Livro
O novo livro de Joaquim Franco recupera 71 crónicas publicadas no
site da SIC ou ditas no programa Princípio e Fim da RR.
São textos que atravessam dez anos
de mudanças e perplexidades na religião, no mundo, em Portugal. A Paulinas
Editora inaugura, com esta obra, uma nova colecção intitulada Sinais de Fronteira, e explica que Com Franqueza... faculta “flashes
(clarões) produzidos pelo especial olhar” de Joaquim Franco, “em alguns
momentos da nossa História, mas também da sua riquíssima história de repórter e
cronista reconhecido”.
O autor, jornalista da SIC,
investigador do Clepul (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e
Europeias), da Universidade de Lisboa, e em Ciência das Religiões na Universidade
Lusófona, analisa o tempo que passa e o mundo que fica, tendo como
enquadramento a religião, o fenómeno religioso, as estruturas religiosas,
nomeadamente a Igreja Católica, o mundo que se move pela religião e o outro que
não entende a religião. As crónicas estão reunidas em seis capítulos: Igreja e Religião no tempo; Portugal; Religião e Desporto; Páscoa;
Papa Ratzinger; Papa Bergoglio.
Com Franqueza... foi apresentado em Lisboa no dia 4 de Maio, por Felisbela Lopes, da
Universidade do Minho, António
Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa que assina o
prefácio, António José
Teixeira, director da SIC Noticias, e Ângela Roque, editora de
Religião da Rádio Renascença (pode ver-se a gravação vídeo das intervenções
clicando no respectivo nome).
Coube a Felisbela Lopes fazer a síntese da obra, que se transcreve a seguir:
É com todo o gosto que apresento
o livro de Joaquim Franco. Porque é um livro especial, que interrompe a pressa
com que nos habituamos a viver, fazendo-nos olhar devagar para periferias que
nos vão estruturando como sociedade. Porque é escrito por um jornalista cujo
trabalho aprecio imenso. Porque é sóbrio na postura e de grande densidade
naquilo que faz.
Com
Franqueza... a obra que aqui se apresenta é
isso mesmo que o título evidencia. Um olhar límpido e despretensioso sobre
várias realidades, com um foco particular no campo religioso, perspetivado com
a distância de um jornalista que sabe do que fala. Se é para a reflexão que
este texto nos interpela, convém que o autor seja rigoroso naquilo que escreve.
Da primeira à última crónica, este princípio é cumprido. Percebemos sempre o
que é da ordem do factual e o que pertence ao domínio impressivo do autor,
havendo espaço para uma interpretação que é nossa, que é livre, que pode mesmo
sair dos protocolos de leitura que uma crónica impõe.
A primeira parte, Igreja e religião no tempo, abre com um texto com um título
algo enigmático Feridos num crepúsculo.
Logo nas primeira frases, eis o mote de todo o livro. São dias de reflexão. É para a ordem do pensamento – muitas
vezes convocado pelo sentir, pelo sentir intenso, pelo sentir intermitente,
pelo sentir apurado – que nos convoca este texto. Que nos convoca, aliás, toda
a obra. Aqui a reflexão faz-se em torno dos recentes atentados de França.
Assim, com um convite aberto, explícito a pensar o que aconteceu de um lado e
do outro. Escreve Joaquim Franco: “Sim, todos seremos Charlie no reconhecimento do direito à
liberdade de expressão, dentro dos princípios e da lei que nos regem.
Não, não seremos Charlie se isso significar um pacto com a desresponsabilização
ou uma visão sectária e parcial. Se «somos todos Charlie», faça-se o minuto de
silêncio pelos camaradas jornalistas do Charlie Hebdo, mas também por todas as
vítimas que diariamente não noticiamos, que sucumbem às mãos de quem quer pela
força aquilo que não consegue em liberdade.”
Na verdade, o problema não está
apenas naquilo que se noticia quando há estes acontecimentos globais, de
ruptura, que tanto nos desinquietam. O problema está naquilo de que não se fala
no tempo restante. Na incomensurável multidão que mereceria ser notícia e que é
atirada para uma enorme espiral do silêncio. E aqui está Joaquim Franco a
recentrar-nos no essencial que importa reter. Fala-nos também da necessidade de
olhar devagar e por vários ângulos para o islão. Assim: “Quando se
classifica o Alcorão como um livro que apela à violência, reforçam-se os
estigmas criados em volta de uma religião que, como todas as outras, é
multifacetada e questionada também internamente.”
Valeria a pena discutir o que
fazemos nós, mundo ocidental, com as religiões. E o discurso jornalístico
poderia aqui dar uma preciosa ajuda na destruição de estereótipos e na
neutralização de estigmas. Joaquim Franco fala disto reiteradamente. Porque os do outro lado estão cada vez mais deste lado e o
mundo comum que os media constroem tem de ser erguido com todos. Os
acontecimentos de ruptura pertencem apenas a fundamentalistas que podem ser de muitos lados.
Neste contexto de insegurança
permanente nos lugares mais insuspeitos e no tempo mais inesperado, eis que
somos, de repente, assaltados por acontecimentos que nos roubam a paz,
provocando em cada um de nós uma imobilização tal que ficamos ali, com medo.
Com medo de todos e frequentemente é o próprio discurso político, que nos
deveria restituir algum equilíbrio, que nos afunda num temor que se vai
adensando. Joaquim Franco fala disso assim: “O discurso político
relaciona cada vez mais a insegurança com a imigração, a imigração com a
religião, a religião com a segregação. Desmontar esta equação é o novo e
prioritário espaço das religiões. O debate sobre a religião na sociedade
europeia não se limita à reflexão cristã, nem se esgota com o Islão. Tem de ser
inclusivo.”
É nesse cruzamento do
institucional com a vida de todos os dias do cidadão comum que a religião
deverá estar, num diálogo que some credos em vez de os dividir em grupos que se
vão marginalizando uns aos outros.
Claro que aqui os media também
têm um papel importantíssimo. É por eles que passa grande parte da construção
social da realidade. É por eles que cada um de nós vai recriando percepções
sociais que nos atam uns aos outros numa espécie de cola do mundo que convém
promover em permanência. Mas os media também podem ser lugares que fomentam
discriminações. Joaquim Franco conhece bem este campo, mas, apesar de ser um
dos de dentro, ou talvez por isso mesmo, vai apontando os constrangimentos que
atingem o discurso mediático: “Hoje, na comunicação mediática, domina também a
síntese sobre a análise, o padrão sobre o pormenor”.
A consciência de que os media
se caracterizam por profundas limitações deveria merecer hoje mais debate, mais
reflexão. E, por entre vários textos, lá vamos nós apreendendo novas dinâmicas
de um universo que tanto nos domina, o do discurso mediático, declinado a
partir do campo jornalístico.
Numa segunda parte, fala-se de
Portugal, começando por interrogar Que
país queremos ser? E
escreve-se isto: “O país que queremos ser terá de ser também o que podemos e devemos ser com
os povos e países que partilham o nosso espaço”.
Reconhece-se a assertividade do
discurso, mas também se deve admitir a dificuldade em reverter tudo isto em
possibilidades práticas de ação. Joaquim Franco conhece bem os limites da
decisão política e está consciente dos rumos para onde nos leva esta
pós-modernidade tão pendurada nas aparências e deveras entretida em acumular
bens: “O País tende a ser o que podemos ter e é cada
vez menos o que queremos e devemos ser, perdendo o azimute da
justiça social.”
Ser e ter: eis como na troca de
uma letra se transporta todo um outro destino. Que hoje, em Portugal, se
declina em sucessivas crises: São as lojas de comércio que fecham para férias e
já não encontram ânimo (também alma) para reabrirem; São as pessoas que outrora
faziam voluntariado social e agora precisam de ajuda.
É um país do avesso este em que
habitamos à procura de um futuro que continua longe demais enquanto nos vamos
distraindo com minudências que escondem o essencial. A palavra de novo a
Joaquim Franco: “Faltará uma reforma que não se fixa em documentos
estratégicos, que não se apresenta em power point, da qual não se faz propaganda, mas que pode mexer na
atitude política e redefinir a própria economia. Faltará reformar relações e
afinidades. Mais ser e
menos ter”.
Precisamos, pois, de uma outra
revolução que tenha réplicas em vários campos. Também na religião, como bem se
lembra nesta obra: “Há uma revolução que está ainda por fazer em Portugal: a
forma de ver a religião e o fenómeno religioso. Quase 40 anos depois do 25 de
abril, permanecem clichés, preconceitos e intransigências. Para muita gente,
pouco ou nada mudou.”
É tempo de todos refletirem
profundamente nisto. A religião na primeira linha. Sendo um conteúdo especializado, a religião pode estar na posse da
chave interpretativa para factos de natureza política, económica, social ou
cultural. Desporto incluído. Aliás, é desse cruzamento que trata o terceiro
ponto da obra. E aí recorda-se que o Papa Francisco compara a experiência da fé
a um golo. É esse momento que faz um estádio rejubilar coletivamente de alegria
que deveria ser a imagem perfeita do modo como vivemos a religião. Mas na maior
parte das vezes nem um pálido reflexo disso conseguimos encontrar nas nossa
igrejas católicas. “Basta ver a cara sisuda e infeliz de muita gente numa missa e de
muito sacerdote no altar”, escreve Joaquim Franco. Católica convicta, posso
também acrescentar: basta também seguir algumas homilias completamente des-sintonizadas
dos textos sagrados e desligadas das nossas vidas. Lá está: que bem nos faria a
tal reflexão de que falam as primeiras páginas deste livro.
Os três últimos pontos são
direcionados para a religião, nomeadamente para a religião católica. Fala-se da
Páscoa, do Papa Bento 16 e do Papa Francisco. Concentremo-nos, pois, nestas
duas figuras marcantes da Igreja.
Primeiro Bento XVI. Joaquim
Franco abre esta parte com um texto com o curioso título interrogativo Deus decapitou Ratzinger?. Escreve-se
logo no início isto: “Ao optarem por Ratzinger, os cardeais reforçaram uma
Igreja à imagem e semelhança da Europa, para resistir ao «relativismo» europeu.”
Triunfava o cardeal da razão que
sucedia a um papa emotivo, que fez do centro um lugar nómada, arrastando
multidões para onde se deslocasse. Porque transportava consigo uma espécie de
pensamento do ventre que magnetizava tudo e todos à sua volta. Fez, como se
escreve nesta obra, um tsumani mediático.
Ratzinger era muito diferente.
Esta obra recupera momentos bem significativos do seu pontificado. Como a sua
primeira encíclica dedicada ao... Amor.
Nesta encíclica – escreve-se - Bento
XVI não aborda diretamente a homossexualidade, o celibato, as uniões de facto,
o divórcio, mas, passando ao lado, não deixa de sublinhar o pensamento
doutrinário. Para a Igreja, o amor entre o homem e a mulher deve ser parte
integrante de uma experiência mais profunda.
Sublinham-se outras partes
importantes do texto, mas é nas impressões sobre esta iniciativa que se retém o
essencial: É na opção e na
forma, não no conteúdo, que a encíclica tem novidade. Quando o nome de
Ratzinger foi anunciado na Praça de S. Pedro, para suceder a João Paulo II,
provocando reações extremadas de ceticismo e euforia, quem suspeitava que a sua
primeira encíclica seria dedicada ao Amor? Quem imaginava um homem apresentado
como frio e racional a escrever sobre um tema tão delicadamente sensível?
Neste ponto sobre Bento XVI,
abrem-se ainda janelas para a viagem do papa à Alemanha, a Espanha e ao
continente africano onde, do ponto de vista mediático, nem tudo correu bem. E
também isso é assinalado.
Esta parte termina com dois
textos acerca da resignação do Papa Bento XVI. E Joaquim Franco destaca aquilo que
é sempre uma tentação: a comparação dos pontificados de João Paulo II e Bento
XVI. Ora aqui está o vector a partir do qual tudo deve ser pensado: “Os
tempos históricos são diferentes como diferentes são as circunstâncias de vida
de cada um dos homens que assumiram a liderança espiritual da Igreja Católica.
Foi tão corajoso o místico atleta polaco, como lúcido foi o cerebral professor
alemão.”
E eis que chegamos à ultima parte
do livro dedicada a Francisco, com este texto: Da perplexidade ao espanto.
Fala-se de um homem normal que
encontra aí a sua singularidade. Parece tão próximo de nós que nos cega,
desacomoda, interpelando-nos permanentemente para margens que importaria
urgentemente puxar para o centro. É certo que a Igreja não é o Papa, mas...
Aqui está uma adversativa que Joaquim Franco junta num título que nos abre para
uma reflexão acerca da importância da cadeira de Pedro. “A popularidade do
Papa é determinante para o catolicismo”, escreve-se. E este Papa tem
características únicas, tão bem enunciadas neste livro: “Encaixa que nem uma
luva na expectativa interna, da maioria dos crentes, mais ou menos
praticantes.. Mas também encaixa nas expectativas externas, de um mundo em
revisão de valores. É ver a forma como é acolhido o discurso social, político e
religioso de Francisco”
Estamos a chegar ao fim desta
obra. Com Franqueza... este
é um livro muito fácil de ler. Podemos ler de forma contínua, saltar páginas,
parar a meio de um texto e retomar a seguir. Mas Com Franqueza... este não é um livro fácil de integrar
na vida de todos os dias daqueles que vivem um quotidiano apressado, sem nunca
ter aprendido a conjugar o verbo ser em todos os tempos verbais. Esses vão
ficar baralhados com um parágrafo ou outro, mas talvez este fosse o tempo de
olhar a vida por outros ângulos, recuperando o essencial com que cada dia nos
surpreende sempre.
Com
Franqueza... esta
obra pode constituir-se como uma excelente âncora para agarrar esse novo
desafio.
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