Livro
Aparece-nos Jesus como uma lua cheia. Uma lua cujo olhar se prolonga em dois braços abertos. E cujo falar se prolonga como quem se coloca em marcha para um encontro.
São
rostos esculpidos em granito, “rocha ígnea, aqui de grão fino, composta por
quartzo, feldspato e mica, em quantidades mais reduzidas, contendo ainda
vestígios de outros minerais de presença residual”. São rostos fotografados por
Duarte Belo durante mais de cinco anos.
Decorrida
mais de uma década sobre esse trabalho, o fotógrafo voltou ao seu arquivo de
mais de 600 mil imagens e pôs-se à procura. À selecção de 107 imagens que daí
resultou, acrescentou um texto sobre “A escultura de uma fotografia” e um
outro, de José Tolentino Mendonça, sobre “Hipóteses para um rosto”. O resultado
é este Os Rostos de Jesus – uma revelação,
que esta tarde, a partir das 18h30, é apresentado na Capela do Rato, em Lisboa,
por José Mattoso. A sessão é complementada pela inauguração da exposição fotográfica
com as imagens do livro.
Em
dezenas de cruzeiros espalhados pelo país (mas concentrados sobretudo no Alto
Minho e em Trás-os-Montes), podemos encontrar rostos de Cristos serenos ou
ingénuos, de olhar rendido ou atento, com corpos ingénuos ou disformes, em
cruzes toscas ou glorificadas pelo ornamento. Podemos ver rostos já carcomidos
ou quebrados, outros enegrecidos ou, ainda, esverdeados pelos elementos.
Rostos, também, que parecem crianças, outros muito direitos, outros ainda em
posições quase impossíveis.
Como
escreve Duarte Belo, encontramos, neste olhar múltiplo sobre o Jesus
crucificado, “o humano em toda a sua complexidade e indeterminação, encontramos
uma condição, que dilui, funde, todos os sentimentos: a angústia, a serenidade,
a resignação, a paz, a alegria, o sofrimento, a ânsia de liberdade, a
impossibilidade das lutas efémeras, os jogos de sobrevivência, a esperança, o
desejo de compreensão de uma totalidade, de uma integração cósmica”.
O
Jesus-lua, fotografado no Lindoso (Ponte da Barca, Viana do Castelo), remete
exactamente para essa ideia da integração cósmica. Outros falam de um mistério,
já que o tempo, esse grande escultor, apagou deles o contorno definido, o olhar
concreto. E deixou apenas uma silhueta, uma aproximação, algo que nos faz
perguntar: como é este rosto?
Podemos
mesmo fazer um jogo de pista: a que cruzeiro corresponde o Jesus que foi um
judeu marginal, ou antes o profeta escatológico, o reformador social ou o
filósofo itinerante. Ou ainda o sábio, o santo, o visionário ou o camponês do
Mediterrâneo, sugeridos por Tolentino Mendonça no seu ensaio.
“Num
certo sentido, não deveríamos estranhar que o rosto de Jesus seja um enigma”,
escreve o biblista no seu texto. “A pergunta que se impõe é: não é assim cada
rosto humano? Haverá objeto mais fugidio do que um rosto, qualquer rosto? O
filósofo Emmanuel Lévinas tratou longamente o problema e explicou que um rosto
ultrapassa a cada instante a imagem que temos dele. O rosto não se define,
exprime-se simplesmente. Isto é, traz consigo uma noção de verdade que não está
no desvendar, mas na evidência da sua autoapresentação.”
Muitos
destes rostos convidam-nos a olharmos para ele como para um espelho. Como quem
busca por detrás deles a sua própria imagem. Como quem procura encontrar-se,
definir-se a si mesmo. São rosto, e fotos, que remetem para o despojamento “das
contingências de um retrato de carne e osso, mas apenas de uma espécie de
essência do humano”, como escreve Duarte Belo.
Não
é assim também com Jesus? Com os rostos múltiplos que dele nos chegaram? “As
aproximações ao rosto de Jesus são necessariamente plurais”, diz Tolentino
Mendonça. Nestas esculturas em pedra, isso é evidente porque, quando elas foram
esculpidas, “não havia ainda uma imagem que se replicava, um estereótipo
iconográfico definidor da imagem de Jesus Cristo”, recorda Duarte Belo.
Tolentino
Mendonça acrescenta, sobre a figura do próprio Jesus: “Não é por acaso que em
vez de oficializar um Evangelho, o cristianismo primitivo optasse por pôr
quatro narrativas no cânone: não é a monodia que nos permite captar Jesus, mas
a polifonia, com as suas variantes, os seus contrastes, os seus silêncios e
singularidades. Do mesmo modo, isso é-nos dito pela apaixonante massa de
estudos que a contemporaneidade tem produzido sobre o Jesus histórico. O que é
o seu rosto? O rosto de um simples judeu? De um judeu marginal? De um profeta
escatológico? De um revolucionário social? De um sábio itinerante, igual a
tantos outros que o mundo greco-romano conheceu? De um homem santo? De um
camponês do Mediterrâneo?”
Podemos
procurar, assim, como no jogo de pista sugerido, a imagem que corresponde a
cada um destes rostos: estará o camponês representado no cruzeiro da Laje
(Âncora, Viana do Castelo)? Será o profeta escatológico o Cristo do cruzeiro da
Póvoa (Miranda do Douro)? Estará o filósofo itinerante no cruzeiro de Braga? E
o judeu marginal será o Cristo do santuário de Mossa Senhora da Portela (Tamel,
Barcelos)? Será o Jesus visionário o do cruzeiro da Ribeira de Nisa? O
reformador social será o do depurado cruzeiro de Fontoura (Viana do Castelo)?
E
o sábio estará representado no cruzeiro do santuário de São Salvador do Mundo
(Boticas) e no seu rosto desfigurado, para dizer que a santidade nos desfigura
o que é apenas aparência? E o Cristo sábio será o de Sá (Monção), para mostrar
que a sabedoria está no modo sereno com que se olha o mundo?
Difícil
será encontrar, nesta centena de rostos, um rosto tolhido pelo sofrimento.
Predominam os olhares serenos, confiantes ou tranquilos. Ou misteriosos, na sua
desconfiguração. Olhares, de qualquer modo, que se afirmam pela presença. Para
os artistas-escultores, Jesus seria sobretudo essa presença, mesmo no
sofrimento último e atroz que lhe estava a ser infligido.
É
nessa presença de um Deus frágil e vulnerável até ao limite que se funda a
esperança cristã. Nem sempre nos é fácil definir a esperança – menos ainda na
sua acepção cristã. Mas estes rostos falam também dessa quase obrigação de
viver o projecto esperança a que somos chamados, ainda mais em tempos que
parece nos darem apenas a desesperança.
No
texto de abertura do livro, Tolentino Mendonça acrescenta: “O rosto de Jesus,
ponto de interseção entre o divino e o humano, está claramente na história, mas
também para lá dela. Sabemos, por isso, que nenhuma imagem, por si só, capta a
verdade completa de Jesus. (...) Por mais ténue que seja o traço que cada [imagem]
nos forneça, todas juntas decifram um pouco mais o enigma que o rosto de Jesus
representa.”
Assim
também com estas esculturas em granito. Uma revelação.
Os Rostos de Jesus – Uma
Revelação
ed.
Temas e Debates / Círculo de Leitores
240
pp, 22,20 €
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