quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

A humanidade e o sagrado são, nela, uma e a mesma coisa

Livro

Pouco se sabe acerca de Maria de Nazaré que, muito jovem, foi mãe de Jesus. Mas, como escreve Jacques Duquesne (Maria, A Verdadeira História da Mãe de Jesus, ed. Asa), “esta quase desconhecida foi representada de todas as maneiras – com talento, ingenuidade ou estupidez – e sem ela a História da Arte seria completamente diferente”.
A escassa dezena de referências dos quatro evangelhos canónicos à sua pessoa contrasta com a maior importância que lhe é dada nos apócrifos (os textos não aceites como autênticos ou divinamente inspirados, onde até se “identificam” os pais de Maria, sobre os quais não há certeza histórica nenhuma) e, mais ainda, com todas as alusões, invocações e atributos que, ao longo da história, se centraram na sua figura.
Resume ainda Duquesne: “Esta mulher ignorada pelos autores do seu tempo foi proclamada três séculos mais tarde mãe de Deus, depois rainha e mãe da Igreja e mil vezes coroada. Ela foi – e continua a ser – invocada por milhões de homens e mulheres. São-lhe atribuídos milhares de milagres. Nunca ninguém no mundo inspirou tantos hinos, cânticos, poemas, histórias.” E, numa alusão a fenómenos como Fátima, lembra o jornalista católico francês (autor também de um Jesus que causou muita polémica) que esta mulher arrasta multidões “para os lugares onde ela apareceu, onde ela falou e falou bem mais do que nos Evangelhos, séculos depois da sua morte”.
Foi precisamente esse fascínio de tantos milhões que levou as autoras deste “acervo” de arte a dar-nos um retrato dos retratos desta mulher ímpar na história da humanidade. São 370 imagens (quase todas pinturas, algumas esculturas e algumas fotos de santuários a ela dedicados) aqui reunidas, que nos dão o mais belo das diferentes invocações, factos miraculosos ou histórias relacionadas com Nossa Senhora, como popularmente é tantas vezes designada.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Um presépio no meio da cidade ou “por aí”, entre refugiados e perseguidos


A irmã Irene Guia num dos campos de refugiados por onde passou
(foto reproduzida daqui)

Fazer um presépio pode ser objecto de discussão num mosteiro, como conta a irmã Maria Domingos, monja no Mosteiro de Santa Maria, do Lumiar (Lisboa). “Não vivemos para outra coisa senão o louvor de Deus, a celebração da liturgia, a vida fraterna, dar um testemunho de que há outra maneira de estar na vida... damos o essencial do tempo ao silêncio”, conta também ela, na entrevista a Manuel Vilas Boas, onde se fala do quotidiano, de pequenas histórias e da proposta de uma espiritualidade diferente. E onde se termina a conversa evocando a cítara e a poesia de José Augusto Mourão. Para ouvir aqui.

Bem mais longe, Irene Guia, que estudou música em Viena, fala de um presépio com outras músicas, um presépio que “anda por aí”, em pleno Curdistão iraquiano, depois de ter estado em missões de apoio a refugiados em lugares como os Camarões, Timor, Ruanda ou República Democrática do Congo. Estar onde haja gritos”, diz esta religiosa das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, que quer apenas ajudar a “manter a esperança”, incluindo a dos yazidis, populações que têm sido chacinadas e cujas mulheres são, muitas vezes, vendidas e revendidas. A entrevista pode ser escutada aqui. 

Na revista Bíblica, de Maio-Junho 2015, publiquei um texto sobre a irmã Irene Guia, onde ela conta o seu trajecto pessoal e nas várias missões de apoio a refugiados, com o Serviço Jesuíta aos Refugiados. O artigo fica a seguir na íntegra.

Ter na pele a sensação de ter salvo uma vida

Viu Saidi a correr para ela e nesse momento sentiu na pele a sensação de ter salvo uma vida. Viu Jimmy morrer com um tumor e foi pedir mais meios para evitar mortes assim. E viu a esperança que faz com que pessoas no limite “consigam padecer o incalculável.”

Chegou de capacete na cabeça, partiu depois de o colocar de novo, sentada na motorizada da congregação, que utiliza nas suas deslocações em Lisboa.
Houve um dia, num campo de refugiados do Congo, em que a motorizada poderia ter dado jeito à irmã Irene Guia, 55 anos, das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. O pequeno Saidi, 14 anos que mais pareciam oito, mal nutrido, ventre enorme, mãe doente, foi identificado como precisando de cuidados de saúde. Mas tinha de andar 100 metros até ao posto de atendimento. Quando percebeu isso, começou a chorar.
“Um homem que me acompanhava pô-lo às cavalitas e ele parou o choro.” A mãe, que tinha um cancro e era igualmente mal nutrida, foi levada com o filho para o hospital. “Duas semanas depois, fui visitá-los. Quando me viu, Saidi desatou a correr. Nesse dia, tive a sensação na pele de que tinha salvo uma vida.”

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Uma biografia (im)possível de Jesus

Quem foi Jesus? E quem é ele hoje? A cada 25 de Dezembro os cristãos celebram o seu nascimento, mas, quanto à sua vida subsistem muitas dúvidas e mistérios. Fomos saber quais as mais recentes teses sobre este “judeu marginal” que “viveu num recanto do Império Romano”. Este texto foi originalmente publicado no Público de 23 de Dezembro de 2011. 


Sieger Koder, Última Ceia (imagem reproduzida daqui)


Um profeta ou um blasfemo? Um subversivo ou um sedutor? Um homem ou um deus? Um marginal ou um judeu da elite? Um amigo dos pobres e das mulheres ou um opositor aos líderes religiosos do seu tempo? Um político ou um mestre espiritual? Um sonhador ou um revolucionário?
Impossível compor uma biografia de Jesus de Nazaré, cujo nascimento é assinalado desde há séculos a 25 de Dezembro – mesmo se não há certezas sobre a data exacta ou sequer sobre o próprio nascimento. Começamos então por ver que sabemos pouco. Ou talvez não. Ed Parish Sanders, um dos mais importantes estudiosos sobre a personagem histórica de Jesus, escreve n’A Verdadeira História de Jesus (ed. Notícias/Casa das Letras): “Há muitos aspectos sobre o Jesus histórico que permanecerão um mistério.”
Não se sabe, por exemplo, quando e onde nasceu exactamente – apesar de, na festa do Natal, se assinalar a cidade de Belém como lugar onde veio à luz, segundo a tradição. Não se sabe se teve irmãos, embora John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico (ed. Imago/Dinalivro), uma das obras maiores dos estudos contemporâneos sobre Jesus, aponte para a probabilidade de serem legítimos os vários irmãos de Jesus.
Não se sabe ainda como viveu durante os primeiros 30 anos da sua vida. Não se sabe se se casou – Meier diz que tudo aponta para que tenha permanecido celibatário. Desconhece-se se Jesus tinha consciência plena da sua missão –  ou, na linguagem crente, se era Deus.
Sabemos pouco, então, sobre Jesus? O mesmo E. P. Sanders escreve: “Sabemos que iniciou a vida pública sob João Baptista, que teve discípulos, que esperava o Reino, que foi da Galileia para Jerusalém, que fez algo hostil ao Templo, foi julgado e crucificado.” Sabemos ainda “quem era, o que fez, o que ensinou e por que morreu; e, talvez o mais importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas que lhe foram tão fiéis que mudaram a História”.

Bilhete de identidade

Uma biografia impossível? À procura de respostas, a Sociedade Missionária da Boa Nova organizou o colóquio Quem foi, quem é Jesus Cristo? [as actas foram entretanto publicadas, com o mesmo título, pela Gradiva]. A convite do teólogo e filósofo Anselmo Borges, vários pensadores e especialistas contemporâneos passaram por Valadares (Gaia), em Outubro [de 2011], dando um panorama do que se conhece sobre Jesus, em várias áreas. Acompanhámos a iniciativa, que contou com a participação de alguns dos mais destacados teólogos espanhóis.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Darth Vader invadiu o presépio de Alice Vieira, mas uma ambulância do INEM tratou do assunto

Pode Darth Vader invadir um presépio e um avião do INEM resolver o assunto? Em casa da escritora Alice Vieira, isso é possível, por causa dos netos. Mas o primeiro presépio feito pela autora de Histórias da Bíblia para Ler e Pensar foi quando nasceu a filha. Nessa altura – estava-se na época após a revolução de 25 de Abril de 1974 – o presépio de Alice chegou a incluir cartazes com várias reivindicações. Os presépios podem servir também para estimular a criatividade, diz Alice Vieira nesta entrevista ao programa Ecclesia, durante a qual mostra alguns dos seus mais de 60 presépios. E recorda que o Natal deve ser, sobretudo, um tempo em que cada pessoa se esforce para estar com outras.



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Laura Ferreira dos Santos (1959-2016): Católica das margens, em busca de uma ortodoxia maior

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Laura Ferreira dos Santos (1959-2016): Católica das margens, em busca de uma ortodoxia maior


Laura Ferreira dos Santos, fotografada por José Caria/Visão 
(foto reproduzida daqui)

Em 2008, ela confessava imaginar o seu encontro com Deus como acontecendo num momento semelhante a um colorido pós-pôr do sol. “Tenho a sensação que só nessa altura, como se diz na Bíblia, todas as lágrimas do nosso rosto serão enxugadas e todas as dúvidas que temos e não conseguimos resolver racionalmente serão resolvidas. (...) A minha ideia do ‘outro lado’ é a de que simplesmente vamo-nos abraçar de imediato e dizer: ‘Finalmente!’” Laura Ferreira dos Santos, professora universitária e ensaísta, que se destacara nos últimos anos na defesa da morte assistida, morreu sexta-feira passada em Braga, após vários anos de luta contra um cancro. O funeral realizou-se sábado, para o Porto.
Autora de um Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença (ed. Angelus Novus, 2003 e 2008), em dois volumes, essa obra marcante no seu percurso foi ignorada nas notícias acerca da sua morte. Nela se definia como uma “católica nas margens”, mas em busca de “uma ortodoxia maior”.
Na entrevista que lhe fiz em 2008 e foi publicada no Público em 5 de Maio desse ano (entretanto também publicada no livro Diálogos com Deus em Fundo, ed. Gradiva), ela contava como escreveu este diário singular na literatura portuguesa, as suas distâncias e proximidades com o catolicismo e a fé.
Mais recentemente, numa entrevista ao suplemento Igreja Viva, do Diário do Minho, Laura Ferreira dos Santos actualizou as razões do seu envolvimento na causa da morte assistida, surgido precisamente por causa da experiência de sofrimento e de morte que enfrentou várias vezes entre os seus próximos e que levou mesmo a mudar o seu modo de entender a fé.
“Como acredito num Deus de amor, acredito também que Ele só pode querer o nosso melhor interesse. Infelizmente, em certas alturas, o nosso melhor interesse é morrermos, para assim escaparmos ao sofrimento atroz. Por isso, por vezes rezamos para que Deus ‘leve’ alguém o mais depressa possível”, dizia, na entrevista que pode ser lida aqui.
Nascida em Braga, a 27 de Março de 1959, Laura Ferreira dos Santos licenciou-se em 1982, na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa. No ano seguinte, passou a leccionar na Universidade do Minho. Trabalhou no Instituto de Educação da UM (Departamento de Teoria da Educação e Educação Artística e Física) e, em 1996, prestou provas de doutoramento em Educação, na mesma Universidade, com uma tese sobre Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze.
Laura Ferreira dos Santos dedicou a sua investigação à Filosofia da Educação e bioética (neste último caso, especialmente às questões das escolhas de fim de vida). Entre as suas obras, incluem-se Educação e cultura em Nietzsche. Análise da primeira fase do seu pensamento, Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze (ambos ed. da Universidade do Minho), Alteridades feridas. Algumas leituras feministas do cristianismo e da filosofia (ed. Angelus Novus), Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do século XXI e Testamento Vital – O que é? Como elaborá-lo? (ambos na Sextante). Integrou também, desde Janeiro de 2009, a Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte.

Como surgiu este Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença?
Já há muitos anos que escrevo. No segundo volume [do Diário…], de vez em quando há extractos de diários antigos. Escrevi sempre porque tinha vários problemas para resolver e porque a escrita foi sempre a melhor maneira de pensar sobre eles.
Há uma canção de Leonard Cohen, que diz mais ou menos: “Toca os sinos que ainda podes tocar,/ larga a tua oferta perfeita,/ em todas as coisas há uma fissura/ e é por aí que a luz entra.” Desde que a ouvi, tomei consciência de que andei sempre à procura dessa luz, não só em circunstâncias de sofrimento, mas também em outras mais favoráveis.

Advento: Maria, José e a manjedoura



Oração de Maria

a fonte de Deus é a luminosa torrente
que alimenta aquilo que sou

e afasta de mim toda a secura:

por isso, na fonte de Deus eu espero

a mão de Deus é o mapa e a viagem
sei que me acompanha e sustém
mesmo quando eu não vejo:

por isso, na mão de Deus espero

o silêncio de Deus é a palavra

que desde o princípio do tempo

por dentro do amor vem sendo dita:
por isso, no silêncio de Deus eu espero


sábado, 17 de dezembro de 2016

Flannery O’Connor: querer ver a Lua inteira, passar de queijo a mística. Imediatamente.

Um Diário de Preces - um livro e uma encenação este Domingo, em Lisboa


Ilustração da capa de Um Diário de Preces (ed. Relógio d'Água)

“Meu bom Deus, não consigo amar-Te  como pretendo. És o crescente esguio de uma Lua que avisto, e o meu eu é a sombra da Terra que me impede de ver a Lua inteira.”
São palavras do início de Um Diário de Preces, da escritora norte-americana Falnnery O’Connor (1925-1964). O texto será encenado este Domingo, 18, na Capela do Rato, em Lisboa, a partir das 16h, numa encenação de Miguel Loureiro e interpretação de Isabel Abreu (mais informações aqui)
Um Diário de Preces é um texto curto, escrito na intensidade dos 22 anos de Flannery, que oscila “entre a metafísica e a terapêutica”. É um diálogo em luta com Deus e com as próprias contradições interiores, de quem se sente dividido entre aquilo que deseja ser e aquilo que realmente é. Mas também de quem tenta descobrir os verdadeiros desejos de Deus para si mesma. O mesmo Deus a quem Flannery se dirige, pedindo que a ajude a ser uma boa escritora, ou a saber como rezar ou a ser grata ou a adorá-l’O. Sobre a sombra que a impedia de ver a Lua, ela acrescentava: “Não te conheço, meu Deus, porque eu própria Te encubro. Por favor, ajuda-me a arredar-me do caminho.”
Flannery deixou vários 31 contos, dois romances – Sangue Sábio e O Céu é dos Violentos –, bem como muitas críticas literárias e ensaios. A sua obra de ficção está toda publicada em Portugal, nomeadamente na Relógio d’Água (que também publicou Um Diário de Preces) e na Cavalo de Ferro.
No prefácio obrigatório que escreveu à edição portuguesa deste Diário, Pedro Mexia recorda que a escritora “tinha uma sólida formação teórica”, que assentava em nomes como Tomás de Aquino e Romano Guardini, discutia o conceito de escritor católico – o que ele ou ela não deve fazer é “separar a natureza da Graça” – e manifestava, nos textos deste Diário, “a impaciência dos místicos”. No final, aliás, a última frase – “nada mais resta dizer acerca de mim” – assemelha-se ao “temperamento de Teresa d’Ávila”, escreve Mexia.
Há outras reminiscências. Como as que remetem para a possibilidade de ver Deus de forma intensa e permanente no quotidiano, ou para o pedido para que Deus se deixasse ajudar, ideias tão caras a Etty Hillesum, a judia que morreu em Auschwitz (autora de um Diário e de um volume de Cartas, ambos publicados na Assírio & Alvim, que relatam a sua aventura espiritual). Na penúltima entrada, escrita a 25/9/1947, escreve Flannery: “Se me cabe lavar todos os dias o segundo degrau, diz-mo e deixa-me lavá-lo até que o meu coração transborde de amor ao lavá-lo. Deus ama-nos, Deus precisa de nós. E também da minha alma.”
Em várias entradas do Diário, Flannery escreve sobre os quatro elementos de que a prece se deve compor: adoração, contrição, agradecimento e súplica. E também reza a propósito da fé, da esperança e do amor. Sobre a esperança, confessa sentir-se “um pouco perdida”. E pede, numa alusão a várias outras passagens em que se sente espatilhada e dividida por sentimentos contraditórios: “Por favor, deixa que alguma luz emane de todas as coisas que me rodeiam, para que me possa sentir coesa.”

Na entrada de 25/9, Flannery escreve, como quem dá uma ordem a Deus: “Aquilo que peço é, na verdade, bastante ridículo. Oh. Senhor, o que eu digo é que neste momento sou um queijo, faz de mim uma mística, imediatamente.”

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Prémio Pessoa para Frederico Lourenço – e para a Bíblia e a cultura clássica


Frederico Lourenço foi hoje distinguido com o Prémio Pessoa 2016. O reconhecimento do júri destaca o trabalho do ensaísta e helenista na tradução dos clássicos, o que inclui a maratona a que Lourenço meteu ombros com a tradução da Bíblia dos Setenta, ou Septuaginta, uma tradução do século III a.C. feita por um conjunto de 72 sábios judeus em Alexandria do Egipto. 
Já antes, Frederico Lourenço publicara O Livro Aberto (ed. Cotovia) com um conjunto de pequenos ensaios sobre a Bíblia, no qual revelava a sua paixão pelo texto bíblico. Nesses artigos, colocando-se claramente numa posição antagónica da infeliz frase de Saramago, quando o escritor Nobel falou da Bíblia como um “manual de maus costumes”, Lourenço acaba por deixar o leitor frustrado porque não leva o seu exercício até ao fim. Ou seja, fica enredado quase numa tentação próxima da de Saramago: a de recusar a possibilidade da hermenêutica de um texto clássico.


Uma das edições da Bíblia dos Setenta (imagem reproduzida daqui)

A 8 de Outubro, publiquei na Revista E, do Expresso, um texto de recensão crítica do primeiro volume da Bíblia de Lourenço, no qual afirmava que este era o acontecimento literário do ano. Fica a seguir o texto, acrescentando, em relação ao que era dito, que a recriação da tradução da Bíblia a partir do grego é uma marca indelével deste trabalho.

A Bíblia de Lourenço, acontecimento literário do ano

A primeira observação deveria ser uma evidência: uma nova tradução da Bíblia (mesmo se ainda só com os quatro evangelhos) é o acontecimento literário do ano. A Bíblia, como refere Frederico Lourenço (na apresentação geral da obra a propósito da Bíblia grega, que serve de base a esta tradução) é “um marco da cultura universal que – pelo seu valor religioso, estético e histórico – urge conhecer”.
Seria fastidioso enumerar outros apelos do género, desde Goethe a Bono Vox ou a George Steiner. Só isso deveria bastar para reconhecer a importância de uma nova tradução bíblica. Mas, numa realidade culturalmente deficitária em várias áreas como é a portuguesa, é de temer que isso não se registe em toda a sua grandeza. É uma grande alegria, por isso, que alguém com a erudição e a qualidade reconhecida de Frederico Lourenço se abalance a traduzir a Bíblia.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cinco mulheres mais importantes do que se pensava na vida de Jesus

A data de hoje é assinalada pelos católicos como o dia da imaculada concepção da mãe de Jesus – ou seja, de que Maria de Nazaré foi concebida sem a mácula, uma afirmação que pode ser objecto de equívocos e mal-entendidos, como se explicava neste textoA mãe de Jesus, decisiva e importante, não foi, no entanto, a única mulher importante na vida de Jesus. Foi uma mulher a primeira a receber o anúncio da ressurreição de Jesus. E há outras mulheres importantes na vida de Cristo, mais decisivas do que tradicionalmente se acreditava.




As bodas de Caná, na versão de Giotto pintada na Capela dos Scrovegni, 
em Pádua (imagem reproduzida daqui)

Maria de Nazaré, Maria Madalena, a samaritana ou a cananeia. Elas estavam lá desde o início. Apesar de desprezadas pela história, várias mulheres tiveram um papel fundamental na vida de Jesus. Muito mais decisivo do que se pensava tradicionalmente. A investigação bíblica recente começa a desvendar factos que contradizem a ideia feita. E a vincar que as mulheres fazem parte do grupo de discípulos de Jesus de forma igual à dos homens.
Assim é: elas estavam lá desde o início e foram apóstolas, discípulas, evangelizadoras, financiadoras, interpeladoras de Jesus. “Jesus aceitou-as e não as discriminou pelo facto de serem mulheres”, diz Maria Julieta Dias, religiosa do Sagrado Coração de Maria e co-autora de A Verdadeira História de Maria Madalena (ed. Casa das Letras). “Jesus não foi misógino, foi sempre ao encontro das mulheres”, acrescenta Cunha de Oliveira, autor de Jesus de Nazaré e as Mulheres (ed. Instituto Açoriano de Cultura).
Os evangelhos citam várias vezes as mulheres que seguiam Jesus “desde a Galileia”, onde ele começara o seu ministério de pregador itinerante. No momento da crucifixão, são elas que estão junto a Ele. Lê-se no evangelho de S. Mateus: “Estavam ali, a observar de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galileia e o serviram. Entre elas, estavam Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.” E é a uma mulher que primeiro é anunciada a ressurreição de Jesus, que os cristãos assinalam hoje, Domingo de Páscoa.
Maria Julieta Dias recorda que, em outra passagem do evangelho de Lucas, já se diz que acompanhavam Jesus “os Doze e algumas mulheres, que tinham sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios; Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana e muitas outras, que os serviam com os seus bens”.
As mulheres estavam lá, como discípulas. Em Um Judeu Marginal (ed. Imago/Dinalivro), John P. Meier, um dos mais conceituados exegetas bíblicos contemporâneos, não tem dúvidas: “O Jesus histórico de facto teve discípulas? Por esse nome, não; na realidade (...), sim. Por certo, a realidade, mais do que o rótulo, teria sido o que chamou a atenção das pessoas. (...) Quaisquer que sejam os problemas de vocabulário, a conclusão mais provável é que ele considerava e tratava essas mulheres como discípulas.”

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Advento, II Domingo: O Anjo

Nada no mundo lembra mais as asas de um anjo
do que um par de mãos vazias
Só mãos vazias visitam e se deixam visitar por outras mãos
assim as do Teu anjo iluminaram as de Maria
e as de Maria iluminam hoje as nossas
Que as nossas mãos vazias, Senhor
possam acolher o Teu advento

Imagem: Rui Aleixo MMXV
Texto: José Tolentino Mendonça

(texto e fotos reproduzidos daqui)


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Eleições nos EUA - Muros e pontes - um texto de Pedro Vaz Patto sobre as eleições presidenciais nos EUA

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Eleições nos EUA: Muros e pontes

O resultado das eleições nos EUA foi já objecto de um comentário aqui. Na Voz da Verdade, Pedro Vaz Patto volta ao tema, para escrever:

A eleição de Donald Trump surpreendeu o mundo.
Muitos cristãos, católicos e evangélicos, saudaram essa eleição como um mal menor, face à sua adversária, Hillary Clinton, empenhada em alargar ainda mais as possibilidades de recurso ao aborto como direito absoluto, e capaz de limitar a liberdade de consciência e religião em âmbitos “fraturantes” como esse (ficou célebre um seu discurso em que afirmava que os Estados deviam usar meios coercivos para levar as autoridades religiosas a modificar as suas doutrinas tradicionais quanto a essas matérias). Mal menor porque o aborto será, hoje, o mais grave e sistemático atentado à vida e dignidade humanas.
Este raciocínio envolve, porém um grave perigo: centrar unicamente em duas ou três causas (“single issues”) o empenho político dos cristãos, ignorando ou desvalorizando outras causas também importantes, assim descredibilizando esse empenho e justificando acusações de parcialidade e incoerência. 
(texto para continuar a ler aqui)

No artigo, o actual presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) recorda uma acção das comissões europeias sobre a questão dos refugiados, tema que voltou a ser objecto de um documento que pode ser lido na página da CNJP, com o título Criando um refúgio seguro para todos: Refugiados e dignidade humana (clicando aqui e procurando o título ao fundo da coluna da direita)

Publicação anterior no blogue
Advento - Precisamos de uma estrela (um poema de José Tolentino Mendonça e uma foto de Rui Aleixo para o I Domingo do Advento)