Crónica
“Este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado.”
(Evangelho de S. Lucas, 15, 32 - IV Domingo da Quaresma)
Sendo Jesus
o rosto do Pai e falando-nos tantas vezes do amor do Pai (e esta parábola, que
São Lucas nos oferece em exclusivo, tem uma força espantosa para quem se dispõe
a escutá-la!) Ele apresenta-se-nos fundamentalmente como irmão. E se nos faz
participantes da sua filiação com a Páscoa, é verdade que nos dá uns aos outros
como irmãos e até o mandamento do amor apresenta o seu amor por nós como termo
de comparação. Creio que essa é ainda a aprendizagem mais difícil que nos é proposta
fazermos: é bom saber que o Pai nos ama, mas são uma “chatice” estes irmãos que
Ele pôs à nossa volta para amarmos!
No fundo a
sociedade revê-se mais na figura do “pai”, seja ele um chefe, um rei, um
presidente, um ditador ou um patrão, uma “troika” ou até um papa, do que se
empenha na construção de relações fraternas. Um “pai” pode ou não fazer as
vontades dos filhos, pode ou não distribuir recompensas ou atribuir castigos,
podemos alimentar a pedinchice e a adulação. Dá jeito lembrá-lo nas dificuldades
e tanto faz esquecê-lo quando tudo corre bem. Mas com os irmãos as relações são
diferentes: estamos ao mesmo nível, somos diferentes e complementares,
precisamos uns dos outros para crescer, não adiantam jogos de fingimento nem
rasteiras baixas. Ficamos todos a perder. Sem uma lógica de fraternidade a
exploração e espezinhamento do outro, a desreponsabilização pela promoção da
justiça e do maior bem para todos, o luxo indiferente à miséria, a
corresponsabilização pelo que diz respeito a todos continuarão a triunfar.
Ainda que saibamos que temos um Pai e até nos sentemos nos mesmos bancos de
igreja. Dá tão pouco jeito dar a paz a certas pessoas que se sentam ao pé de
nós!
O Pai da
parábola de hoje mexe profundamente connosco. Está sempre em movimento pelos
filhos. Integra o seu passado e faz tudo para os salvar. Mas percebemos que a
festa só é completa se os irmãos se encontrarem e derem o abraço que esperamos.
No fundo trazemos dentro de nós os dois irmãos: o valdevinos capaz de se
converter, e o cumpridor chamado a saborear a graça que tem vivido como fardo.
O Pai torna-se agora naquele que pede: pede que os seus filhos sejam irmãos.
Que os bens não atrapalhem, que o perdão possa correr, que a passagem da morte
à vida seja a maior festa. Jesus veio dizer-nos isto mesmo há dois mil anos.
Que o Pai pede que nos amemos. E há dois mil anos que desbaratamos a herança ou
a aferrolhamos como posse exclusiva, que excluímos quem falha ou queremos uma
festa só nossa. Grande trabalho tem o Pai! Porque será tão difícil sermos
irmãos?
(Crónica de Vítor Gonçalves no jornal Voz da Verdade deste domingo; ilustração: O Regresso do Filho Pródigo, de Rembrandt)
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