quinta-feira, 28 de maio de 2015

Humor, teologia e fragmentos: um caminho espiritual

Nesta sexta-feira, às 18h30, Daniel Oliveira apresentará, na Igreja do Convento de São Domingos, de Lisboa (R. João Freitas Branco, 12), o livro O Bom Humor de Deus e Outras Histórias (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores). Este é o terceiro volume da antologia de crónicas do Público que frei Bento Domingues escreve no Público todos os domingos, há mais de 23 anos. No sábado, entre as 16h30 e as 17h30, Bento Domingues estará no espaço da Porto Editora, na Feira do Livro de Lisboa, para autografar os três volumes de antologias. Tal como os anteriores volumes, referidos no final deste texto, O Bom Humor de Deus tem uma introdução, escrita pelos organizadores da antologia, que aqui a seguir se reproduz, como aperitivo à leitura.



Texto de António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias

A 4 de Outubro de 1998, frei Bento Domingues descrevia o seu labor como o de uma “teologia em fragmentos”. Nesse texto, intitulado “Nem fuga do mundo nem abandono ao mal do mundo”, identificava a necessidade de uma espiritualidade que não entenda o cristianismo como uma mística de “fuga do mundo” mas que não o reduza, tão pouco, a uma “mística de transformação do mundo”. E explicava: “É preciso recusar o império da lei do pêndulo. Prefiro o modelo do tear. Neste, o movimento entre extremos integra, num tecido, todos os fios da vida. Na apreciação do fenómeno religioso e das suas metamorfoses ainda continuamos a ser vítimas de uma visão pendular.”
Não há uma visão pendular na “teologia em fragmentos” de Bento Domingues. Nas suas diferentes intervenções cívicas, eclesiais e teológicas – e, de um modo especial, nas crónicas que, desde 3 de Maio de 1992, escreve, semana após semana, no Público – ele concretiza, de facto, o modelo do tear, que “integra todos os fios da vida”.
Aliás, já mais recentemente, frei Bento insistia naquele caminho. Na crónica de 14 de Setembro de 2014 (com o título “O desterro da teologia”), escrevia: “Não me sinto mal no caminho da ‘teologia do fragmento’, do provisório. Sou alérgico às declarações classificadas como definitivas, irreformáveis, de certo estilo de magistério eclesiástico. Em sentido contrário, não sou menos alérgico ao relativismo, ao vale tudo! Somos filhos do tempo, na escola de todas as épocas, lugares e culturas. O Verbo fez-se e continua a fazer-se ‘carne’, fragilidade humana no tecido dos múltiplos e contraditórios sinais dos tempos antigos e no mundo contemporâneo.”
Entre estas duas frases, apesar dos 16 anos de diferença, tece-se uma profunda relação e coerência na reflexão sobre a questão de Deus, pelo original caminho que propõe – e o catolicismo português só tem de estar grato ao diálogo do cristianismo com a cultura e à afirmação teológica que, na praça pública, frei Bento Domingues vem fazendo. (1) Ao mesmo tempo, essas duas frases condensam muito da intencionalidade da sua proposta espiritual – porque há uma proposta espiritual evidente nos textos de Bento Domingues.

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Desde logo, estamos perante uma espiritualidade que se entende como imersa no mundo e com ele identificada. O que significa que assume a condição humana de que faz parte. Nem poderia ser de outro modo, tendo em conta a matriz cristã de frei Bento. Na sua expressão mais autêntica, o cristianismo entende que Deus, através da pessoa e da vida de Jesus, assumiu também a plena humanidade. Como escrevia em 5 de Março de 2000: “A complexidade do ser humano, enquanto processo permanente de personalização, não pode ser confundida com a “alma separada” nem com o corpo biológico. É constituída por um nó de relações com o mundo, com os outros, com a transcendência. São relações simbólicas. Não podem, por isso, ser vividas só dentro ou só fora de portas da vida interior.”

Assim, a proposta de espiritualidade que se descobre nestas crónicas é a que se funda numa radical presença e identificação com o “mundo”. O simples facto de falar em fé e mundo como duas realidades distintas é absurdo, tendo em conta que qualquer crente é uma pessoa, é cidadão numa sociedade e vive uma experiência concreta de relação com outros; não pode, por isso, viver de modo esquizofrénico, apesar de muitas vezes uma certa linguagem cristã remeter para essa ideia, como se o “mundo” não resultasse também daquilo que os cristãos ou os crentes dele fazem.
Uma tal presença no mundo (entendido aqui como lugar da experiência humana), anseia, antes de mais, por compreendê-lo. Assume-o depois naquilo que ele traduz como presença ou ausência de Deus. E, nessa medida, pretende em seguida transformá-lo, de modo a que seja mais humano – logo, mais divino. Na crónica de Outubro de 1998, citada no início deste texto, frei Bento explicava: “O cristianismo não é fuga do mundo nem abandono ao mal do mundo. É uma escola de transfiguração permanente e paciente da vida interior e de participação na renovação da face da terra, segundo os ritmos imprevisíveis da história humana.”
Um tal caminho funda-se igualmente no absoluto abandono em Deus. Mas esse abandono não significa perder a liberdade. Bem pelo contrário, da espiritualidade, da mística, surge a mais plena afirmação de liberdade: “A imersão no mistério da transcendência absoluta de Deus – que faz surgir a nossa subjectividade como liberdade criadora – pode curar-nos do narcisismo e da superstição do espectáculo. Dos místicos surgirá a linguagem nova da religião. Dos profetas nos virá o sentido da responsabilidade ética sem moralismo” – escrevia frei Bento na crónica de 13 de Junho de 1999.
Esta é também uma espiritualidade que recusa de igual modo os dogmatismos que tudo esterilizam e os relativismos que tudo amalgamam, anulando a diferença e a diversidade. Antes, dá um lugar central à consciência – o santuário onde a pessoa se encontra a sós com Deus, como diz o belo texto do Concílio Vaticano II (2) – e, nela, às suas demandas, às suas buscas e questionamentos.
Nesse caminho, a pergunta, a interrogação, têm um lugar decisivo. A 13 de Janeiro de 2002, escrevia frei Bento, ligando precisamente o lugar da pergunta à atitude espiritual: “O espírito de interrogação não é o do interrogatório. Este talvez pertença aos juízes e inquisidores. Quem interroga a realidade, quem pergunta por Deus é mendigo da verdade do outro e precisa do seu auxílio para a encontrar. Da interrogação e na interrogação alimenta-se a oração, linguagem do mistério em que vivemos, nos movemos e existimos como homens.”
De uma espiritualidade assim entendida resulta uma atitude de fé religiosa como “a suprema rebeldia contra o destino” humano, como também frei Bento escrevia na crónica, já citada, de Setembro de 2014: “A consciência do limite é uma fonte de boas ou conflituosas relações com a natureza, com os outros e com o fundo misterioso de tudo, com o Transcendente.” É por isso que Bento Domingues se permite dizer que não tem nem “a fé de um ateu nem a resignação de um agnóstico”, respeitando ambas as atitudes.
Em todo este processo, frei Bento assume a reflexão teológica como o “esforço de pensar e questionar as representações da fé e da moral, para não se cair na idolatria das suas fórmulas e práticas”. E, ao mesmo tempo, para ajudar a criar “condições para que a palavra seja reconhecida a todos e não confiscada por nenhuma hierarquia”. E é desse processo reflexivo que surge uma proposta de uma mística “de olhos abertos”, como sugere o título de uma outra crónica (3). Como escreve no texto já referido de Setembro de 2014: “O cristianismo não se reduz a uma moral social ou política. Morrerá ao resignar-se a ser unicamente uma forma de validar religiosamente os princípios que a grande maioria aprova e pouco pratica. Desmarcar-se, sem desprezar, profetizar sem condenar, definir um território original sem se fechar ao intercâmbio democrático, manter-se próximo e respeitador das vítimas, muitas vezes trágicas, do sofrimento e da injustiça, abster-se de formular uma cosmovisão global ou uma explicação totalitária, assinalar a insatisfação dos desejos e do vazio no coração da vida pessoal e da história, não como factos negativos, mas como incitamentos à criação, podem ser tarefas da teologia.”
Poderia acrescentar-se que estas tarefas da reflexão teológica podem ser também etapas de um caminho espiritual. E, sem dúvida, essa é uma evidência que salta de cada um dos textos, de cada um dos fragmentos da teologia de frei Bento.
Nessa medida, esta nova antologia de crónicas – depois de Um Mundo Que Falta Fazer (textos sobre questões sociais e políticas) e A Insurreição de Jesus (a questão de Deus, a mensagem de Jesus e o diálogo inter-religioso) – surge como uma síntese notável do tear que Bento Domingues vai tecendo semana após semana.

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Na arrumação dos capítulos, tentámos que essa visão ficasse traduzida do modo mais eficaz possível. A espiritualidade que frei Bento propõe nas suas crónicas surge como “espaço interior do mundo”, definido na perspectiva antes enunciada: um mundo que deve ser compreendido, assumido, lido e humanamente transfigurado. Muitas vezes, esse mundo revela uma busca indefinida, mesmo com uma identidade imprecisa. Mas não vem daí nenhum mal: “Ao tentar fundar uma espiritualidade e uma sabedoria de pura transcendência humana, os seus traços revelam-se nitidamente cristãos. Não há mal nenhum em beber da água sem perguntar pela fonte.” (“A sabedoria dos modernos”, 7 de Junho de 1998).
Essa espiritualidade deve ainda permitir a busca plural, mas também alargando o horizonte da unidade; e deve aceitar o espaço da não-crença e fazer do diálogo entre crentes e não-crentes (mesmo sobre os pontos em que não há consenso) uma condição para uma humanidade mais digna.
No que à matriz cristã diz respeito, a espiritualidade que frei Bento propõe bebe de várias e inesgotáveis escolas: Tomás de Aquino (para um tempo mais recuado) e Taizé (para a contemporaneidade) são duas referências fundamentais. Taizé, a pequena comunidade de monges católicos e protestantes situada na Borgonha francesa, é procurada por milhares de jovens, todos os anos. E nessa busca, frei Bento intui que o que o que os move é a descoberta da interioridade: “É o encontro com as raízes. Os tempos de partilha em pequenos grupos, introduzidos por um membro da comunidade, não afastam o olhar da complexidade da vida. Convertem-no. Os tempos de oração são para ir até ao fundo misterioso da alma”, escrevia, em 8 de Outubro de 2000. E, a 2 de Janeiro de 2005, logo após a realização, em Lisboa, do encontro europeu dinamizado por Taizé, acrescentava: “Muitos fazem a descoberta de que a Igreja não é apenas a instituição, uma organização, mas principalmente, uma vida partilhada. Ao fazer-se a experiência desta vida com os outros, compreende-se que a existência quotidiana é o próprio lugar onde o amor de Cristo se poderá revelar e onde um futuro de paz para a família humana poderá ser preparado.”
Nenhuma dessas inesgotáveis escolas espirituais esgotam, no entanto, o mosaico plural em que aparecem muitos outros rostos que, na sua diversidade, manifestam a sua adesão ao mesmo centro: a pessoa de Jesus, a sua vida e mensagem (cfr. a crónica “Educação cristã: servir a Deus e ao dinheiro?”, de 27 de Setembro de 1998). Com esses fundamentos, a espiritualidade que aqui é traduzida preocupa-se também em fazer uma pergunta recorrente: “Quem é o meu próximo?”
Filha do tempo, para retomar a expressão já referida de Setembro de 2014, esta espiritualidade assume a fragilidade humana, em cada um dos tempos que a pessoa é chamada a viver. E cada tempo é o tempo de transfigurar a vida, tornando possível a esperança e abrindo caminho à paz e à justiça, seja em situações diversas, seja em diferentes momentos do calendário. Natal, Páscoa, Pentecostes ou celebração dos defuntos são momentos rituais que comportam, eles próprios, apelos a essa transfiguração. A propósito do Natal, a crónica de 19 de Dezembro de 2004 dizia: “Não é só na época natalícia que as crianças precisam de comida e carinho. Se não estivermos dispostos a lutar, ao longo de todo o ano, por uma nova consciência perante o mundo da pobreza, da injustiça e da guerra, inventaremos más ficções para ocultar a dimensão subversiva e política inscrita nas histórias cristãs do Natal, revelações da humanidade de Deus e da nossa desumanidade.”

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Os dois últimos capítulos remetem para outros temas igualmente fundamentais na reflexão de frei Bento: a beleza, que no seu sentido original, em grego, é sinónimo de bondade (e só ela poderá salvar o mundo); a Bíblia como “palavra de fogo e de sabedoria” e “inesgotável floresta simbólica” (27 de Fevereiro de 2000); e o humor como infinita manifestação de Deus, capaz mesmo de fazer desatar o riso “ao sisudo Abraão e a Sara amargurada”, pois “quando o presente é seco e não há futuro, só o riso é fecundo” (2 de Fevereiro de 1997).
O humor, que inspira o título desta antologia, é uma dimensão incontornável no pensamento e na vida de frei Bento – ambas as dimensões estão ontologicamente ligadas. Na apresentação do volume Um Mundo Que Falta Fazer, recordámos uma afirmação de frei Bento numa entrevista em 1995, a propósito da publicação da colectânea das crónicas de 1992-93: “Autocrítica é flagelação, não acho que tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos porque o que me apetecia, muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de humor. Uma vez, na revista espanhola Vida Nueva, havia um cartoon de um Menino Jesus nas escadas de uma igreja a rir-se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo, sempre vivi assim. Vi-me sempre assim.” E acrescentava: “Tudo devia ser vivido com uma grande dose de humor.”
Sabemos que, no cristianismo, essa foi uma ideia ausente durante muito tempo. Em O Nome da Rosa, Umberto Eco dava conta do carácter pecaminoso que o riso adquirira na cristandade. Os textos bíblicos, lidos muitas vezes em chave sisuda e pesada, estão afinal também cheios de momentos de humor – como o citado episódio em que Sara ri por causa da promessa de Deus, de que terá um filho...
Era contra essa sisudez que, a 6 de Setembro de 1998, escrevia Bento Domingues: “Num mundo onde se multiplicam os ‘teólogos armados’ de vários fundamentalismos, as descargas de humor religioso, oriundas de todos os quadrantes, são essenciais. Soltam a alegria de amar. Ao abalar falsos absolutos, deixam Deus e os homens em liberdade.”
Frei Bento descobre o lugar do riso de Deus na própria identificação entre o quotidiano da experiência humana, o âmago da vida e a sua própria faina de uma teologia em fragmentos (que não fragmentada). Escrevia ele em 11 de Maio de 2003: “A teologia não vive momentos eufóricos, mas também não é uma terra desolada como os ignorantes imaginam. Está a aprender a ser mais humilde, atenta às surpresas da vida de todos os mundos da experiência humana. Recomeça a escutar as gargalhadas de Deus diante das suas asneiras enfatuadas.

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Na arrumação desta nova antologia de crónicas, seguimos os critérios já explicados nos outros dois volumes (4): mesmo sabendo que cada texto de frei Bento abre sempre muitos caminhos possíveis, escolhemos para este volume aqueles que nos pareceram mais centrados na elucidação de uma proposta de espiritualidade.
Procurámos, depois, referências comuns dentro desse conjunto, de modo a obter uma unidade temática, que permitisse uma organização por capítulos; dentro de cada capítulo, seguimos a ordem cronológica. Neste volume, no entanto, abrimos uma única excepção, relativa a este último aspecto: no capítulo VI, em que as crónicas se referem aos diferentes tempos da liturgia católica (Natal, Páscoa, Pentecostes, etc.), preferimos agrupar os textos seguindo essa ordem temática.

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Na crónica de 10 de Outubro de 2004, a propósito do que designava como uma “pastoral da incredulidade”, frei Bento escrevia: “A ressurreição de Cristo significa, positivamente, que Jesus, ao morrer, não entrou no nada, no absoluto vazio. Foi acolhido pela Realidade mais real, mas irrepresentável, a que damos o nome Deus. O próprio Jesus, segundo o Evangelho de S. Lucas, disse aos discípulos, orgulhosos dos seus êxitos prodigiosos numa campanha de evangelização: ‘Alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão escritos no Céu’. (…) Espero, contra toda a evidência, que Deus seja a alegria infinita, o verdadeiro paraíso, o verdadeiro céu daqueles que nos deixaram em lágrimas.”
A proposta do caminho espiritual em fragmentos que é sugerido nestes textos é, contra todas as evidências, a de um percurso que levará cada um ao encontro dessa alegria infinita. A que uns chamarão plenitude. Ou humanidade. E que outros, como frei Bento, dão o nome de Deus.

5 de Abril de 2015
Domingo de Páscoa

(1) Foi isso mesmo, aliás, que largas centenas de pessoas quiseram afirmar, na sessão que, em Setembro de 2014, se realizou na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Pela presença ou intervindo publicamente, cerca de setecentas de pessoas manifestaram essa convicção, reflectindo sobre o pensamento de Bento Domingues, a partir dos dois anteriores livro de crónicas publicados: Um Mundo que Falta Fazer e A Insurreição de Jesus.
(2) Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no mundo actual, nº 16
(3) Ver “Trindade, mística de olhos abertos e mºistica de olhos fechados”, 7 de Junho de 2009, publicada em A Insurreição de Jesus, pág. 59.

(3) Um Mundo Que Falta Fazer, com crónicas sobre questões sociais e políticas (democracia, pobreza, paz, não-violência, laicidade, Portugal, Europa, América latina, Médio Oriente e África); e A Insurreição de Jesus, sobre a questão de Deus, o Jesus histórico, a sua vida e mensagem, a essência do cristianismo e o pluralismo e diálogo inter-religioso; ambos editado em 2014 pelo Círculo de Leitores/Temas e Debates.

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