Karen Armstrong, autora de Uma História de Deus,
ed. port. Círculo de Leitores (foto reproduzida daqui)
O final do mês islâmico sagrado do Ramadão
coincidiu mais uma vez de forma trágica, no último fim-de-semana, com um novo atentado
terrorista, em Bagdad (Iraque), que provocou quase 100 mortos.
Numa entrevista dada, em Fevereiro, a Lizette
Thooft e publicada no site do Khutbah Bank após os atentados de Paris contra o Charlie Hebdo, Karen
Armstrong comentava o seu mais recente livro com o título Fields of Blood. Religion and the History
of Violence (Campos de Sangue. Religião e
História da Violência). E afirmava: “O terrorismo não tem nada a ver com
Muhammad [Maomé], tal como as Cruzadas não tinham nada a ver com Jesus. Não há
nada no islão que seja mais violento do que no cristianismo.”
Fica aqui a versão portuguesa da entrevista,
na tradução de M. Yiossuf Adamgy, director da revista de estudos islâmicos Al Furqán.
Os ataques
terroristas em Paris originaram o seu novo livro Campos de Sangue. Religião e História da Violência repentina e
tragicamente muito urgente. Em mais de quinhentas páginas, Karen Armstrong, que
já foi freira e é autora de best-sellers respeitados como Uma História de Deus e O
Processo de Deus, responde à questão de saber se a religião é a principal
causa da violência. Uma conversa sobre o Islão e os terroristas, a
responsabilidade ocidental e o mundo em que vivemos.
Não é um
livro alegre, o mais recente de Karen Armstrong: o sangue flui livremente sobre
as páginas, metaforicamente falando. Em detalhe, ela descreve a violência que
tem sido sempre indissoluvelmente associada com o desenvolvimento de
Estados-nações e culturas. Mas é um livro necessário, uma espécie de verificação
da realidade. Pois é tempo de perceber o quanto cada civilização tem as suas
raízes na submissão e exploração, incluindo a nossa. Importante altura de ouvir
essa voz.
Karen
Armstrong entra no hall do hotel, com um ritmo firme – uma mulher pequena e
elegante, com uma madeixa loira de cabelo que continua caindo na frente de seus
olhos. E um riso pronto, apesar do assunto sombrio. Vamos começar com a
pergunta de um milhão de dólares.
Pergunta –
Existe alguma diferença entre Jesus [Issa a.s.] e Maomé [Muhammad s.a.w.] em
termos de violência ou, em outras palavras, como explica que a maior parte do
terrorismo agora seja inspirado no Islão?
KAREN
ARMSTRONG – O terrorismo não tem nada a ver com Muhammad, tal como as Cruzadas
não tinham nada a ver com Jesus. Não há nada no Islão que seja mais violento do
que no Cristianismo. Todas as religiões têm sido violentas, incluindo o Cristianismo.
Não havia nada no mundo muçulmano como o antissemitismo, que é uma importação
do período moderno. Eles tomaram de nós. Os missionários trouxeram-no. E então
veio o estado de Israel. O judaísmo tornou-se violento no mundo moderno, graças
ao Estado-nação.
P. – Mas,
então, qual é a causa do terrorismo muçulmano? No seu livro escreve que os
muçulmanos foram introduzidos na modernidade de uma forma mais abrupta...
R. – Da
maneira mais violenta. Quando George Bush e Tony Blair foram para o Iraque,
eles pensavam que a modernidade levaria todos para a democracia, imediatamente.
Não é necessariamente o caso. Ela trabalhou para nós, porque a democracia era
boa para a indústria. A liberdade, que ouvimos muito no momento, foi
fundamental para a nossa economia, tanto quanto para qualquer outra coisa. Para
as pessoas, tem de haver a liberdade para inovar, para manter o país produtivo.
Mas nesses países a modernidade veio com subjugação colonial. Não houve
autodeterminação. No Egipto houve dezassete eleições gerais entre 1922 e 1952,
todas vencidas pelo Partido Wafd, o que só permitiu aos britânicos governar
cinco vezes. A democracia foi uma piada de mau gosto.
O
secularismo foi introduzido por estes oficiais do exército, com grande
violência: o clero teve os seus salários confiscados, foram derrubados,
torturados até a morte. O Shah atirou sobre cem manifestantes desarmados num
santuário sagrado no Irão porque não queriam usar roupas ocidentais. E nós, no
Ocidente suportámos constantemente governantes como Saddam Hussein que negou ao
seu povo qualquer liberdade de expressão. Tudo isso ajudou a empurrar o Islão
para a violência. Quando as pessoas são atacadas, invariavelmente se tornam
extremistas. Mas apenas uma pequena proporção delas realmente concorda com o
terrorismo: 93% responderam “não” à pergunta na pesquisa Gallup se os ataques
de 9/11 foram justificados. E as razões que deram foram inteiramente
religiosas. Os sete por cento que disseram “sim” – as razões que deram eram
totalmente políticas.
A minha
mensagem não é que a religião não tem nada a ver com violência. Sempre foi
implicada nela, e tentar tirar a religião fora da política e da guerra teria
sido como tirar o gin fora do cocktail. Está inextricavelmente interligada. Até
ao ano 1700 ninguém pensava em separar religião; ela permeava toda a vida. E
ainda as pessoas, que não tiveram a modernização especial, acham que é uma
distinção arbitrária. Porque os assuntos como a justiça, a situação dos pobres,
o sofrimento – estas são questões políticas. E são questões de importância
sagrada.
Portanto, Jesus não teria tido tempo para as
pessoas que disseram as suas orações e negligenciaram o sofrimento dos
necessitados ou oprimidos. Mas nós separámo-la. Esta separação foi importante
para nós, e, em muitos aspectos, era boa para a religião, porque libertou-a da
violência do governo.
P. – Então a
conclusão sobre a leitura deste livro é: toda a civilização está enraizada em
violência.
Folio de uma cópia do Alcorão (séc. VIII-IX, período abássida),
em escrita cúfica (ilustração reproduzida daqui)
Nós olhamos
para a civilização como a que começou em Atenas. Mas o Pártenon foi construído
na parte de trás da ilha grega, todas as outras cidades gregas – foram
construídas com os seus impostos. Por isso, foram livre para alguns, mas não
para outros.
Ainda é
assim hoje. Nenhum Estado pode dispensar o seu exército. Ele ainda está em
curso. Mas há sempre pessoas que se levantaram e disseram: “Isso é errado”, e
têm sido tanto uma parte da religião como qualquer Cruzada ou Jihad.
P. – Ayaan
Hirsi Ali escreveu num jornal que agora é a hora de ser claro sobre o
terrorismo muçulmano ser parte do Islão. Será que ela deveria ler o seu livro?
R. – Eu não
deveria pensar que ela quer lê-lo. Ela é casada com aquele homem terrível,
Niall Ferguson, que foi o arquitecto da guerra do Iraque. E que desastre que
foi! Isso foi uma grande ajuda para a Al Qaida.
Este ataque
contra a revista não foi simplesmente inspirado pela devoção fanática ao
Profeta. Não foi apenas puramente religioso: mais uma vez, a política é
essencial. Al Qaida é profundamente política. Este foi um ataque estratégico
num símbolo sagrado. A liberdade de expressão é para nós um símbolo sagrado da
nossa civilização ocidental, tão sagrado para nós, como o Profeta é para eles.
E eles querem que sejamos indignados. Eles vão adorar isso. E eles vão
entusiasmar-se com a nova edição com o Profeta na capa. Porque isso vai levar a
novos recrutamentos. Eu não estou a dizer que era errado fazer isso, mas eles
vão usá-lo. Isso tudo é muito politicamente organizado».
P. – O que deve ter acontecido?
R. – Eu não
sei! Mas acho que uma das coisas que devemos fazer é chorar os seus mortos
também. Não há muito tempo atrás 165 crianças paquistanesas foram filmadas
pelos taliban. Dois mil moradores na Nigéria foram abatidos por Boko Haram. Mas
nós não estamos marchando por eles. Assim, a impressão que dá é que nós
simplesmente não nos importamos, que as suas vidas não são tão valiosas para
nós. Portanto eu acho que nós devemos tomar nota de que não somos os únicos a
ser mortos por extremistas. Muito mais muçulmanos estão a morrer.
P. – São os
terroristas traumatizados primariamente?
R. – Alguns
deles são, e alguns deles são simples malvados. Ossama bin Laden era um
criminoso comum. Mas também há um grande temor e desespero entre eles. Houve
levantamentos realizados por psiquiatras forenses que entrevistaram as pessoas
condenadas por terrorismo desde 9/11. Eles entrevistaram centenas de pessoas em
Guantánamo e outras prisões. E um psiquiatra forense que também é um oficial da
CIA – por isso ele não é flexível como eu! – concluiu que o Islão não tinha
nada a ver com isso.
O problema é
que há bastante ignorância acerca do Islão. Se eles tivessem tido uma educação
muçulmana adequada não estariam a fazer isso. Apenas 20 por cento deles teve
uma educação muçulmana regular. O resto são ou novos convertidos – como os
pistoleiros que recentemente atacaram o Parlamento do Canadá; ou não-observantes,
o que significa que eles não vão para a Mesquita –, como os bombardeiros na
maratona de Boston; ou autodidactas. Dois jovens deixaram a Grã-Bretanha para
se juntar à Jihad na Síria a partir de um livro intitulado Islam for Dummies (Islão para leigos), encomendado na Amazon.
As pessoas
vão para lá com um sentimento de falta de sentido. Foi interessante ouvir os
parisienses falarem sobre isso. Vários deles disseram: Olha, não prestámos
atenção a esses subúrbios, onde há desespero e desesperança. Tivemos uma
chamada para acordar quando houve tumultos e nós não fizemos nada sobre isso.
Isto é supuração. As pessoas não se sentem em casa nas nossas sociedades. As
suas vidas terão algum significado quando saírem de lá. Aqui não há nenhuma
maneira de sair. E o governo francês é hostil a qualquer expressão religiosa.
Isso faz com que as pessoas fiquem nervosas. Portanto, há uma sensação de
desespero.
Eu estava a
conversar com um dos nossos principais historiadores há um par de meses atrás e
ele disse que a principal coisa que sempre tem levado os jovens para a guerra foi
o tédio. Tédio. E isso é algo que, nas nossas sociedades, temos de levar muito
a sério, tanto quanto nós tomamos a liberdade de expressão a sério. Miséria e
uma sensação de nenhuma esperança, especialmente com a economia a cair. Temos de
nos lembrar como somos privilegiados. Eu tomei conhecimento, por causa das
minhas viagens e dos meus estudos, da quão privilegiada eu sou. E isso vem com
responsabilidade. Se você tiver uma boa mão, você deve fazer algo bom com ela».
P. – Lendo o
livro, percebi que um rio de sangue e lágrimas está a correr através da nossa
história mundial…
R. – E de
miséria e opressão, e de injustiça. Grande injustiça e que ainda somos
injustos. Porque falamos sobre o nosso Iluminismo como se o Messias viesse para
baixo... E foi óptimo, foi muito importante para nós. Mas olhe para os Pais
Fundadores dos Estados Unidos, que disseram que todas as pessoas são criadas
iguais: eles não tinham nenhum problema em possuir escravos africanos.
Liberdade foi sempre apenas para os europeus. E ainda é assim, por causa da
ganância por petróleo. Nós damos um apoio enorme aos sauditas, que não dão ao
seu povo direitos humanos.
P. – Há o
blogger Raif Badawi ameaçado com espancamentos à cana todas as sextas-feiras...
(Entretanto o caso Badawi está a ser revisto, nota do trad.)
R. – Nós não
nos importamos com ele, desde que nós tenhamos o nosso petróleo. Há a Amnistia
Internacional, sim, mas temos de continuar a lembrar as pessoas. Temos de ser
coerentes.
P. – Não é
deprimente para si escrever este livro?
R. – Sim,
mas existe também o outro lado. Pessoas como Confúcio falando sobre a Regra de
Ouro, Jesus, Paulo que tenta... as pessoas continuam tentando. E nós precisamos
criar uma voz alternativa que seja tão forte, que se baseie na realidade, mas
também na justiça.
Jesus e o abade Menas, ícone do séc. VI, do Mosteiro de Bawit,
no Médio Egipto, actualmente no Museu do Louvre;
é um dos mais antigos ícones conhecidos (ilustração reproduzida daqui)
P. – E agora
temos de fazer isso sem religião?
R. – Bem,
nós podemos... O seu país é secular, mas os Estados Unidos não são seculares.
Quando eu dou uma palestra lá e converso com as pessoas, a resposta é bem
diferente: eles não querem fazer nada sem religião. Eles disseram ser o segundo
país mais religioso do mundo, depois da Índia. Mas criaram uma forma secular,
vendo a santidade de cada ser humano. Cada ser humano é precioso, inviolável e
não pode ser adulterado. Quer interfira com a nossa economia ou não.
P. – Então
está dizendo que a religião é um bode expiatório?
R. – Nós
estamos amontoando toda a violência do século XXI nas costas da religião,
mandando-a embora, dizendo que não temos nada a ver com religião. Enquanto
ainda temos que lidar com a situação política. O ataque ao supermercado em
Paris, foi sobre a Palestina, acerca do Isis [autoproclamado Estado Islâmico do
Iraque e da Síria]. Não tinha nada a ver com o antissemitismo; muitos deles
são, eles próprios, semitas. Mas eles tentam conquistar a Palestina e nós não
estamos a falar sobre isso. Estamos muito implicados e não sabemos o que fazer.
Seria
ingénuo pensar que nunca vamos ter um mundo sem guerra. Mas eu escrevi este
livro porque estou cheia de uma sensação de pavor, pensando para onde nós
estamos indo. Criámos bombas que podem acabar com o mundo, e é aceite no
direito internacional que, se o seu país esteja ameaçado, é aceitável disparar
uma arma nuclear, mesmo que isso, certamente, signifique a destruição da sua
própria nação. Este é um desejo suicida. Então, similarmente, o suicida bombardeiro
que vai, sabendo que ele ou ela irá morrer, é uma forma primitiva do mesmo.
Não vai
demorar muito para que a Al-Qaida ou um desses grupos se apodere de um
dispositivo nuclear. A situação é tão perigosa que somos obrigados a abrir os
olhos e ver o que está a acontecer. E isso não é sobre religião, Islão ou outra
forma.
P. – Mas
muitas pessoas acreditam que, ainda, os seguidores de Wilders, Marine Le Pen...
R. – Um dos
problemas do Estado-nação sempre foi a sua incapacidade de tolerar as minorias.
Essa tem sido a causa de alguns dos piores crimes do século 20, o Holocausto,
por exemplo. Por causa da ênfase na língua e cultura que vem no Estado-nação, a
nação torna-se o valor supremo.
O
nacionalismo não nos está a ajudar a perceber que nós vivemos num mundo global.
Agora não nos podemos dar ao luxo de pensar apenas no nosso próprio país – o
mundo não é mais assim. Nós criamos uma economia global e estamos tão
conectados que, se um mercado cai numa parte do mundo, as acções caem em todo o
mundo no mesmo dia.
P. – Não
falando sobre o clima...
R. – Sim,
nós compartilhamos essa situação. E agora vemos que o que acontece em Paris
hoje terá repercussões no Médio Oriente, e de volta. Estamos ligados
politicamente. E as nossas histórias misturam-se. Nós, britânicos,
particularmente temos uma grande responsabilidade pelo que aconteceu no Médio
Oriente. E na Índia e no Paquistão. Considere as linhas de fronteira desses
Estados pós-coloniais, como elas foram desenhadas com tal cinismo e
oportunismo. E quanta violência que levou a isso.
P. – Escreve,
no seu livro, surpreendentemente, que a sharia tem sido um impulso para a
paz...?
R. – Nós
demonizamos a sharia. Mas se estão tão interessados no mundo muçulmano, é
porque, tradicionalmente, era um contrapeso para a tirania do estado. Foi a lei
de Deus, e foi anunciar que ninguém tem o direito de dizer a ninguém o que
fazer. Porque cada pessoa é soberana e responsável somente perante Deus. Nenhum
governo podia governar através disso, mas eles tiveram que reconhecer que esta
foi a palavra de Deus. Eles têm desenvolvido a sua própria versão da sharia.
Mas a paixão por ela não era para cortar as mãos.
P. – E
confinar as mulheres?
R. – O
assunto das mulheres é um problema mundial. Uma das marcas da modernidade tem sido
a emancipação das mulheres. E assim, quando as pessoas estão com raiva sobre a
modernidade e modernização vão voltar e... Você vê-o no Cristianismo também, há
os cristãos no Estados do Sul dos EUA que dizem que as mulheres devem ficar em
casa. A Igreja Católica diz que as mulheres não podem ser sacerdotes. E da
mesma forma no judaísmo também.
E uma das
coisas no mundo Muçulmano é que os governantes estão muitas vezes a debater,
não têm é muito apoio popular. Se eles tomarem decisões draconianas que mantenham
as mulheres sob controlo, eles agradam aos homens.
Mas as
feministas muçulmanas vão transformar o Islão. De dentro.
1 comentário:
Muito interessante
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