25 de Abril, 40 anos
(texto publicado a 21 de Abril de 1999, no Público, a propósito do livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho, do padre Luís Mafra, assistente da Acção Católica; mantiveram-se as referencias temporais)
(texto publicado a 21 de Abril de 1999, no Público, a propósito do livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho, do padre Luís Mafra, assistente da Acção Católica; mantiveram-se as referencias temporais)
“Como a Igreja não tomava qualquer posição, dava a impressão de
que estava a apoiar o Governo.” O padre Luís de Azevedo Mafra, antigo
assistente de movimentos de Acção Católica no tempo do cardeal Cerejeira,
sintetiza deste modo a atitude dominante da Igreja Católica e da sua hierarquia
em relação ao regime do Estado Novo e aos diversos episódios da relação entre
as duas instituições. Um livro de memórias e documentos faz um balanço de uma
época.
“A grande base de sustentação do Estado Novo não foram tanto os
nacionalistas, mas os católicos” e se, em relação ao regime e à guerra
colonial, a Igreja Católica “tivesse sido mais lúcida, como alguns dos seus
membros o foram, e tomado uma atitude, não revolucionária, mas mais justamente
crítica, independente, corajosa e menos conformista, a situação não teria
durado tanto tempo”.
Esta é uma ideia defendida por muita gente, mas ela adquire maior
importância vinda de quem vem: o padre Luís de Azevedo Mafra, 72 anos, antigo
assistente de movimentos de Acção Católica. No seu livro Lisboa no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho (ed. Centro de
Estudos de História Religiosa/Universidade Católica Portuguesa), de onde a
citação é retirada, o autor reúne um conjunto de notas e excertos dos seus
diários pessoais, para recordar algumas facetas do antigo patriarca de Lisboa e
o modo como ele agiu em diversos episódios de conflito entre a Igreja e o
regime e referentes à estruturação pastoral do patriarcado.
Um deles foi a viagem do então Papa Paulo VI a Bombaim, na Índia,
em 1964, que Salazar tomou como uma afronta, já que se realizava três anos
depois de a União Indiana ter anexado as possessões portugueses no seu
território (Goa, Damão e Diu). Para muitos católicos, o silêncio dos bispos em
relação às críticas de Salazar ao Papa era muito constrangedor. E, por todo o
país, padres e leigos pressionavam para que o episcopado tomasse uma posição de
defesa do Papa.
O padre Mafra foi um dos que escreveu a Cerejeira nesse sentido,
dando-lhe conta do embaraço de muitos católicos. “A situação era equívoca. Como
a Igreja não tomava qualquer posição, dava a impressão de que estava a apoiar o
Governo” nas críticas ao Papa, explica Luís Mafra. Na sequência da carta, o
cardeal Cerejeira chamou o padre para conversar com ele e explicar-lhe as suas
razões. “Foi um encontro elucidativo: ele não estava na disposição de
clarificar as coisas, nadava em águas turvas pelo receio de trazer prejuízos para
a Igreja. Negava que a Igreja estivesse do lado do Governo, mas receava que uma
atitude crítica fosse prejudicial para a Igreja”. E conclui, em forma de
síntese sobre o grau de simpatia de Cerejeira para com o regime: “Não era
fascista, mas não era propriamente um democrata.”
“O falar pode fazer desabar
tudo...”
No seu livro, o antigo assistente da Acção Católica cita o que
registou no seu diário, reproduzindo os argumentos do patriarca de Lisboa: “[A
Igreja] não porá nunca a hipótese de afirmar o que não é verdade ou de abdicar
da defesa dos valores fundamentais. Mas, fora deste caso, não será mais sensato
calar-se quando o falar pode fazer desabar tudo?”
O Governo de Oliveira Salazar, analisa agora o padre Mafra, “não
encontrou resistência a não ser por parte da esquerda política, que o regime
reprimia”. Ora, “se da parte dos bispos e do clero tivesse havido uma atitude
mais justa e mais lúcida, isso teria arrastado os crentes e ajudado a perceber
que o regime não estava certo”. Faltou, sobretudo ao episcopado, “mais lucidez,
mais firmeza, menos tolerância e menos transigência” nas relações com Salazar.
Luís de Azevedo Mafra não era adepto de formas radicais de
contestação – nem ao regime, nem dentro da própria Igreja. Por isso, preferia
sempre conhecer os argumentos de quem estava no centro dos problemas e não
queria pôr em risco a unidade do clero. Em 4 de Janeiro de 1965, o padre
contava, no seu diário, os argumentos de um colega da residência onde morava:
“Não podemos agir como elementos de fora; temos de comportar-nos como membros
dela, sofrendo e humilhando-nos na aceitação das directivas incompreensíveis
dos nossos pastores e nada fazendo que leve à divisão. O nosso sacrifício será
por certo factor de construção do reino de Deus.” Conclui o padre Mafra ter
dado a essa argumentação o seu “inteiro apoio”.
Título do Diário de Notícias relativo á audiência de Paulo VI com os líderes
dos movimentos de libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique:
depois da visita à Índia, este foi outro episódio de tensão com o Estado Novo
Apesar de privilegiar essa forma de actuar – que passava por
correspondência, conversas de grupo, movimentações de bastidores – Luís de
Azevedo Mafra analisa no seu livro que o episódio da visita de Paulo VI a
Bombaim deixou feridas insanáveis entre o clero de Lisboa e o seu patriarca:
“Ficaram incubados germes de contestação e rebelião que, mais tarde, se haviam
de activar perante novas situações de descontentamento e produzir frutos
amargos. Creio poder dizer que foram três os principais factores que para tal
concorreram: razões políticas do regime no poder e da sua actuação
(autoritarismo, repressão da liberdade, colonialismo e guerra do Ultramar),
deficiências de ordenação pastoral, e discussão da relação padre-bispo e do
estatuto do padre.”
O jornal oficioso do episcopado – o “Novidades” – foi outro dos
temas que contribuiu para o aparecimento de algumas posições críticas. Escreve
o padre Mafra no seu livro: “O ‘Novidades’ poderia satisfazer o ‘establishment’
católico; não satisfazia, porém, os que queriam mais objectividade,
independência e renovação. No aspecto político, seguia a linha conformista,
senão apoiante do regime, da Igreja portuguesa. Era o que muitos católicos,
inclusivamente padres, por esse país fora apreciavam.”
Outro caso foi o do padre Felicidade Alves, crítico do regime e
que Cerejeira acabou por demitir das suas funções de pároco de Belém e
suspender do ministério sacerdotal, depois de um período de conflito. Luís
Mafra diz que, embora discordasse dos métodos do colega, o cardeal Gonçalves
Cerejeira falhou, fechando-se à hipótese de um encontro de reconciliação. O
próprio padre Mafra fez essa proposta a Cerejeira e a recusa deste “cortou em
absoluto qualquer possibilidade de chegar ao entendimento”.
Também a actividade de renovação pastoral do patriarca de Lisboa
acabou por merecer nota crítica: a constante indefinição das estruturas de
decisão erigidas pelo cardeal Cerejeira e a sua demora em convocá-las e em
reuni-las acentuou o desencanto de alguns padres. Luís Mafra conclui as cem
páginas do seu livro com a história dessas ilusões e uma síntese da desilusão
final: “Apreciações, ideias, sugestões, propostas houve em abundância;
ficou-me, porém, a sensação de terem sido mal aproveitadas e não se traduziram
satisfatoriamente em atitudes concretas. Por falta de capacidade de
aproveitamento ou por obstáculos reais, contratempos ou oposição? Não sei. Foi
uma oportunidade que alguns utilizámos numa tentativa para dinamizar e romper barreiras
à reestruturação pastoral, mas que praticamente não resultou.”
A “figura majestosa” do patriarca
O cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira era um homem “muito complexo,
com muitas facetas que, por vezes, é difícil entender”. O padre Luís de Azevedo
Mafra, que contactou com o antigo patriarca de Lisboa durante quase 30 anos,
guarda muitas memórias do homem com quem falou, pela primeira vez, em 1943.
Seis anos antes desse encontro, o futuro padre tinha sido crismado
na antiga igreja de Arroios, tinha ele 10 anos; o patriarca estava nos 48.
“Fiquei deslumbrado com a figura majestosa do senhor patriarca, vestido de
vermelho e roupagens amplas que lhe davam ainda mais o ar de alguém que não era
deste mundo”, conta ele no livro Lisboa
no Tempo do Cardeal Cerejeira – Um Testemunho. “Depois aproximei-me
reverente para ser crismado, quase com a sensação de tocar a divindade. O seu
rosto, porém, pareceu-me fechado e distante; e da sua imagem mais não ficou do
que o esplendor que me tinha impressionado.”
Depois de três décadas de contacto – escrito e pessoal – com o
patriarca, o padre Mafra registou, naquela pequena obra de cem páginas,
excertos do seu diário pessoal, correspondência, notas e textos inéditos sobre
o que viveu no exercício das suas funções pastorais em Lisboa, essencialmente
enquanto assistente dos movimentos de Acção Católica.
No livro, Luís Mafra sintetiza outras características do cardeal
Cerejeira: “Tinha uma forma de agir demasiado diplomática, com prejuízo de uma
transparência muito desejada, e preocupava-se em dar uma imagem prestigiosa da
Igreja, no sentido de valorizar os elementos temporais que para isso
concorressem. Não o conheci propriamente autoritário, mas possuía um conceito
muito arreigado de autoridade que o levava a uma actuação excessivamente
pessoal, sem ouvir como seria conveniente aqueles a quem os assuntos diziam
respeito. Cioso da legítima autoridade do bispo, frequentemente reagia como se
quisessem contestar-lha, quando, em verdade, isso não acontecia.”
Cerejeira marcou também, enquanto chefe incontestado do episcopado
português, a ambiguidade com que a Igreja se relacionou com o ditador Oliveira
Salazar. No início da década de 60, recorda Luís Mafra, os assistentes da Acção
Católica resolveram pedir a Cerejeira e aos outros bispos que tomassem “uma
atitude muito clara que descomprometesse nitidamente a Igreja” (sobretudo a
hierarquia) em relação ao regime”. Em audiência concedida ao grupo, o patriarca
de Lisboa negou o gesto.
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