sábado, 9 de maio de 2015

Com Franqueza... - Crónicas num tempo em mudança

    Livro



O novo livro de Joaquim Franco recupera 71 crónicas publicadas no site da SIC ou ditas no programa Princípio e Fim da RR. 
São textos que atravessam dez anos de mudanças e perplexidades na religião, no mundo, em Portugal. A Paulinas Editora inaugura, com esta obra, uma nova colecção intitulada Sinais de Fronteira, e explica que Com Franqueza... faculta “flashes (clarões) produzidos pelo especial olhar” de Joaquim Franco, “em alguns momentos da nossa História, mas também da sua riquíssima história de repórter e cronista reconhecido”.
O autor, jornalista da SIC, investigador do Clepul (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), da Universidade de Lisboa, e em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, analisa o tempo que passa e o mundo que fica, tendo como enquadramento a religião, o fenómeno religioso, as estruturas religiosas, nomeadamente a Igreja Católica, o mundo que se move pela religião e o outro que não entende a religião. As crónicas estão reunidas em seis capítulos: Igreja e Religião no tempo; Portugal; Religião e Desporto; Páscoa; Papa Ratzinger; Papa Bergoglio. 
Com Franqueza... foi apresentado em Lisboa no dia 4 de Maio, por Felisbela Lopes, da Universidade do Minho, António Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa que assina o prefácio, António José Teixeira, director da SIC Noticias, e Ângela Roque, editora de Religião da Rádio Renascença (pode ver-se a gravação vídeo das intervenções clicando no respectivo nome).
Coube a Felisbela Lopes fazer a síntese da obra, que se transcreve a seguir:

É com todo o gosto que apresento o livro de Joaquim Franco. Porque é um livro especial, que interrompe a pressa com que nos habituamos a viver, fazendo-nos olhar devagar para periferias que nos vão estruturando como sociedade. Porque é escrito por um jornalista cujo trabalho aprecio imenso. Porque é sóbrio na postura e de grande densidade naquilo que faz.
Com Franqueza... a obra que aqui se apresenta é isso mesmo que o título evidencia. Um olhar límpido e despretensioso sobre várias realidades, com um foco particular no campo religioso, perspetivado com a distância de um jornalista que sabe do que fala. Se é para a reflexão que este texto nos interpela, convém que o autor seja rigoroso naquilo que escreve. Da primeira à última crónica, este princípio é cumprido. Percebemos sempre o que é da ordem do factual e o que pertence ao domínio impressivo do autor, havendo espaço para uma interpretação que é nossa, que é livre, que pode mesmo sair dos protocolos de leitura que uma crónica impõe.

A primeira parte, Igreja e religião no tempo, abre com um texto com um título algo enigmático Feridos num crepúsculo. Logo nas primeira frases, eis o mote de todo o livro. São dias de reflexão. É para a ordem do pensamento – muitas vezes convocado pelo sentir, pelo sentir intenso, pelo sentir intermitente, pelo sentir apurado – que nos convoca este texto. Que nos convoca, aliás, toda a obra. Aqui a reflexão faz-se em torno dos recentes atentados de França. Assim, com um convite aberto, explícito a pensar o que aconteceu de um lado e do outro. Escreve Joaquim Franco: “Sim, todos seremos Charlie no reconhecimento do direito à liberdade de expressão, dentro dos princípios e da lei  que nos regem. Não, não seremos Charlie se isso significar um pacto com a desresponsabilização ou uma visão sectária e parcial. Se «somos todos Charlie», faça-se o minuto de silêncio pelos camaradas jornalistas do Charlie Hebdo, mas também por todas as vítimas que diariamente não noticiamos, que sucumbem às mãos de quem quer pela força aquilo que não consegue em liberdade.
Na verdade, o problema não está apenas naquilo que se noticia quando há estes acontecimentos globais, de ruptura, que tanto nos desinquietam. O problema está naquilo de que não se fala no tempo restante. Na incomensurável multidão que mereceria ser notícia e que é atirada para uma enorme espiral do silêncio. E aqui está Joaquim Franco a recentrar-nos no essencial que importa reter. Fala-nos também da necessidade de olhar devagar e por vários ângulos para o islão. Assim: “Quando se classifica o Alcorão como um livro que apela à violência, reforçam-se os estigmas criados em volta de uma religião que, como todas as outras, é multifacetada e questionada também internamente.
Valeria a pena discutir o que fazemos nós, mundo ocidental, com as religiões. E o discurso jornalístico poderia aqui dar uma preciosa ajuda na destruição de estereótipos e na neutralização de estigmas. Joaquim Franco fala disto reiteradamente. Porque os do outro lado estão cada vez mais deste lado e o mundo comum que os media constroem tem de ser erguido com todos. Os acontecimentos de ruptura pertencem apenas a fundamentalistas que podem ser de muitos lados.
Neste contexto de insegurança permanente nos lugares mais insuspeitos e no tempo mais inesperado, eis que somos, de repente, assaltados por acontecimentos que nos roubam a paz, provocando em cada um de nós uma imobilização tal que ficamos ali, com medo. Com medo de todos e frequentemente é o próprio discurso político, que nos deveria restituir algum equilíbrio, que nos afunda num temor que se vai adensando. Joaquim Franco fala disso assim: O discurso político relaciona cada vez mais a insegurança com a imigração, a imigração com a religião, a religião com a segregação. Desmontar esta equação é o novo e prioritário espaço das religiões. O debate sobre a religião na sociedade europeia não se limita à reflexão cristã, nem se esgota com o Islão. Tem de ser inclusivo.” 
É nesse cruzamento do institucional com a vida de todos os dias do cidadão comum que a religião deverá estar, num diálogo que some credos em vez de os dividir em grupos que se vão marginalizando uns aos outros.
Claro que aqui os media também têm um papel importantíssimo. É por eles que passa grande parte da construção social da realidade. É por eles que cada um de nós vai recriando percepções sociais que nos atam uns aos outros numa espécie de cola do mundo que convém promover em permanência. Mas os media também podem ser lugares que fomentam discriminações. Joaquim Franco conhece bem este campo, mas, apesar de ser um dos de dentro, ou talvez por isso mesmo, vai apontando os constrangimentos que atingem o discurso mediático: “Hoje, na comunicação mediática, domina também a síntese sobre a análise, o padrão sobre o pormenor”.
A consciência de que os media se caracterizam por profundas limitações deveria merecer hoje mais debate, mais reflexão. E, por entre vários textos, lá vamos nós apreendendo novas dinâmicas de um universo que tanto nos domina, o do discurso mediático, declinado a partir do campo jornalístico.
Numa segunda parte, fala-se de Portugal, começando por interrogar Que país queremos ser? E escreve-se isto: “O país que queremos ser terá de ser também o que podemos e devemos ser com os povos e países que partilham o nosso espaço”.
Reconhece-se a assertividade do discurso, mas também se deve admitir a dificuldade em reverter tudo isto em possibilidades práticas de ação. Joaquim Franco conhece bem os limites da decisão política e está consciente dos rumos para onde nos leva esta pós-modernidade tão pendurada nas aparências e deveras entretida em acumular bens: “O País tende a ser o que podemos ter e é cada vez menos o que queremos e devemos ser, perdendo o azimute da justiça social.
Ser e ter: eis como na troca de uma letra se transporta todo um outro destino. Que hoje, em Portugal, se declina em sucessivas crises: São as lojas de comércio que fecham para férias e já não encontram ânimo (também alma) para reabrirem; São as pessoas que outrora faziam voluntariado social e agora precisam de ajuda.
É um país do avesso este em que habitamos à procura de um futuro que continua longe demais enquanto nos vamos distraindo com minudências que escondem o essencial. A palavra de novo a Joaquim Franco: “Faltará uma reforma que não se fixa em documentos estratégicos, que não se apresenta em power point, da qual não se faz propaganda, mas que pode mexer na atitude política e redefinir a própria economia. Faltará reformar relações e afinidades. Mais ser e menos ter.
Precisamos, pois, de uma outra revolução que tenha réplicas em vários campos. Também na religião, como bem se lembra nesta obra: “Há uma revolução que está ainda por fazer em Portugal: a forma de ver a religião e o fenómeno religioso. Quase 40 anos depois do 25 de abril, permanecem clichés, preconceitos e intransigências. Para muita gente, pouco ou nada mudou.
É tempo de todos refletirem profundamente nisto. A religião na primeira linha. Sendo um conteúdo especializado, a religião pode estar na posse da chave interpretativa para factos de natureza política, económica, social ou cultural. Desporto incluído. Aliás, é desse cruzamento que trata o terceiro ponto da obra. E aí recorda-se que o Papa Francisco compara a experiência da fé a um golo. É esse momento que faz um estádio rejubilar coletivamente de alegria que deveria ser a imagem perfeita do modo como vivemos a religião. Mas na maior parte das vezes nem um pálido reflexo disso conseguimos encontrar nas nossa igrejas católicas. “Basta ver a cara sisuda e infeliz de muita gente numa missa e de muito sacerdote no altar”, escreve Joaquim Franco. Católica convicta, posso também acrescentar: basta também seguir algumas homilias completamente des-sintonizadas dos textos sagrados e desligadas das nossas vidas. Lá está: que bem nos faria a tal reflexão de que falam as primeiras páginas deste livro.
Os três últimos pontos são direcionados para a religião, nomeadamente para a religião católica. Fala-se da Páscoa, do Papa Bento 16 e do Papa Francisco. Concentremo-nos, pois, nestas duas figuras marcantes da Igreja.
Primeiro Bento XVI. Joaquim Franco abre esta parte com um texto com o curioso título interrogativo Deus decapitou Ratzinger?. Escreve-se logo no início isto: “Ao optarem por Ratzinger, os cardeais reforçaram uma Igreja à imagem e semelhança da Europa, para resistir ao «relativismo» europeu.
Triunfava o cardeal da razão que sucedia a um papa emotivo, que fez do centro um lugar nómada, arrastando multidões para onde se deslocasse. Porque transportava consigo uma espécie de pensamento do ventre que magnetizava tudo e todos à sua volta. Fez, como se escreve nesta obra, um tsumani mediático.
Ratzinger era muito diferente. Esta obra recupera momentos bem significativos do seu pontificado. Como a sua primeira encíclica dedicada ao... Amor.
Nesta encíclica – escreve-se - Bento XVI não aborda diretamente a homossexualidade, o celibato, as uniões de facto, o divórcio, mas, passando ao lado, não deixa de sublinhar o pensamento doutrinário. Para a Igreja, o amor entre o homem e a mulher deve ser parte integrante de uma experiência mais profunda.
Sublinham-se outras partes importantes do texto, mas é nas impressões sobre esta iniciativa que se retém o essencial: É na opção e na forma, não no conteúdo, que a encíclica tem novidade. Quando o nome de Ratzinger foi anunciado na Praça de S. Pedro, para suceder a João Paulo II, provocando reações extremadas de ceticismo e euforia, quem suspeitava que a sua primeira encíclica seria dedicada ao Amor? Quem imaginava um homem apresentado como frio e racional a escrever sobre um tema tão delicadamente sensível?
Neste ponto sobre Bento XVI, abrem-se ainda janelas para a viagem do papa à Alemanha, a Espanha e ao continente africano onde, do ponto de vista mediático, nem tudo correu bem. E também isso é assinalado.
Esta parte termina com dois textos acerca da resignação do Papa Bento XVI. E Joaquim Franco destaca aquilo que é sempre uma tentação: a comparação dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Ora aqui está o vector a partir do qual tudo deve ser pensado: “Os tempos históricos são diferentes como diferentes são as circunstâncias de vida de cada um dos homens que assumiram a liderança espiritual da Igreja Católica. Foi tão corajoso o místico atleta polaco, como lúcido foi o cerebral professor alemão.”
E eis que chegamos à ultima parte do livro dedicada a Francisco, com este texto: Da perplexidade ao espanto.
Fala-se de um homem normal que encontra aí a sua singularidade. Parece tão próximo de nós que nos cega, desacomoda, interpelando-nos permanentemente para margens que importaria urgentemente puxar para o centro. É certo que a Igreja não é o Papa, mas... Aqui está uma adversativa que Joaquim Franco junta num título que nos abre para uma reflexão acerca da importância da cadeira de Pedro. “A popularidade do Papa é determinante para o catolicismo”, escreve-se. E este Papa tem características únicas, tão bem enunciadas neste livro: “Encaixa que nem uma luva na expectativa interna, da maioria dos crentes, mais ou menos praticantes.. Mas também encaixa nas expectativas externas, de um mundo em revisão de valores. É ver a forma como é acolhido o discurso social, político e religioso de Francisco
Estamos a chegar ao fim desta obra. Com Franqueza... este é um livro muito fácil de ler. Podemos ler de forma contínua, saltar páginas, parar a meio de um texto e retomar a seguir. Mas Com Franqueza... este não é um livro fácil de integrar na vida de todos os dias daqueles que vivem um quotidiano apressado, sem nunca ter aprendido a conjugar o verbo ser em todos os tempos verbais. Esses vão ficar baralhados com um parágrafo ou outro, mas talvez este fosse o tempo de olhar a vida por outros ângulos, recuperando o essencial com que cada dia nos surpreende sempre.

Com Franqueza... esta obra pode constituir-se como uma excelente âncora para agarrar esse novo desafio.

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