Artur Bual, Pietá
“Cristo é talvez um homem transfigurado, pinto-o no sentido de ter sido,
quanto a mim, um dos grandes poetas... alguém que deu e ainda dá!”
Artur Bual
Decorre na Amadora, até 8 de Junho, a exposição Bual revisitado:
retrospetiva, onde podem ver-se dezenas de obras de Artur Bual num circuito
pelas várias temáticas que marcaram a sua carreira. Falecido em 1999, Bual é
conhecido também por obras de inspiração religiosa, sobretudo as “cabeças” de
Cristo, crucificações e representações da Última Ceia. Em número de obras, é
uma das maiores mostras de Bual.
Em 2005, a Igreja Matriz da Amadora acolheu a mais
importante exposição de temática religiosa de Artur Bual, numa iniciativa
cultural que foi considerada das mais relevantes no âmbito do Congresso
Internacional para a Nova Evangelização, organizado em Lisboa. Alguns dos
quadros aí expostos – como o “Primeiro Poeta”, uma das mais emblemáticas
crucificações pintadas por Bual – podem agora ser vistos na Galeria Municipal,
que tem o nome do pintor, situada na Casa Aprígio Gomes, à entrada da cidade da
Amadora.
Para esta exposição, foi editado um catálogo
de 100 páginas, no qual vários especialistas e amigos fazem uma releitura da
vida, obra e inspiração de Bual. RELIGIONLINE
disponibiliza aqui o capítulo dedicado à dimensão religiosa na obra do
pintor gestualista português, da autoria de Joaquim Franco.
O crítico de arte Egídio
Álvaro define o gesto – na pintura gestual – como “o sinal das forças
interiores que se afrontam para engendrar qualquer coisa que fala à nossa
consciência profunda” (1). Não é uma arte fácil. Nenhuma inovação, sobretudo
artística, tem acolhimento unânime. Durante décadas, o gestualismo sofreu pela
falta de enquadramento estilístico. Fugia dos padrões artísticos vigentes.
Não ousamos aqui uma definição
ou redefinição de beleza que os clássicos introduziram na complexidade e
profundidade da filosofia. A beleza não é só estética, é também ideal. E é
neste caminho que podemos arriscar uma reflexão sobre a impressiva inspiração
bíblica na obra de Artur Bual. A beleza torna-se “mais percetível através da
transfiguração que a arte consegue realizar com os seus recursos expressivos” (2),
lembra o biblista e exegeta Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício
da Cultura.
O gestualismo
de Bual “nunca atinge o abstracionismo do gesto levado ao extremo”, constata
Manuel Cargaleiro, “tem sempre uma relação com o figurativo” (…) fazendo “uma
relação de síntese entre o gesto livre e a estrutura do figurativo” (3). Não se
trata de um artista que segue os padrões convencionais do crente praticante
cristão ou católico, longe disso. Não podendo dissociar-se a obra das vivências
em ambiente social e culturalmente católico, Bual é uma «provocação» da cultura
à própria religião.
A figuração e a abstração alternam-se e confundem-se na obra de
Artur Bual, que
pode sintetizar-se em duas frentes temáticas: a profana – «tourada», «cavalos»,
«meninas», «paisagens», «retratos» e «abstratos»… – e a religiosa, mais delimitada
– «ceia», «crucificação», «cabeças» de Cristo e decoração de capelas sob
encomenda –, conjugando o abstracionismo com a técnica retratista. Os amigos
relatam que em ambiente de confraternização Bual desenhava «rostos» de Cristo
inspirados em pessoas concretas. “Amigo é aquele que tem o direito de incomodar
o amigo”, dizia Artur Bual. As relações fortes de amizade e cumplicidade devem
também são um fator determinante na obra e inspiração do artista. O(s) Cristo(s)
é (serão), entre todos, os mais expressivos dos «retratos» de Bual.
Temperamental, o pintor rompe as convenções colocando nas «cabeças» de Cristo e
nas «Crucificações» uma angustiante perceção da existência humana, como quem
exprime uma busca de sentido e de sentimentos a partir de uma experiência de
sofrimento que é, ao mesmo tempo, o eterno combate entre a dúvida e a certeza
do devir.
As suas obras dão “a
oportunidade de viver a cada momento o maravilhoso ou o angustiante facto do
mundo, onde todas as coisas são vistas a partir da sua beleza secreta”, disse o
padre António Pedro Boto na missa de exéquias de Bual, em 1999. O eclesiástico comparou o
artista a uma “«epifania» do Transcendente,
que faz da natureza o lugar do seu resplendor”, entendendo que o rosto – as
«cabeças» de Cristo – “terá sido a expressão de uma inquietude e irrequietude”.
Como recorda Egídio Álvaro (4), citando Bual, “são símbolos de humanidade e
despojamento, de torturas e amor, na aventura da existência”.
Artur Bual, Cristo (imagem reproduzida daqui)
Diríamos
que o tema religioso – a “transcendência”, como Bual gostava de dizer - esteve
sempre presente. Num texto publicado em 1964, Bual pensava na sua própria
pintura como algo que o transporta “com a insatisfação do humano em busca do
transcendente”. Era levado pelas mãos “crispadas na amurada incerteza” das suas
incertezas, acrescentava, “trincando palavras sem forma concreta que segredam o
grito, para além da policromia clássica e para aquém da minha causa, de
captação do absoluto” (5). Numa interpretação
dramaticamente pessoal, Bual acrescentaria mais tarde: “Cristo é talvez um homem
transfigurado, pinto-o no sentido de ter sido, quanto a mim, um dos grandes
poetas... Alguém que deu e ainda dá!” Estou sempre predisposto a pintá-lo. Quem
sabe se não o pinto como quem faz um auto-retrato?”
Num olhar especulativo, as designadas
«cabeças» de Cristo permitem uma leitura ambígua. Na expressão de sofrimento e
no rasto do traço sanguíneo, dão-nos também a ideia de um «corte». Só um estudo
aprofundado das confessadas e, por isso, insondáveis motivações do pintor,
permitiria averiguar a plausibilidade desta intuição interpretativa. Para um
artista cuja técnica e contexto se revelam impulsivos, não é de excluir a
hipótese de uma manifestação do simbólico metafórico, de uma linguagem subliminar
num tema tão intrigante. Eduardo Nascimento, artista plástico e dinamizador do
Círculo Cultural e Artístico Artur Bual, enquadra esta leitura numa simbologia
de rutura. As «cabeças» de Cristo são “como um corte que remete para a
solidão”, como um “isolamento” imposto por uma paradoxal necessidade do íntimo,
“é a tentativa de ir mais além na dupla relação que
temos connosco, a eterna solidão para nos aproximarmos da «simples» pergunta:
«Quem sou eu?»”. Uma
leitura em sintonia com o já citado desabafo do artista, quando assume que pode
ter pintado Cristo “como quem faz um auto-retrato”.
O “transcendentemente
vagabundo” Bual, nas palavras de Eduardo Nascimento, “colocava
na tela essa verdade simples (…) que se ocupa e afaga nos vários momentos que
os ventos mudam na nossa rota, (…) despejando a força do maior maremoto ou
turbulência”, como se tudo se inclinasse “para a libertação e conclusão do
caos, da utopia no tempo inexistente dessa verdade”.
Bual pintava os Cristos em
silêncio, lembra Nascimento, “o silêncio transcendente da intemporalidade de
uma montanha, numa cave que por vezes tinha a sensação do poder absoluto de um
Deus, num deserto, esperando uma mão cheia de gotas de água, para mostrar as
flores mais belas no efémero de um belo somente acessível ao olho interno da
procura da luz”.
“Com estes rostos e as
crucificações de Cristo, ficamos serenos e inquietos”, disse o padre Vítor
Melícias na abertura de uma exposição de 26 quadros de Artur Bual na Igreja
Matriz da Amadora, em outubro de 2005. Bual vivia e tinha o ateliê numa cave
localizada nas imediações. Houve reação na cidade, no
meio cultural e eclesial. As pinturas foram expostas na nave da igreja e no
deambulatório. Podiam ser vistas enquanto o templo estava aberto, sem
restrições ou pagamento. Durante dois meses, as celebrações religiosas tiveram
a presença dos Cristos de Bual - «cabeças», «crucificação» e «ceia». À paróquia
chegaram opiniões diversas. Houve clérigos que criticaram a iniciativa, não
tantos quantos os que a elogiaram. Meses depois, a iniciativa seria replicada
em Braga, mas na Sala do Recibo do Mosteiro de
Tibães, associada às iniciativas de caráter cultural da Semana
Santa bracarense.
“A crítica cultural purifica
a religião de andrajos que lhe retiram a luz pura e nua de Deus”, disse a
propósito o então bispo auxiliar de Lisboa, Carlos Azevedo. O prelado defendia
que “cada indivíduo é um problema não resolvido, um problema em aberto” e que “a religião precisa da
crítica da cultura” (6).
Era conhecida sensibilidade
política de Artur Bual… à «esquerda». “Numa
certa geração, os artistas eram predominantemente de esquerda”, lembra Clara
Meneres, “mas muitos deles tinham uma sensibilidade religiosa profunda” (7). A presença de padres no
estrito grupo de amigos mais próximos de Artur Bual é reveladora de uma certa idiossincrasia.
O padre Adelino Ascenso, missionário da Sociedade Missionária Boa-Nova no
Oriente, revelou na inauguração da referida exposição que teve muitas horas de
conversa com Artur Bual à volta dos quadros: “Sobre que é que falávamos? Sobre
a vida. Experimentando, no meio dos relâmpagos de limpidez e transparência, a
ansiedade tenebrosa de não podermos dizer o indizível. A transcendência. O
Além. O sabor de uma angustiante esperança e de uma esperançosa e esperançante
angústia, que ele tão bem exprimia nos seus Cristos. Eram tempos de sonho e de
busca”.
Com um percurso de vida que
podia indiciar distância em relação à religião, Bual surpreende pela natureza
religiosa da sua inspiração. Uma «religião» que é vida e experiência de
relação. Bual surgirá assim como um problema “não resolvido” diante da
experiência dogmatizada e moralizante da religião?
“Tantas vezes”, exclama o
padre Adelino Ascenso, “com a nossa tendência para explicar, analisar ou
justificar, turvamos a limpidez da existência!”.
O padre António Pedro Boto,
atualmente na Direção do Departamento da Cultura e
Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa, descreve o artista como quem “se
liberta da caducidade material porque aquilo que quer e anseia é encontrar o
sentido verdadeiro do que se vê, e isso vai muito além do finito e
projeta-se... A arte de Bual deixa transparecer a certeza do
invisível”.
A formação artística e a
sensibilidade de Artur Bual têm âncora em Portugal e em França. O pintor
acompanhou as décadas de acentuados paradoxos, num mundo em guerra, num país de
contrastes, convulsões permanentes e liberdades oprimidas. Foi culturalmente
influenciado, da liberdade de escolha artística, à escolha de um estilo livre
para se projetar pela arte. Teve momentos incómodos em que não se conseguiu arrumar
nos padrões artísticos do seu tempo. Terá apurado essa incompreensão na própria
tela.
A introdução de Bual na
representação simbólica bíblica não terá fugido à que era comum num tempo
marcado por uma Igreja católica moralmente dominadora, com uma teologia reinante
que valorizava o sofrimento e a resignação. O pintor ter-se-á apropriado desta
«cultura» religiosa, representada na devoção popular, na «realidade» que rodeava.
A grelha de leitura não pode excluir este contexto. A figuração religiosa reflete
a mundividência e o quadro mental por onde passou Bual, as suas obsessões,
opções e indignações. A pintura é o pintor, e o pintor é também a consequência.
“O simbolismo pelo qual o sagrado se manifesta está
subconsciente na cultura moderna” (8), sublinha Carlos Azevedo, atualmente
delegado do Conselho Pontifício da Cultura.
Pela força da técnica
gestualista, os Cristos de Bual são também ctónicos, têm uma força bruta e
brutal, de um estado de espírito agarrado à terra e à humanidade, projetado na
iconografia neotestamentária. É nestes espaços que se constroem tempos e
templos de diálogo, e os aparentes
paradoxos permitem aproximações. A exposição do(s) Cristo(s) de Bual na Igreja
da Amadora não se realizaria noutras igrejas, com outros contextos. A iniciativa
resulta da conjugação das circunstâncias locais, de proximidade. Um acaso que foi
ocasião, como acontece na dinâmica religiosa. Manuel Clemente reconhece, por
via da secularização, dificuldades no diálogo entre a fé e a cultura, mas
também vislumbra a “consciência de que a «nova evangelização», no que se refere
à arte, implica um esforço no acolhimento da novidade inerente à pluralidade de
linguagens da arte contemporânea” (9).
Neste caso, a arte de Bual
não é o reflexo direto de uma catequese ou teologia, mas há uma catequese e uma
teologia que desencadeiam as representações bíblicas de Bual, com acentuadas
dissonâncias doutrinárias. Mais uma vez, o artista «vinga-se» através da
interpretação pessoal, usando os mesmos símbolos e uma nova linguagem.
A liberdade de quem
contempla os Cristos de Bual pode localizar-se fora dos «códigos» do artista. É
natural que assim seja. O «jogo» da interpretação destaca o objeto do objetivo,
como acontece com a Bíblia. Para o teólogo jesuíta e artista plástico Marko
Ivan Rupnik, “neste mundo onde prevalece uma dialética entre o subjetivismo
e o objetivismo, produzindo continuamente antagonismo e esboroamento, a beleza
representa a plataforma de elaboração de um modo de pensar, sentir e criar –
sobretudo de um estilo de vida – comunial, afirmando a unidade e, ao mesmo
tempo, a diversidade” (10).
A Bíblia é um tremendo
arsenal iconográfico, literário e histórico. Um código de cultura, de uma
estética ocidental sujeita a constantes metamorfoses. Pode ser orientada, reinterpretada
e deformada para fins que, à primeira vista, podem ser-lhe estranhos. Falar de
Transcendência em Bual, é aceitar que o «invisível» não tem limites, admitindo,
embora, que o «invisível» só se faz «visível» através da limitação humana, que
o artista procura vencer e ultrapassar. “Contemplar o mundo,
contemplar a humanidade e exprimir essa contemplação através do traço, da cor,
da arte”, diz António Pedro Botto, “é querer também levar os homens a essa
sublime certeza de que aquilo que vemos é muito mais do que aquilo que vemos”.
Nesta «chispa» de espiritualidade,
tantas vezes renegada, reencontrou Neruda a mesma calma tormenta que terá
conduzido as mãos de Bual na (re)construção do(s) Cristo(s): “Difundi-me, não
há dúvida, troquei de existências, mudei de pele, de lâmpada, de ódios, tive
que o fazer não por lei, não por capricho, mas sim por escravidão,
acorrentou-me cada novo caminho, ganhei rosto à terra, a toda a terra, e de
repente disse adeus, recém-chegado, com a ternura ainda recém-partida (…) Sabe-se
que o que regressa não partiu, e assim na vida andei e desandei mudando de
roupa e de planeta, habituando-me à companhia, à multidão desterrada, à grande
solidão dos sinos” (11).
Joaquim Franco
Jornalista, investigador do
CLEPUL e em Ciência das Religiões na ULHT
Artur Bual, Cristo
Bibliografia
(1) Álvaro, E.
(2005). Arte anti-destino. In Bual,
Extractos da Obra. (p. 24). Oeiras: Valente Editores.
(2) Ravasi, G.
(2012). Beleza e mundo bíblico. In Marto. A., Ravasi. G., Rupnik, M. O
Evangelho da Beleza. (p. 59). Lisboa. Paulinas Editora.
(3) Cargaleiro,
M. (2005). Entre fronteiras do gesto/figurativo. In Bual, Extractos da Obra.
(p. 23). Oeiras: Valente Editores.
(4) Álvaro, E. (2005). Arte anti-destino. In Bual, Extractos da
Obra. (p. 25). Oeiras: Valente Editores.
(5) Bual, A. (1964). A minha pintura está a acontecer comigo. In Cartaz.
(6) Azevedo, C.
(2005, 22 de outubro). Evangelização, Fé e Cultura. Comunicação na
conferência com o mesmo nome, realizada na Igreja Matriz da Amadora.
(7) Marujo, A.
(2005). Do Cristo do pintor comunista à atração dos artistas pelo espiritual.
In Público. 5718. 54 – 55. Lisboa.
(8) Azevedo, C.
(2008). Ribeiros de Esperança. (p. 32). Lisboa: Editorial Paulus.
(9) Clemente,
M. (2013). Uma casa aberta a todos. (p. 112). Lisboa: Paulinas Editora.
(10) Rupnik, M.
(2012). Beleza e pensamento teológico. In Marto. A., Ravasi. G., Rupnik, M. O
Evangelho da Beleza. (p. 121) Lisboa: Paulinas Editora.
(11) Neruda, P.
(1975). Plenos Poderes. Trad. Luís
Pignatelli. Lisboa: Dom Quixote.
Exposição retrospetiva de Artur Bual
Galeria Municipal Artur Bual –
Casa Aprígio Gomes
R. Luís de Camões, n.º 2, Venteira
– Amadora
Ref. GPS: 38.756646, -9.235615
Telf.: 214 369 000 – ext: 5190
Terça a domingo, das 10h00 às
18h00
endereço electrónico: gmabual@gmail.com
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