católicos vocacionados para a atenção à natureza, como
os escuteiros, têm campo aberto para reformular a sua actuação, desafiando
pessoas, empresas e governos a uma acção mais consequente.
Com estas
propostas concretas, o Papa dá legitimidade à mesma ideia em campos da doutrina
social católica como a necessária refundação do sistema financeiro, o primado
do trabalho sobre o capital, a redistribuição da terra ou comércio de armas –
todos eles temas já tratados pelos papas, desde João XXIII.
3. Uma ecologia integral
A visão
do Papa Francisco é a de uma ecologia integral. Desde a escolha do título, que
remete para o Cântico das Criaturas,
o texto proclamado por Francisco de Assis – padroeiro dos ecologistas e patrono
do nome escolhido pelo cardeal Bergoglio para Papa.
Esta
visão franciscana entende que Deus está presente em toda a criação, mas isso
tem também consequências. No nº 10, ao evocar o santo de Assis, Francisco
escreve: “Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela
natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz
interior.”
De novo,
o Papa afirma o que muitos têm dito, quando estabelecem relação directa entre
degradação ambiental e fenómenos como a delapidação de recursos dos países mais
pobres, secas e catástrofes naturais como causas que agravam o empobrecimento, ou
as migrações em massa…
Em vários
passos do texto, o Papa recorda aspectos que nascem desta visão espiritual (que
não espiritualista) de Francisco de Assis: o sentido das coisas e da vida, a
finalidade da acção humana sobre a realidade, o trabalho enquanto “relação que
o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro diverso de si mesmo” (125);
ou ainda “uma sã relação com a criação” como dimensão da mudança pessoal (218).
Uma
ecologia integral pressupõe, na visão do Papa, que não se contemple apenas de
forma espiritualista ou gnóstica a presença de Deus na natureza, sem qualquer
relação com a ecologia humana. Antes se sublinha a centralidade da pessoa (não
como dominadora absoluta da terra, mas como administradora, cuidadora, da casa
comum)
4 . Uma perspectiva cristã, não apenas
católica
A
perspectiva de uma ecologia integral repousa também na primeira assembleia
ecuménica europeia (Basileia, 1989), dedicada ao tema Justiça, Paz, Integridade da Criação.
Foi a primeira afirmação dos cristãos, na sua diversidade – católicos, protestantes,
anglicanos, ortodoxos – de que há uma relação profunda, por exemplo, entre a
destruição da floresta na Amazónia ou em África e a fuga de refugiados do Sul
para o Norte à procura de comida.
Embora a encíclica não cite o documento conclusivo dessa
assembleia, ele integra já o património comum às grandes tradições cristãs.
E nem sequer foi apenas um gesto de simpatia que,
pela primeira vez, um documento do Vaticano tenha sido também apresentado por
um alto responsável do patriarcado ortodoxo de Constantinopla: Bartolomeu,
apelidado de “patriarca verde”, tem dedicado boa parte da sua acção pastoral à
reflexão sobre as questões da integridade da criação na perspectiva de
Basileia. E o metropolita Ioannis
Zizioulas, de Pérgamo, que participou na apresentação da encíclica no
Vaticano, é um dos mais importantes teólogos ortodoxos nesta área.
Razões para considerar que a encíclica resume o actual património comum da reflexão
cristã nesta matéria – recordando ainda os contributos, para este debate, dos
anteriores papas e de várias conferências episcopais.
5. Cuidar o futuro
O cuidado
é uma noção fundamental na encíclica. Desde o subtítulo – Sobre o Cuidado da Casa Comum – até uma nova evocação franciscana:
“Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma
ecologia integral”, escreve o Papa (10).
A noção
de cuidado ficou consagrada politicamente no relatório Cuidar o Futuro, da Comissão Independente População e
Qualidade de Vida (1998/99), presidida por Lourdes Pintasilgo, texto quase
desconhecido em Portugal.
O Papa já dedicara uma boa parte da homilia do início
do pontificado, e várias outras referências, à ideia do cuidado. Na encíclica, retoma
ideias da homilia, bem como perspectivas políticas do relatório Pintasilgo, hoje
património da reflexão ambiental: “O
cuidado dos ecossistemas requer uma perspectiva que se estenda para além do
imediato” (36); o paradigma tecnocrático não parece preocupar-se com “um
cuidado responsável do meio ambiente ou os direitos das gerações futuras” (109);
o cuidado com a natureza não é próprio dos fracos mas deriva da correcta visão
da pessoa como justa administradora da natureza.
Francisco
critica ainda a ideia do crescimento sem limites, contrariando o discurso político
e financeiro que insiste no crescimento imparável e inesgotável: “Chegou a hora
de prestar novamente atenção à realidade com os limites que a mesma impõe e
que, por sua vez, constituem a possibilidade dum desenvolvimento humano e
social mais saudável e fecundo”, escreve (116).
* os números referem-se aos
parágrafos da encíclica
(texto publicado na edição do Diário de Notícias de 20 de Junho)
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