Crónica
No Público
deste domingo, escreve frei Bento Domingues:
1. A religião é o mundo que toma a direcção de Deus; o
cristianismo é Deus que toma a direcção do mundo. Os seres humanos que creem
nele seguem a Sua direcção.
Esta é a
posição do teólogo Urs von Balthazar. Parece-me justa, mas atrapalha a mística
de olhos fechados, a preferida dos tempos que correm. Nesta quaresma, em
Portugal, chegámos demasiado depressa às expressões de “sexta-feira santa”: em
muitas cidades do país, saíram à rua multidões que já não podiam esconder mais
uma imensa desilusão e enorme tristeza. Seria importante saber qual foi o
impacto destes acontecimentos nas celebrações dominicais e nas vias-sacras, entretanto
muito revalorizadas. Bento XVI, no passado dia 14, num encontro com o clero de
Roma, ao recordar as descobertas e opções do Concílio Vaticano II, destacou a
importância de se ter começado pela reforma litúrgica. O Mistério Pascal é o
centro da vida e do tempo cristão, do tempo pascal e do domingo, dia da
Ressurreição. Do encontro com o Ressuscitado saímos para o mundo. Neste
sentido, é uma pena que, hoje, o domingo se tenha transformado em
fim-de-semana, quando na verdade é o primeiro dia, é o dia do início.
Uma das
perguntas inevitáveis é esta: para que mundo nos envia a ressurreição
dominical? Mas antes, quem é este nós?
J.
Ratzinger, quando ainda era Papa, recordou que foi a redescoberta da teologia
do Corpo Místico (Mystici Corporis ) que fez crescer a fórmula: “Nós
somos a Igreja, a Igreja não é uma estrutura; nós, os próprios cristãos juntos,
todos nós somos o Corpo vivo da Igreja. Naturalmente isto é válido no sentido
que o nós, o verdadeiro «nós» dos crentes, juntamente com o «Eu»
de Cristo é a Igreja”.
Para que
mundo nos envia esse “nós” que a Eucaristia dominical celebra? É o mundo
a alterar durante a semana: na família, no trabalho, na escola, no desporto e
no lazer, na solidariedade, no voluntariado, etc.. Com uma particularidade:
levar estes celebrantes a ver o mundo a partir dos excluídos. Ir da periferia
para o centro. Se começarem no centro, nunca mais chegam à periferia. Seja como
fôr, foi o método seguido por Jesus. Estragou o sábado a muita gente.
2. Dada a situação do país, para além do imenso esforço
de solidariedade das comunidades cristãs, é preciso uma grande convocatória em
prol da justiça para que haja paz. Como disse Sto Agostinho, na “Cidade de
Deus”: Eliminada a justiça, que são os Estados senão grandes salteadores?
Para que
não haja nem a tentação, nem a imagem de uma tentação, de que a Igreja quer
mandar na sociedade ou no Estado, quer fazer política partidária ou formar um
partido confessional, o caminho dessa convocatória deve envolver as paróquias,
os movimentos, as congregações religiosas, padres e Bispos. Todos juntos
teremos de responder à pergunta: se estamos no Ano da Fé para acolher o
Vaticano II, que fazer para que o documento “A Igreja no mundo contemporâneo”
se transforme no fermento das nossas igrejas locais perante os problemas
sociais, económicos, financeiros, culturais em que nos encontramos?
O objectivo
desta convocatória não é criar uma alternativa política, mas alterar a
política, alterando a mente e o comportamento dos cristãos face às exigências
do bem comum. Depois, é deixar a consciência de cada um em liberdade.
3. Jesus Cristo lembrou aos seus contemporâneos que,
para aquilo que os interessava, sabiam ler os sinais do tempo: quando vedes
levantar-se uma nuvem no poente, logo dizeis: vem chuva, e assim acontece.
Quando sopra o vento do sul, dizeis: vai fazer calor, e isto sucede.
Hipócritas, sabeis discernir o aspecto da terra e do céu; e porque não
discernis o tempo presente? Por que não julgais por vós mesmos o que é justo?
(Lc 12, 54-59)
Um dos
desafios importantes do Vaticano II foi, precisamente, este: as Igrejas devem
capacitar-se para saberem ler os sinais dos tempos. Hoje, as sociedades dispõem
de serviços meteorológicos com muitas e úteis funções: para viajar, para a
agricultura, para prever alterações na natureza e nos cuidados a ter com o meio
ambiente, para não sermos vítimas dos males que semeamos. Existem,
também, muitos centros de investigação da sociologia das religiões. Podemos
conhecer o seu número, as características de cada uma, a sua geografia, se
estão a crescer ou a diminuir, se são pacíficas ou agressivas.
Segundo a
Fé cristã, e não só, em Deus vivemos, nos movemos e existimos. Não em regime de
fuga do mundo, mas numa história em contínuas transformações que afectam não só
a vida, mas a sua própria interpretação. Somos do Eterno no tempo e os tempos
não são todos iguais, não têm todos as mesmas características. Os horizontes
mentais vão sendo modificados por novas descobertas científicas, geográficas e culturais.
Seja no plano religioso, seja na vida profana, é inevitável a pergunta que a
encarnação da fé cristã levanta: no seio das realidades terrestres em que
passamos a maior parte do nosso tempo, que sentido têm as nossas actividades,
para a construção o reino de Deus?
A teologia
dos sinais dos tempos exige esta investigação.
(Ilustração: Marc Chagall - Libération, do tríptico Révolution)
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