Reportagem
Um padre invisual, pároco de uma
aldeia; outro, trabalhando como enfermeiro no Hospital de São João; ambos
passaram pelo Seminário Conciliar de Braga, local de formação do clero da
diocese, onde também se aprende a cantar, se pratica futebol, se fala de arte e
liturgia e se escreve e publica nas redes sociais. A reportagem de Manuel Vilas
Boas, que passou este fim-de-semana na TSF, registou que ali se tentam formar
“pastores nómadas” e peregrinos, que saibam entender os sinais deste tempo. A
reportagem Sem mulher nem filhos pode
ser escutada aqui.
Na reportagem fala-se também da
capela Árvore da Vida, que foi construída dentro do seminário e que recebeu já
várias distinções internacionais de arquitectura. A 11 de Setembro de 2011,
publiquei na revista Pública um texto sobre A capela encantada de Braga,
dedicado em exclusivo a este espaço, e acompanhado de fotos de Daniel Rocha, e
que a seguir reproduzo:
A capela encantada de Braga
É a Árvore da Vida. A madeira
contorce-se, mostra as suas feridas, "como uma pessoa". Esta capela
pode ser um jardim, um bosque ou uma avalanche de metáforas. Desde logo, uma
metáfora de luz. E um jogo de sombras, alusivo à criação do mundo. Vinte
toneladas de madeira, sem pregos.
Será uma cabana? Um barco? Um favo
de mel? Talvez um abrigo? Uma caixa de luz? Um bosque? Há uma capela encantada
no meio do Seminário Conciliar de Braga. São 20 toneladas de madeira que
escrevem todo um tratado de teologia e beleza. E que permitem uma experiência
estética de espanto.
Esta capela também se transforma
numa grande estante, onde se podem abrigar livros de canto, de oração ou de
liturgia, colocando-os no intervalo das lamelas. Ela é, ainda, um jogo de luz
permanente, tricotando rendas, traços, sombras, redes, puzzles, desenhos
inesperados... E, sim, pode visitar-se.
"Quando começámos a pensar no
trabalho, sabíamos o que não queríamos: que o espaço fosse reconhecido como
capela apenas por ter um altar e um ambão", diz à Pública o arquitecto
António Jorge Fontes, que, com o irmão André Fontes, é autor do projecto.
Claro que nada há mais fácil do
que projectar uma igreja: uma nave central, um altar para a mesa da celebração,
um ambão para a leitura dos textos, algumas peças mais que fazem o conjunto.
Diga-se de outro modo: nada há mais difícil do que projectar uma igreja, que
conceber um espaço que remeta para o sagrado. E que o faça a partir de
elementos singelos como uma mesa de altar, uma estante de leitura e pouco mais.
No caso da capela Árvore da Vida -
iremos depois às razões do nome - do Seminário de Braga, o que constrói a ideia
de capela é mesmo o espaço, diz António Jorge Fontes. Não há um adro, mas ele
existe. Não há portas, mas estão lá duas. Não há uma cúpula, mas insinua-se
uma.
Entra-se assim: podemos vir de
baixo, da igreja de S. Paulo (que foi renovada com uma colecção de telas de
Ilda David" sobre a vida do apóstolo) e, um piso acima, da capela São
Pedro e São Paulo, o grande espaço litúrgico do seminário, que também já foi
objecto de reforma espacial. Subimos em direcção ao primeiro piso. Duas janelas
de vidro, grandes, a meio da escada, permitem ver o jardim que mais tarde será
também trabalhado. E possibilita a entrada de luz que irá brincar com
claridades e sombras no interior da capela. Uma porta pesada, sem verniz, para
deixar a madeira respirar, dá acesso a um corredor do seminário.
Ou será um átrio? É uma caixa que
envolve outra, a da capela propriamente dita. É um lugar de passagem, para o
qual convergem mais duas portas que permitem idas e vindas para os quartos dos
seminaristas. Aqui se faz um adro, com chão e paredes em microcimento, com
relevos insinuados. Como lava informe, um caos.
Baptizada "Árvore da
Vida", a capela começa por falar, nesta antecâmara, dos seis dias da
criação do mundo, numa leitura do texto bíblico do Génesis. "Quando Deus
criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia."
Envolvida por este adro está a
capela de madeira. É o lugar do cosmos ou da luz, como refere o padre Joaquim
Félix de Carvalho, 39 anos. "Deus disse: faça-se a luz", recorda o
vice-reitor do seminário (desde 2007, o mesmo ano em que se doutorou em Roma,
na área de Liturgia).
Há largos anos ligado à formação
de jovens padres, coordenador no pólo de Braga da Faculdade de Teologia,
Joaquim Félix é o arquitecto teológico desta capela. "Nas aulas, procurava
sensibilizar os alunos para cuidar os espaços litúrgicos. Falava-lhes de
capelas e igrejas de grandes arquitectos contemporâneos e isso aumentava o
nosso desconforto em relação às capelas do seminário, construídas na década de
1990."
Passou-se do desconforto a um
desafio: primeiro, reorganizar espacialmente a capela de São Pedro e São Paulo,
já existente. Esse pequeno passo preparou o seguinte: a construção/instalação
da capela Árvore da Vida, em Dezembro último (e que só terminou segunda-feira
passada, quando foi instalado o órgão de tubos).
"O projecto foi crescendo no
útero da nossa comunidade", diz a propósito Rui Sousa, de Barcelos, a
frequentar o 5.º ano de Teologia. E envolveu, além da comunidade de padres e 30
seminaristas que ali vive, os dois arquitectos, os escultores Asbjörn Andresen
e Manuel Rosa, a pintora Ilda David", o organeiro Pedro Guimarães, o
fotógrafo italiano Eduardo di Micceli, o engenheiro civil Joaquim Carvalho, os
próprios carpinteiros que trabalharam a madeira e os técnicos de iluminação. O
número de estudantes, das dioceses de Braga e Viana, tem vindo a crescer, e
hoje inclui pessoas que vêm já de outras áreas de estudo - como arquitectura,
farmácia, biologia, medicina, letras.
Andresen fala de um trabalho
colectivo. Joaquim Félix caracteriza a obra como sendo "maior que qualquer
individualidade". E António Jorge Fontes diz: "Toda a gente estava ao
serviço, queríamos reduzir o espaço à sua essência. Todos nos despimos também
de aditivos."
Não há fora, não há dentro
Pode-se estar dentro da capela e ver as pessoas a passar. Ou ver de fora, por entre as frinchas da madeira, quem reze no seu interior. Pode subir-se ao corredor suspenso e ver a caixa, por baixo, como uma cabana, um abrigo, um barco virado do avesso. Pode olhar-se também para cima e ver a cúpula rasgada no tecto, por onde se faz mais um jogo de luz - uma solução ditada já em pleno processo construtivo. Não há um limite rigoroso do que é fora ou dentro. A circulação e o diálogo que se estabelecem entre sítios, materiais, pessoas, são permanentes.
"Olhámos para o espaço
sagrado como espaço da vida. Toda a gente aqui passa, por este lugar",
indica o arquitecto. A ligação criada entre a capela propriamente dita e o
espaço que a envolve criou dois novos corredores de circulação. E novas
relações: vários quartos, por exemplo, têm saída e vista directa para a capela.
"Não podíamos estar dentro de
casa a pensar que estávamos longe da cidade", diz Joaquim Félix. Um espaço
assim "promove a relação natural com Deus, acompanha a vida de quem cá
vive, nessa relação", comenta ainda António Jorge Fontes. "A
dificuldade maior foi fazer a separação física" de algo que nasceu dentro
de um átrio de passagem. Ainda por cima, sem porta. "Não é necessária uma
porta para fazer a separação entre espaços."
A solução foi uma abertura na
estrutura de madeira entrelaçada. Uma porta que não precisa de ser aberta,
convite permanente a que se entre -mesmo se porta estreita, à imagem da
simbologia bíblica, "porta aberta pelo crucificado na manhã da
Páscoa", diz Joaquim Félix. "Diante de ti será aberta uma porta que
jamais alguém fechará", lê-se no livro do Apocalipse, o último texto da
Bíblia.
Sim: não há pregos nem ferragens
nem quaisquer outros artifícios para fazer a estrutura ou ligar as traves - que
podem ir dos cinco centímetros aos dois metros de espessura. Apenas encaixes.
Já na igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa, outro exemplo de
arquitectura maior, também não há parafusos nem ferragens, só encaixes e cola.
A madeira nunca é lisa.
Contorce-se aqui, enovela-se ali, distende-se mais à frente, mostra as suas
feridas, além. "Como qualquer pessoa", comenta Joaquim Félix. Sempre a
opção de evitar intervir sobre os materiais. Uma nudez que lhes dá plenitude.
"A arquitectura tem de ser
capaz de fazer transpirar Deus sem recurso a sobreposições nem aditivos",
diz António Jorge Fontes. Joaquim Félix diz que se deixou falar a transparência
das matérias: a madeira, o metal, o cimento, a luz. "Não houve intervenção
excessiva" sobre os materiais. A madeira levou apenas um banho de essência
de terebintina e óleo de linhaça, para o tratamento.
"É o espaço, o objectivo da
arte, não os objectos", diz o escultor norueguês Asbjörn Andresen.
Professor em várias escolas da Noruega e da Suécia, ex-reitor da Bergen School
of Architecture, a sua contribuição foi decisiva em questões como o tratamento
das madeiras e a instalação da capela, que veio da carpintaria em peças.
Estávamos ainda na antecâmara da
capela. O espaço do caos e da lava. Um banco corre ao longo da parede,
convidando a descansar o espírito antes de entrar no lugar mais íntimo. A luz
rasga, já aqui, intensa, o negro do microcimento. Um políptico da pintora Ilda
David" fala dos seis dias da criação, de novo segundo a inspiração
bíblica: a luz, os animais, a separação das águas. Embutido na parede, tal como
todos os elementos do espaço, o painel é antecipatório da própria capela.
Na coluna do centro, uma gravação
em grafito, como os usados nas catacumbas de Roma: "No princípio, criou
Deus os céus e a terra." E a mão do escultor Andresen, como sinal da
humanidade que constrói o sagrado.
No pórtico, ainda, a referência
aos relatos bíblicos de Génesis: "Depois de ter expulsado o homem, [Deus]
colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante,
para guardar o caminho da árvore da Vida." Duas miniaturas de Ilda
David", de novo embutidas na madeira, mostram os querubins de espada
flamejante colocados à porta do jardim.
Um jardim, então. Ou um bosque
encantado. "O sétimo dia, o do repouso, é a capela propriamente
dita", aponta o padre Joaquim Félix. "Ela surge como um relato
sintético dos sete dias da criação, como um bosque intrincado, o túmulo aberto
da manhã de Páscoa. E como lugar do descanso para o louvor de Deus." É uma
síntese da história da salvação na perspectiva cristã, centrada na morte e
ressurreição de Jesus, diz ainda o vice-reitor do seminário.
Quando se entra, fazemo-lo em
diagonal. É esse o eixo da capela, marcado pela entrada principal e pela
pequena porta no canto oposto - uma abertura, entenda-se, perto do altar e que
dá acesso à parte de trás. "É uma forma de dizer que o caminho interior é
o mais longo. A aproximação ao altar faz-se não em linha recta, mas em passo de
dança, como quem busca o mistério", diz Joaquim Félix. "É como nas
catedrais medievais, quando se implantavam pavimentos em labirinto ou como nas
capelas e basílicas romanas, com trabalhos de incrustação ao estilo
cosmatesco."
O tríptico da Árvore da Vida - que
acabou por dar o nome à capela - domina a perspectiva, no centro e por trás do
altar. Também da autoria de Ilda David", esteve, juntamente com outras
pinturas, nas salas nobres dos teatros nacionais S. João (Porto) e D. Maria II
(Lisboa), por ocasião da representação do Breve Sumário da História de
Deus, de Gil Vicente. Símbolo bíblico, a árvore da vida abre-se aqui numa
árvore da cruz de Cristo, representando os motivos da Páscoa - paixão, sortes
sobre a túnica e crucificação de Jesus.
A luz do poente, que ainda
tardará, já desenha rectângulos na parede. Há outro elemento que se destaca: a
pedra do altar. Veio da pedreira de Amares. Quer a do altar, quer a do degrau
da entrada ou da pequena taça de água benta, são pedras rejeitadas, não seriam
aproveitadas. "A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra
angular", diz um episódio dos evangelhos.
No caso da pedra do altar, a
esquina partida dá-lhe um dramatismo intenso. A sua verticalidade quer remeter
para a doação de Cristo na sua morte e ressurreição. Contrastando com a
horizontalidade da mesa em carvalho nacional, a imitar as mesas masseiras onde
se cozia o pão, onde ele crescia, onde se comia. Um laço, de novo em madeira,
entra na pedra e no tampo, sublinhando a unidade das duas dimensões da
eucaristia católica. A tampa do altar abre, deixando ouvir o rumor da madeira.
O "rumor das matérias", como dizia Vittorio Gregotti, um dos
arquitectos do Centro Cultural de Belém, citado por Joaquim Félix.
Há outras metáforas. Desde logo, a
luz, significação maior desta capela. Em cima, a clareira aberta no
travejamento da capela permite pensar na capela de Heinz Tesar em Viena
(Áustria) ou na Igreja da Luz, do japonês Tadao Ando. A luz do sol entra
abundante, mas concentrada, permitindo o jogo de sombras. A luz artificial está
estudada para não se sobrepor. Para "evitar o pleonasmo", diz Joaquim
Félix. E a sombra das mãos a celebrar a missa projecta-se sobre o pão e o
vinho.
No fundo, do lado esquerdo da
porta, descobre-se a pequena câmara onde foi colocado o sacrário, caixa
minúscula em madeira de freixo, como que escondida no canto esquerdo da entrada
da capela. E na qual todos os lados, menos dois, podem ser abertos. Diante
dela, um pequeno banco permite que uma pessoa se sente.
Vista deste ângulo, a capela
mostra o sacrário suspenso. E manifesta-se numa malha de luz, que vem coada
pelas frechas, filtrada da tarde exterior, expandindo-se a partir das janelas.
Ao lado, uma escultura de Manuel
Rosa, com o perfil em bronze do Cura d"Ars, padroeiro dos padres. "O
metal oxidará, sim", diz Joaquim Félix. "Mas esse é o processo
natural do tempo" e o tempo, esse grande escultor, é também pretexto simbólico.
E ainda o ambão, para a leitura dos textos bíblicos, que simboliza o túmulo
aberto de Cristo na manhã de Páscoa. Está colocado a sul, lugar simbólico da
luz de onde se proclamava o evangelho para norte, lugar das trevas. Ou as
galhetas e o jarro para a missa, que resultam da obra conjunta da barrista
barcelense Júlia Ramalho e do norueguês Asbjörn Andresen.
Mesmo os cacifos criados por baixo
do banco e pelos intervalos das pranchas de madeira são uma "biblioteca
espiritual". Que se vai alterando, mudando, consoante os livros ali
colocados pelos estudantes ou pelos formadores.
O órgão de tubos, em carvalho
francês, com as teclas em buxo, ébano e faia branca, foi a última peça
colocada. Construído pelo organeiro Pedro Guimarães, de Esmoriz, os tubos são
em metal e madeira. Bordão e Flautado Principal, um registo e meio, apenas.
Como nas origens, o som que fascina e entrega ao caminho os passos dos
peregrinos. A capela está finalmente completa e será dedicada oficialmente dia
20 de Outubro.
Vittorio Gregotti já definiu esta
capela como uma "metáfora de eternidade". Um estudante da escola
norueguesa de Bergen deixou escrito no livro de visitas: "Esta capela
abraça-me e faz-me sentir salvo na luz." Um colega resumiu: "Um lugar
que silencia as dúvidas."
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