Martin Luther King (ilustração reproduzida daqui)
O assassinato de
Martin Luther King, cujos 50 anos se assinalaram na quarta-feira, dia 4, é o
desfecho trágico de uma história que começou com uma dor de pés. (No final
deste texto, há várias sugestões de outras leituras a propósito da efeméride)
A 1 de Dezembro de
1955, Rosa Parks, uma costureira negra de 42 anos foi presa na cidade de
Montgomery (Alabama, Estados Unidos da América) por se ter recusado a dar o
lugar a um branco no autocarro em que seguia. De acordo com as leis de
segregação e os costumes da cidade, Rosa tinha que se levantar quando já não
houvesse lugar nas quatro filas da frente para os passageiros brancos.
“É verdade que me
doíam os pés, e que num primeiro momento foi isso que me levou a ficar sentada.
Mas a verdadeira razão porque não me levantei foi por achar que tinha o direito
de ser tratada como outro passageiro qualquer. Já tínhamos sofrido demasiado
tempo aquele tratamento desumano”, recordaria a própria numa entrevista, em
1992. Sem que ela o soubesse, esta dor dos pés de Rosa Parks, que morreu com 92
anos em Outubro de 2005, viria a ser o primeiro passo de uma longa marcha pelos
direitos cívicos dos negros norte-americanos.
No dia seguinte,
Martin Luther King, jovem pastor da Igreja Baptista que estava na cidade há
pouco mais de um ano, recebe um telefonema madrugador. E. D. Nixon pagara os 14
dólares de fiança para Rosa esperar o julgamento em liberdade. Ao telefone,
quando King atende, Nixon esquece-se de lhe dar os bons dias e vai directo ao
assunto: “Acho que está na altura de boicotar os autocarros. Só com um boicote
podemos conseguir fazer com que estes tipos percebam que não vamos suportar
mais este tipo de tratamento.”
Não pactuar com um sistema pernicioso
Antes do telefonema,
conta o próprio King, E. D. Nixon telefonara ao pastor Ralph Abernathy, da
Primeira Igreja Baptista da cidade, tendo ambos concordado com o boicote. King
também adere à ideia.
À noite, a dúvida
assalta-o: seria o método “intrinsecamente anticristão” e uma “forma negativa
de resolver o problema”? Não: tratava-se apenas de “deixar de pactuar com um
sistema pernicioso”, uma ideia do ensaio de Henry David Thoreau sobre a
desobediência civil. E deixará de falar em boicote, passa a referir-se a um
acto colectivo de não-colaboração.
A pé, de bicicleta,
à boleia, de táxi. Aquele 5 de Dezembro, a segunda-feira da acção programada, é
o primeiro de 381 dias em que os negros de Montgomery utilizam todos os meios
possíveis nas suas deslocações. Todos, menos o autocarro. No mesmo dia, Rosa
Parks é condenada, em tribunal, ao pagamento de 14.000 dólares – mas recorre. O
sucesso da não-colaboração e a sentença judicial levam à criação de uma
organização mais consistente. King, então com 26 anos, é o escolhido para
liderar o processo. Ao fim de 14 meses, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos
declara inconstitucional a segregação nos autocarros.
Não vale de muito a
Luther King o não ter inimigos quando tudo começa: a 30 de Janeiro de 1956,
menos de dois meses depois do início da não-colaboração, a casa de King é
atacada à bomba. A mulher, Coretta e a filha, Yolanda Denise, bebé de dois
meses, estão em casa mas nenhuma delas sofre nada. Já de madrugada, o sogro de
Luther King vem à cidade, para levar a filha e a neta para as proteger.
“Desculpe, pai, mas não vou deixar o Martin sozinho numa hora destas. Tenho de
ficar ao lado dele até que a luta chegue ao fim.” A mulher será um apoio
indispensável na luta de Luther King, como o próprio repetirá várias vezes.
Coretta morreu em Janeiro de 2006.
Após o ataque
bombista, a opção pela não-violência como atitude cristã fica ainda mais evidente:
“Para mim, cedo se tornou claro que a doutrina cristã do amor, posta em prática
pelo método da não-violência de Gandhi, era uma das armas mais poderosas de que
o Negro podia dispor na sua luta pela liberdade”. A sua opção alicerça-se mais
quando, em Fevereiro e Março de 1959, Martin e Coretta visitam comunidades
gandhianas na Índia. Em 2006, cinquenta livros do Mahatma ou a ele dedicados
integram o espólio de King que nessa ocasião é vendido.
“Vi a terra
prometida”
Se Gandhi é a
referência activa, o grande inspirador é Jesus Cristo, a quem chama o
“extremista do amor”. Em 1967, em Uma Só Revolução, escreve, parafraseando
São Paulo na Carta aos Gálatas: “Em Cristo, não há homem nem mulher, comunista
nem capitalista, escravo nem homem livre. Estamos todos unidos n'Ele.” Faz da
Páscoa e da ressurreição horizontes permanentes de acção.
Na Sexta-Feira
Santa de 1963, ao ser detido após uma manifestação, afirma, tranquilo: “Depois
de Sexta-Feira Santa vem sempre a Páscoa.” Robert Miller, um dos biógrafos,
atribui-lhe a frase quase profética: “Se a morte física é o preço que tenho de
pagar para libertar o meu irmão branco e todos os meus irmãos e irmãs da morte
permanente do espírito, então nada poderá ser mais redentor.”
A luta pelos
direitos cívicos alarga-se a todo o país e a vários âmbitos: escolas, emprego,
restaurantes, legislação, sistema de justiça, direito de voto, justiça
económica, contestação da guerra. Crescem também as dificuldades: Luther King é
detido ou multado várias vezes, diversas sentenças de tribunal são ditadas
contra a luta dos negros, há centenas de prisões. Em 20 de Setembro de 1958,
três meses depois de ter sido recebido pelo presidente Eisenhower, King é
esfaqueado por uma mulher negra, enquanto dá autógrafos num grande armazém de
Harlem, em Nova Iorque.
Luther King acompanhado por outros líderes do Movimento pelos Direitos Cívicos,
durante a Marcha pelo Emprego e pela Liberdade, a 28 de Agosto de 1963 (foto reproduzida daqui)
A 28 de Agosto de
1963, Martin Luther King preside à Marcha pelo Emprego e pela Liberdade, que
reúne pelo menos 250 mil pessoas em Washington. No discurso, depois de olhar a
multidão, King abandona o texto preparado e improvisa: I have a dream…
“Tenho um sonho: de
que um dia (…) os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de
escravos conseguirão sentar-se juntos à mesa da fraternidade. (…) Tenho um
sonho: de que os meus quatro filhos pequenos irão um dia viver num país em que
não serão julgados pela cor da sua pele mas sim pelo conteúdo do seu carácter.
(…) Quando todos fizermos soar o sino da liberdade, quando o fizermos soar por
todas as aldeias e lugarejos (…), então sim, iremos poder apressar a chegada do
dia em que todos os filhos de Deus, pretos e brancos, judeus e gentios,
protestantes e católicos, serão capazes de se dar as mãos e cantar a letra do
antigo espiritual negro: ‘Finalmente livres, Finalmente livres. Obrigado, Deus
Todo-poderoso, somos finalmente livres!’”
Três meses depois,
a 22 de Novembro, o Presidente Kennedy é assassinado. Será já o sucessor,
Lyndon Johnson, a assinar a nova Lei dos Direitos Civis, em Julho de 1964. No
final do ano, King, com 35 anos, recebe o Nobel da Paz. “Aceito este prémio em
nome de todos os que amam a paz e a fraternidade.”
Manifestações,
prisões, lutas continuam por todos os Estados Unidos. A 4 de Abril de 1968,
Luther King é assassinado em Memphis. Na véspera, numa igreja da cidade, ele
contava o que o seu olhar já vira claramente: “Temos pela frente dias difíceis.
(…) Só quero fazer o que for da vontade de Deus. E Ele permitiu-me subir ao
cume da montanha. E eu olhei lá de cima e vi a terra prometida. Pode ser que
não a alcance convosco. Mas quero que saibais esta noite que o nosso povo há-de
alcançar a terra prometida. (…) Não estou preocupado com nada. Não estou com
medo de ninguém. Os meus olhos viram a glória da chegada do Senhor.”
(Texto reproduzido do anuário Janus 2007 – Religiões e Política Mundial,
aqui publicado com ligeiras adaptações)
Em português, está publicado Eu Tenho Um Sonho - Autobiografia de Martin Luther King, livro que recolhe inúmeros textos do Prémio Nobel da Paz de 1964, organizados por Claybourn Carson; sobre Luther King e
a efeméride dos 50 anos do seu assassinato, foram publicados nos últimos dias vários textos;
aqui ficam algumas sugestões:
Martin Luther King,
profeta da não-violência (por Corinne Gendreau):
“O pensamento de King foi estruturado por encontros e leituras. (...) descobriu
a teoria da resistência passiva com a leitura do ensaio de Henri David Thoreau,
A desobediência civil: sobre o dever da desobediência cívica. (...) ele escreve: ‘Gandhi foi provavelmente a primeira personalidade da
História que soube elevar a ética do amor formulada por Jesus para lá da
simples interacção entre os indivíduos, para fazer dele uma força social e
colectiva.”
(texto integral aqui, em francês)
Canções para o Rei: Nina Simone, James Brown,
Bob Dylan, U2… A esfera musical oferece-nos numerosas canções inspiradas por
Luther King ou prestando-lhe homenagem. Uma lista, não exaustiva, de músicas,
escolhidas por Jean-Luc Gradeau
(texto integral aqui, em francês)
Presidente da
Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos: o “amor activo” é
necessário para continuar legado do reverendo King:
“Rezamos confiantes
de que Jesus Cristo nos lembrará a todos que ele é o meio mais poderoso para
quebrar as cadeias de ódio que ainda prendem muitos corações, uma verdade que
está no centro do legado do Dr. King”, afirmou o cardeal Daniel N. DiNardo,
bispo de Galveston-Houston, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos
Estados Unidos.
(texto integral aqui, em inglês)
Ivan Jurkovič, sobre
o 50º aniversário da morte do profeta estado-unidense: “Francisco e Martin
Luther King dirigiram a atenção universal para uma nova visão do mundo”: A figura do pastor afroamericano também é fonte de inspiração para
Francisco, que fez referencia a esta personalidade no histórico discurso que
pronunciou no Conbgresso dos Estados Unidos da América, a 24 de Setembro de
2015 e que, há menos de um mês, recebeu em audiência a Bernice Albertine, a
filha menor de Martin Luther King, que também está comprometida em favor da
não-violência e contra todo o tipo de discriminação.
(texto integral aqui, em castelhano)
Martin Luther King,
um ícone (entrevista a Serge Molla, pastor na
Suíça e autor de vários livros sobre Luther King): “Os dez primeiros anos do
seu empenhamento são marcados pela luta contra a segregação. (...) Quando
Martin Luther King se lança à questão da pobreza e à do envolvimento militar
dos Estadis Unidos no Vietname, ele não conduz um outro combate, é o mesmo
[combate] que ele persegue. Por um lado, porque a pobreza atinge
particularmente os Negros (...) [Sobre a oposição à guerra], ele dá um exemplo
simples: dois soldados, um negro e um branco, podem lutar lado a lado na mesma
companhia mas, se forem mortos, não podem ser enterrados no mesmo cemitério. Ainda
uma vez mais, a questão racial está no coração deste compromisso.”
(entrevista aqui, em francês)
“Vocês têm o que é
preciso para gritar” – crónica de Vicente Jorge
Silva sobre o apoio implícito dado pelo Papa aos jovens que, nos Estados
Unidos, lutam contra a posse de armas, no que pode ser lido como uma
actualização da herança de Luther King:
“‘Queridos jovens,
vocês têm o que é preciso para gritar (…) Cabe-vos a vocês não ficarem quietos.
Mesmo que os outros fiquem quietos, se nós, as pessoas mais velhas e os
líderes, alguns corruptos, ficarmos quietos, se o mundo inteiro ficar quieto e
perder a alegria, eu pergunto-vos: ‘Vocês vão gritar?’”.
A assistência
respondeu ‘sim’ a Francisco e é esse sim que é preciso amplificar, não apenas
por parte dos jovens mas por todos, crentes ou não crentes, de todas as idades
e latitudes, que se recusam a aceitar de forma silenciosa e submissa a ordem
desumana, injusta e absurda que vemos hoje alastrar através do mundo. Sim, é
preciso gritar contra o inferno, este inferno real que nos ameaça na Terra.
Para além das polémicas teológicas, o inferno existe aqui, não num além
longínquo e ficcionado pela religião, um inferno cultivado pelo ódio e a
intolerância de todos os fundamentalismos e as loucas tentações mortíferas de
tantos que nos governam.”
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