Crónica
“... caminha à sua frente e as
ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz.”
(Domingo IV da Páscoa, ano A, Evangelho
de São João 10, 4)
Jodie Foster no filme Nell (foto reproduzida daqui)
A voz humana é das características
mais espantosas que temos. Dizem os entendidos que começamos a reconhecer as
vozes dos pais ainda na barriga da nossa mãe. E do choro inicial ao balbuciar
dos primeiros tempos, das primeiras palavras às últimas, do gritar ao cantar, é
espantosa a comunicação que produzimos. Várias vezes me recordo do filme “Nell”,
com Jodie Foster e Liam Neesson, em que uma jovem, encontrada em estado
selvagem, aprende a dizer e a dizer(-se) num processo de comunicação e relação
que revela a importância de “encontrarmos a nossa voz”. Na Bíblia fala-se de
Jesus como o Verbo, e Jesus realiza milagres com a força da palavra.
Mas, ultimamente, falarmos da
“voz” é pensar quase imediatamente em alguns “reality shows” televisivos, em
que os concorrentes estão expostos constantemente (qual peixes de um aquário!),
e têm de cumprir as tarefas mais inverossímeis sob o comando de uma voz que
manda, julga, avalia, recompensa e condena (qual voz de um deus desconhecido, último
garante das audiências televisivas). É talvez uma parábola do mundo
contemporâneo em que, substituindo o silêncio pelo ruído constante (música,
rádio e televisão sempre ligados) é possível perguntar: a voz interior, o
reflectir sobre o que vejo, o pensar sobre mim e o mundo, a consciência,
tornaram-se tão incómodos que o melhor é enterrá-los de vez? Mas, assim como temos
voz para comunicar(mo-nos), quais as vozes que escutamos e nos ajudam (ou não)
a crescer?
A voz é um meio cheio de conteúdo.
Comunica uma mensagem, e o modo de a comunicar revela tanto ou mais do que o
conteúdo. Gosto tanto de imaginar como seria a voz de Jesus! Não só esta que
penso “ouvir” no meu pensamento e no coração. Mas aquela que os discípulos e as
multidões ouviram, que fez a samaritana colocar as suas questões e Maria
Madalena reconhecê-l’O ressuscitado. A sua voz a dizer as bem-aventuranças e a
contar as parábolas, a pedir a Zaqueu para ficar em sua casa e a perguntar a
Pedro se O amava. Essa voz não se perdeu e acredito que continua a ouvir-se em
tantas palavras da Igreja, e nas vozes dos que O escutam e seguem. Mas, às
vezes, pergunto-me se não deixamos de O escutar. Porque as nossas vozes não
abraçam nem acolhem, não salvam nem abrem futuros de esperança. Parecem “discos
riscados”.
Conhecer e crescer em intimidade
com Jesus é o que o Pai deseja para todos nós. Por isso a escuta é fundamental;
a alegria de ouvirmos o nosso nome na sua boca é revitalizador; descobrir que
Ele fala na voz de outros e na nossa também, é convite à comunhão. Criar
espaços e condições para essa escuta e diálogo mútuos, entre nós e com Jesus,
chama-se evangelização. Mas se andarmos de auscultadores sempre postos, ou a
seguir vozes que não nos deixam pensar por nós próprios, bem pode Jesus
chamar-nos que dificilmente O ouviremos. É verdade, vocação quer dizer
chamamento! Sentimo-nos chamados? Por quem? Para quê?
(crónica publicada no jornal Voz
da Verdade datado de 11.05.2014)
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