A crónica de Eduardo Jorge Madureira, no Diário do Minho deste domingo, 24 de Novembro:
“O ‘pobrezinho’ era uma
entidade que povoou a minha infância”, lembra António Alçada Baptista no
primeiro volume da Peregrinação Interior, que inclui as Reflexões
sobre Deus. Recordando o que se passava na década de 30 do século XX,
regista o autor: “Em todas as ‘boas’ casas da minha meninice meiga e temente
cultivavam-se os pobrezinhos, regavam-se com bocadinhos de pão com conduto, com
pequenas moedas de cobre e cultivava-se sobretudo a sua pobreza”. Nada parecia
faltar: “Havia a comida dos pobres, a esmola dos pobres, as visitas dos pobres
e a sexta-feira, sobre ser dia aziago, era também o dia dos pobres”. Para o
católico António Alçada Baptista, “as conversas sobre pobres entravam naquela
zona de espiritualidade provinciana que abrangia as novenas, os lausperenes e
as santas missões”.
As coisas para os pobres,
explica, eram objectos no meio do caminho entre o uso e o lixo. “Estavam
predeterminadas e correspondiam ainda à dificuldade de desapossamento das
coisas, mesmo as que já não servem, que está na base da civilização em que
vivemos”. Para o comprovar, relata o caso de uma alma distinta, aliás,
devidamente nomeada, a quem a mulher pergunta o que fazer à lista telefónica
antiga, no momento em que tinham acabado de entregar a nova edição. A resposta
foi simples: dar a um pobre. Oferecer uma lista telefónica a um pobre é, de
facto, uma boa piada, mas é, também, “uma caricatura exacta da dificuldade que
tem o homem de encarar uma coisa que, sem merecer obviamente o caixote do lixo,
na realidade não serve para nada”.
Conta Alçada Baptista que
cada rico se dava “mesmo ao luxo de ter o ‘seu’ pobre” e que “os ricos
deliravam com estes pobrezinhos assim cordatos, cumpridores, submissos e
respeitadores”. A Peregrinação Interior, que teve a primeira edição
em 1971, regista ainda que, nesse Portugal, que tantos pensavam longínquo,
havia muitas espécies de pobres. “Quanto ao modo como adquiriam os meios de
subsistência, havia os pedintes, os necessitados e os envergonhados”, cuja
distinção o autor estabelece com rigor.
Sobre a singular relação dos
ricos com os seus pobres, Alçada Baptista conta um eloquente episódio,
identificando uma das protagonistas.
Em certa ocasião, um grupo de senhoras
reuniu-se, a pretexto da caridade cristã, para decidir a quem, de entre elas,
seriam entregues as roupas e as mercearias para posterior entrega ao pobre que
a cada uma correspondia. Tratava-se, nota Alçada Baptista, de uma espécie de leilão
em que se licitava com as necessidades dos pobres.
“Dizia a pregoeira:
‘Mercearias, quem precisa de mercearias?’ Concorriam todas: ‘A minha precisa, a
minha precisa!’ Seguia-se a avaliação, e a sua pobre era acusada pelas donas
das outras: ‘A sua não, que tem uma filha que já ganha doze escudos [seis
cêntimos, pelo dinheiro de agora]!’ A pobre foi preterida por outras que não
ganhavam nada ou não tinham a sorte de ter filhas já tão bem colocadas na
vida”.
Pouco depois, nova ronda:
“Voz da pregoeira: ‘Roupas, quem precisa de roupas?’ Coro das senhoras: ‘A
minha precisa, a minha precisa!’ Contestação sobre as necessidades da mesma
pobre: ‘A sua não, que tem uma filha que já ganha doze escudos!’ Motivo
considerado suficiente para anular mais esta atribuição”. Foi então que, remata
António Alçada Baptista, a dona da pobre reclamou: “Está bem, mas então dêem-me
uma pobre que não seja rica”.
Muitas décadas depois, eis
que surgem idênticas objecções. “A maior parte dos pensionistas não são pobres
e estão a fingir que são pobres”, dizia, na primeira página e na terceira
coluna da página seis do Diário de Notícias de domingo
passado, João César das Neves, que não é alguma das tias de António Alçada
Baptista, nem a tia Gina, que “tocava órgão na paróquia, ensaiava os coros, era
zeladora, não sei quê da cruzada eucarística, das conferências de S. Vicente de
Paula”, nem a tia Celeste, que “escutava os ‘empenhos’ para o altíssimo onde
ela tinha acesso franco e natural”. João César das Neves é economista e garante
que “a maior parte” dos pensionistas são como a outra fingida, que quer passar
por pobre quando tem uma filha que ganha seis cêntimos. Perante tal logro,
apenas se pode lamentar que, em vez de serem pobres, os fingidos dos
pensionistas – não alguns, nem muitos, mas, sublinhe-se, “a maior parte” –
andem a descredibilizar os pobrezinhos.
(Imagem: foto de escultura existente no Convento de San Payo, em Vila Nova de Cerveira)
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