Crónica
Na crónica semanal que publica no Diário do Minho, Eduardo Jorge Madureira Lopes reflectia, dia 3 de Maio, sobre a questão do descanso semanal e sobre a simbólica associada aos feriados. Apesar de terem passado alguns dias, e porque o tema continuará no debate nacional nos próximos tempos, aqui fica o texto, que vale a pena ler:
Uma sociedade decente não dispensa
a memória, não se esquece de honrar aqueles a quem deve as mais significativas
conquistas civilizacionais. Foi muito útil que Acílio Estanqueiro Rocha tenha lembrado, aqui no Diário do Minho, a 1 de Maio, que, nesse dia, em 1886, nas ruas de
Chicago, centenas de milhares de trabalhadores se revoltaram contra as
condições desumanas de trabalho e lutaram para que diariamente se trabalhasse
oito horas e não, como sucedia, catorze ou dezasseis. Essa luta e as que se
seguiram foram violentamente reprimidas pelas forças policiais, mas valeram a
pena. O heroísmo e a coragem dos trabalhadores, como Acílio Estanqueiro Rocha também recordou, levou o Senado americano a aprovar,
em 1890, a redução da jornada de trabalho. Desde o final do século XIX, celebra-se
a 1 de Maio o Dia do Trabalhador
para homenagear os “mártires de Chicago”, pela sua luta em prol da dignificação
do trabalho.
As campanhas de instigação ao
consumo agendadas para o Dia do Trabalhador, iniciadas pelo Pingo Doce há três
anos, humilham a memória dos que lutaram – sacrificando a vida, em tantos casos
– para que cada pessoa pudesse ser bem mais importante do que o seu trabalho. O
que o Pingo Doce vem dizer com as suas promoções do 1.º de Maio é que o consumo
é mais importante do que o trabalho e que o trabalho é mais importante do que a
pessoa. Poucas greves foram, por isso, simbolicamente tão importantes quanto a
que foi feita no dia 1 de Maio por trabalhadores dos super e hipermercados.
O retrocesso civilizacional no
mundo laboral tem sido agravado com a entrada num tempo contínuo consagrado ao
consumo, um tempo permanentemente submetido ao primado do económico. A
constatação, que tem sido amplamente partilhada, encontra-se agora no número de
Maio da revista Philosophie, que
dedica algumas páginas a comentar a lei francesa que autoriza o trabalho dominical,
quebrando tradições que remontam há muitos séculos.
Desde logo, a do povo judeu, que instituiu
o princípio de um repouso no sétimo dia da semana. Ao sábado, o shabat era e é vivido como uma
preparação da vinda do Messias. Como para os católicos o Messias já veio, o dia
de interrupção do trabalho transferiu-se para o domingo, dia da ressurreição de
Cristo. O primeiro imperador convertido ao cristianismo, Constantino, impôs, no
século IV, que o domingo sem trabalho se estenderia a todo o Império Romano,
recorda a Philosophie. Além do sábado
e do domingo, poder-se-ia ter referido a sexta-feira, dia em que os muçulmanos
param para descansar e orar.
O shabat, a obrigação de repousar ao sétimo dia, é “a contribuição
mais importante do judaísmo para a humanidade”, crê o filósofo Benjamin Gross,
que o editor Michel Valensi cita. Na evocação do shabat, os judeus são instados, simultaneamente, a recordar “o
facto natural da criação do mundo e o facto histórico da libertação da
escravatura no Egipto”. Michel Valensi julga que o shabat pode interessar-nos mesmo que a sua dimensão metafísica se
apresente distante das preocupações do mundo contemporâneo. É que, diz, o shabat é um tempo de libertação, um
tempo que suspende as relações económicas. Com a repetição semanal de um
momento que escapa à economia, afirma-se uma dimensão de liberdade.
A ela se acrescenta a dimensão
comunitária, sem a qual falha a vocação do shabat.
É por isso que não se “faz shabat”
quando a cada um dá jeito. É por fazer o shabat
em conjunto que a sociedade se pode encontrar para o “dia da comunidade
reunida”. Também o domingo católico se apresenta como um tempo em que a vida
escapa à mercantilização e à instrumentalização. O dia do Senhor para os
crentes é um dia de liberdade para todos. Um dia em que a nossa existência não
se reduz ao consumo, para citar o título de um texto de Martine Aubry,
presidente do município de Lille, publicado no diário Le Monde.
A socialista Martine Aubry é muito
crítica do seu camarada Emmanuel Macron, autor da lei que autoriza o trabalho
ao domingo. “Queremos fazer do consumo o alfa e ómega da nossa sociedade? A
esquerda não tem mais para propor como organização de vida do que uma ida ao
domingo ao centro comercial e a acumulação de bens de grande consumo?”,
perguntou ela nesse texto de 10 de Dezembro, intitulado “Não reduzamos a existência ao consumo”. Para Martine Aubry, que foi
ministra do Emprego em vários governos, ”o domingo deve ser um tempo reservado
para si e para os outros. É um momento precioso que deve ser consagrado à
família e aos amigos, à vida associativa, à cultura e ao desporto… Valorizemos
o ser, mais do que o querer ter tudo. Guardemos tempo para pensar, respirar e
viver”. Guardemos para o essencial os dias da liberdade que urge preservar.
Sem comentários:
Enviar um comentário