Nesta
sexta-feira, às 18h30, Daniel Oliveira apresentará, na Igreja do Convento de São Domingos, de Lisboa (R. João Freitas Branco, 12), o livro O Bom Humor de Deus e Outras Histórias (ed. Temas e Debates/Círculo
de Leitores). Este é o terceiro volume da antologia de crónicas do Público que frei
Bento Domingues escreve no Público todos os domingos, há mais de 23 anos. No sábado, entre as 16h30 e as 17h30, Bento
Domingues estará no espaço da Porto Editora, na Feira do Livro de Lisboa, para
autografar os três volumes de antologias. Tal como os anteriores volumes, referidos
no final deste texto, O Bom Humor de Deus
tem uma introdução, escrita pelos organizadores da antologia, que aqui a
seguir se reproduz, como aperitivo à leitura.
Texto de António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias
A 4 de
Outubro de 1998, frei Bento Domingues descrevia o seu labor como o de uma
“teologia em fragmentos”. Nesse texto, intitulado “Nem fuga do mundo nem
abandono ao mal do mundo”, identificava a necessidade de uma espiritualidade que
não entenda o cristianismo como uma mística de “fuga do mundo” mas que não o
reduza, tão pouco, a uma “mística de transformação do mundo”. E explicava: “É
preciso recusar o império da lei do pêndulo. Prefiro o modelo do tear. Neste, o
movimento entre extremos integra, num tecido, todos os fios da vida. Na
apreciação do fenómeno religioso e das suas metamorfoses ainda continuamos a ser
vítimas de uma visão pendular.”
Não há
uma visão pendular na “teologia em fragmentos” de Bento Domingues. Nas suas
diferentes intervenções cívicas, eclesiais e teológicas – e, de um modo
especial, nas crónicas que, desde 3 de Maio de 1992, escreve, semana após
semana, no Público – ele concretiza,
de facto, o modelo do tear, que “integra todos os fios da vida”.
Aliás,
já mais recentemente, frei Bento insistia naquele caminho. Na crónica de 14 de
Setembro de 2014 (com o título “O desterro da teologia”), escrevia: “Não me sinto mal no
caminho da ‘teologia do fragmento’, do provisório. Sou alérgico às declarações
classificadas como definitivas, irreformáveis, de certo estilo de magistério
eclesiástico. Em sentido contrário, não sou menos alérgico ao relativismo, ao
vale tudo! Somos filhos do tempo, na escola de todas as épocas, lugares e
culturas. O Verbo fez-se e continua a fazer-se ‘carne’, fragilidade humana no
tecido dos múltiplos e contraditórios sinais dos tempos antigos e no mundo
contemporâneo.”
Entre estas duas frases,
apesar dos 16 anos de diferença, tece-se uma profunda relação e coerência na
reflexão sobre a questão de Deus, pelo original caminho que propõe – e o
catolicismo português só tem de estar grato ao diálogo do cristianismo com a
cultura e à afirmação teológica que, na praça pública, frei Bento Domingues vem
fazendo. (1) Ao mesmo tempo, essas duas frases condensam muito da
intencionalidade da sua proposta espiritual – porque há uma proposta espiritual
evidente nos textos de Bento Domingues.
* * *
Desde logo, estamos
perante uma espiritualidade que se entende como imersa no mundo e com ele
identificada. O que significa que assume a condição humana de que faz parte.
Nem poderia ser de outro modo, tendo em conta a matriz cristã de frei Bento. Na
sua expressão mais autêntica, o cristianismo entende que Deus, através da
pessoa e da vida de Jesus, assumiu também a plena humanidade. Como escrevia em
5 de Março de 2000: “A complexidade do ser humano, enquanto processo permanente
de personalização, não pode ser confundida com a “alma separada” nem com o
corpo biológico. É constituída por um nó de relações com o mundo, com os
outros, com a transcendência. São relações simbólicas. Não podem, por isso, ser
vividas só dentro ou só fora de portas da vida interior.”
Assim, a proposta de
espiritualidade que se descobre nestas crónicas é a que se funda numa radical presença
e identificação com o “mundo”. O simples facto de falar em fé e mundo como duas
realidades distintas é absurdo, tendo em conta que qualquer crente é uma
pessoa, é cidadão numa sociedade e vive uma experiência concreta de relação com
outros; não pode, por isso, viver de modo esquizofrénico, apesar de muitas
vezes uma certa linguagem cristã remeter para essa ideia, como se o “mundo” não
resultasse também daquilo que os cristãos ou os crentes dele fazem.
Uma tal presença no
mundo (entendido aqui como lugar da experiência humana), anseia, antes de mais,
por compreendê-lo. Assume-o depois naquilo que ele traduz como presença ou
ausência de Deus. E, nessa medida, pretende em seguida transformá-lo, de modo a
que seja mais humano – logo, mais divino. Na crónica de Outubro de 1998, citada
no início deste texto, frei Bento explicava: “O cristianismo não é fuga
do mundo nem abandono ao mal do mundo. É uma escola de transfiguração
permanente e paciente da vida interior e de participação na renovação da face
da terra, segundo os ritmos imprevisíveis da história humana.”
Um tal
caminho funda-se igualmente no absoluto abandono em Deus. Mas esse abandono não
significa perder a liberdade. Bem pelo contrário, da espiritualidade, da
mística, surge a mais plena afirmação de liberdade: “A imersão no mistério da transcendência
absoluta de Deus – que faz surgir a nossa subjectividade como liberdade
criadora – pode curar-nos do narcisismo e da superstição do espectáculo. Dos
místicos surgirá a linguagem nova da religião. Dos profetas nos virá o sentido
da responsabilidade ética sem moralismo” – escrevia frei Bento na crónica de 13
de Junho de 1999.
Esta é também uma
espiritualidade que recusa de igual modo os dogmatismos que tudo esterilizam e
os relativismos que tudo amalgamam, anulando a diferença e a diversidade. Antes,
dá um lugar central à consciência – o santuário onde a pessoa se encontra a sós
com Deus, como diz o belo texto do Concílio Vaticano II (2) – e, nela, às suas
demandas, às suas buscas e questionamentos.
Nesse caminho, a
pergunta, a interrogação, têm um lugar decisivo. A 13 de Janeiro de 2002,
escrevia frei Bento, ligando precisamente o lugar da pergunta à atitude
espiritual: “O espírito
de interrogação não é o do interrogatório. Este talvez pertença aos juízes e
inquisidores. Quem interroga a realidade, quem pergunta por Deus é mendigo da
verdade do outro e precisa do seu auxílio para a encontrar. Da interrogação e
na interrogação alimenta-se a oração, linguagem do mistério em que vivemos, nos
movemos e existimos como homens.”
De uma espiritualidade
assim entendida resulta uma atitude de fé religiosa como “a suprema rebeldia
contra o destino” humano, como também frei Bento escrevia na crónica, já
citada, de Setembro de 2014: “A consciência do limite é uma fonte de boas ou
conflituosas relações com a natureza, com os outros e com o fundo misterioso de
tudo, com o Transcendente.” É por isso que Bento Domingues se permite dizer que
não tem nem “a fé de um ateu nem a resignação de um agnóstico”, respeitando ambas
as atitudes.
Em todo este processo, frei
Bento assume a reflexão teológica como o “esforço de pensar e questionar as
representações da fé e da moral, para não se cair na idolatria das suas
fórmulas e práticas”. E, ao mesmo tempo, para ajudar a criar “condições para
que a palavra seja reconhecida a todos e não confiscada por nenhuma
hierarquia”. E é desse processo reflexivo que surge uma proposta de uma mística
“de olhos abertos”, como sugere o título de uma outra crónica (3). Como escreve
no texto já referido de Setembro de 2014: “O cristianismo não se reduz a uma
moral social ou política. Morrerá ao resignar-se a ser unicamente uma forma de
validar religiosamente os princípios que a grande maioria aprova e pouco
pratica. Desmarcar-se, sem desprezar, profetizar sem condenar, definir um
território original sem se fechar ao intercâmbio democrático, manter-se próximo
e respeitador das vítimas, muitas vezes trágicas, do sofrimento e da injustiça,
abster-se de formular uma cosmovisão global ou uma explicação totalitária,
assinalar a insatisfação dos desejos e do vazio no coração da vida pessoal e da
história, não como factos negativos, mas como incitamentos à criação, podem ser
tarefas da teologia.”
Poderia acrescentar-se que
estas tarefas da reflexão teológica podem ser também etapas de um caminho
espiritual. E, sem dúvida, essa é uma evidência que salta de cada um dos
textos, de cada um dos fragmentos da teologia de frei Bento.
Nessa medida, esta nova
antologia de crónicas – depois de Um
Mundo Que Falta Fazer (textos sobre questões sociais e políticas) e A Insurreição de Jesus (a questão de
Deus, a mensagem de Jesus e o diálogo inter-religioso) – surge como uma síntese
notável do tear que Bento Domingues vai tecendo semana após semana.
* * *
Na arrumação dos
capítulos, tentámos que essa visão ficasse traduzida do modo mais eficaz
possível. A espiritualidade que frei Bento propõe nas suas crónicas surge como
“espaço interior do mundo”, definido na perspectiva antes enunciada: um mundo
que deve ser compreendido, assumido, lido e humanamente transfigurado. Muitas
vezes, esse mundo revela uma busca indefinida, mesmo com uma identidade
imprecisa. Mas não vem daí nenhum mal: “Ao tentar fundar uma espiritualidade e
uma sabedoria de pura transcendência humana, os seus traços revelam-se
nitidamente cristãos. Não há mal nenhum em beber da água sem perguntar pela
fonte.” (“A
sabedoria dos modernos”, 7 de Junho
de 1998).
Essa espiritualidade deve
ainda permitir a busca plural, mas também alargando o horizonte da unidade; e deve
aceitar o espaço da não-crença e fazer do diálogo entre crentes e não-crentes
(mesmo sobre os pontos em que não há consenso) uma condição para uma humanidade
mais digna.
No que à matriz cristã
diz respeito, a espiritualidade que frei Bento propõe bebe de várias e
inesgotáveis escolas: Tomás de Aquino (para um tempo mais recuado) e Taizé
(para a contemporaneidade) são duas referências fundamentais. Taizé, a pequena
comunidade de monges católicos e protestantes situada na Borgonha francesa, é
procurada por milhares de jovens, todos os anos. E nessa busca, frei Bento
intui que o que o que os move é a descoberta da interioridade: “É o
encontro com as raízes. Os tempos de partilha em pequenos grupos, introduzidos
por um membro da comunidade, não afastam o olhar da complexidade da vida.
Convertem-no. Os tempos de oração são para ir até ao fundo misterioso da alma”,
escrevia, em 8 de Outubro de 2000. E, a 2 de Janeiro de 2005, logo após a realização,
em Lisboa, do encontro europeu dinamizado por Taizé, acrescentava: “Muitos fazem a descoberta de que a Igreja não é
apenas a instituição, uma organização, mas principalmente, uma vida partilhada.
Ao fazer-se a experiência desta vida com os outros, compreende-se que a
existência quotidiana é o próprio lugar onde o amor de Cristo se poderá revelar
e onde um futuro de paz para a família humana poderá ser preparado.”
Nenhuma dessas inesgotáveis escolas espirituais
esgotam, no
entanto, o mosaico plural em que aparecem muitos outros rostos que, na sua
diversidade, manifestam a sua adesão ao mesmo centro: a pessoa de Jesus, a sua
vida e mensagem (cfr. a crónica “Educação cristã: servir a Deus e ao
dinheiro?”, de 27 de Setembro de 1998). Com esses fundamentos, a
espiritualidade que aqui é traduzida preocupa-se também em fazer uma pergunta recorrente:
“Quem é o meu próximo?”
Filha do tempo, para
retomar a expressão já referida de Setembro de 2014, esta espiritualidade
assume a fragilidade humana, em cada um dos tempos que a pessoa é chamada a
viver. E cada tempo é o tempo de transfigurar a vida, tornando possível a
esperança e abrindo caminho à paz e à justiça, seja em situações diversas, seja
em diferentes momentos do calendário. Natal, Páscoa, Pentecostes ou celebração
dos defuntos são momentos rituais que comportam, eles próprios, apelos a essa
transfiguração. A propósito do Natal, a crónica de 19 de Dezembro de 2004
dizia: “Não é só na época natalícia que as
crianças precisam de comida e carinho. Se não estivermos dispostos a lutar, ao
longo de todo o ano, por uma nova consciência perante o mundo da pobreza, da
injustiça e da guerra, inventaremos más ficções para ocultar a dimensão
subversiva e política inscrita nas histórias cristãs do Natal, revelações da
humanidade de Deus e da nossa desumanidade.”
* * *
Os
dois últimos capítulos remetem para outros temas igualmente fundamentais na
reflexão de frei Bento: a beleza, que no seu sentido original, em grego, é
sinónimo de bondade (e só ela poderá salvar o mundo); a Bíblia como “palavra de fogo e de sabedoria” e “inesgotável
floresta simbólica” (27 de Fevereiro de 2000); e o humor como infinita manifestação
de Deus, capaz mesmo de fazer desatar o riso “ao sisudo Abraão e a Sara
amargurada”, pois “quando o presente é seco e não há futuro, só o riso é
fecundo” (2 de Fevereiro de 1997).
O
humor, que inspira o título desta antologia, é uma dimensão incontornável no
pensamento e na vida de frei Bento – ambas as dimensões estão ontologicamente
ligadas. Na apresentação do volume Um
Mundo Que Falta Fazer, recordámos uma afirmação de frei Bento numa
entrevista em 1995, a propósito da publicação da colectânea das crónicas de 1992-93:
“Autocrítica é flagelação, não
acho que tenha piada. Eu exerço uma certa contenção nos textos porque o que me
apetecia, muitas vezes, era rir de tudo e escrever textos de humor. Uma vez, na
revista espanhola Vida Nueva, havia
um cartoon de um Menino Jesus nas
escadas de uma igreja a rir-se do que encontrou lá dentro. Em relação a tudo,
sempre vivi assim. Vi-me sempre assim.” E acrescentava: “Tudo devia ser vivido
com uma grande dose de humor.”
Sabemos que, no cristianismo, essa foi uma
ideia ausente durante muito tempo. Em O
Nome da Rosa, Umberto Eco dava conta do carácter pecaminoso que o riso
adquirira na cristandade. Os textos bíblicos, lidos muitas vezes em chave
sisuda e pesada, estão afinal também cheios de momentos de humor – como o
citado episódio em que Sara ri por causa da promessa de Deus, de que terá um
filho...
Era
contra essa sisudez que, a 6 de Setembro de 1998, escrevia Bento Domingues: “Num
mundo onde se multiplicam os ‘teólogos armados’ de vários fundamentalismos, as
descargas de humor religioso, oriundas de todos os quadrantes, são essenciais.
Soltam a alegria de amar. Ao abalar falsos absolutos, deixam Deus e os homens
em liberdade.”
Frei
Bento descobre o lugar do riso de Deus na própria identificação entre o
quotidiano da experiência humana, o âmago da vida e a sua própria faina de uma
teologia em fragmentos (que não fragmentada). Escrevia ele em 11 de Maio de
2003: “A teologia não vive
momentos eufóricos, mas também não é uma terra desolada como os ignorantes
imaginam. Está a aprender a ser mais humilde, atenta às surpresas da vida de
todos os mundos da experiência humana. Recomeça a escutar as gargalhadas de
Deus diante das suas asneiras enfatuadas.”
* * *
Na
arrumação desta nova antologia de crónicas, seguimos os critérios já explicados
nos outros dois volumes (4): mesmo sabendo que cada texto de frei Bento abre
sempre muitos caminhos possíveis, escolhemos para este volume aqueles que nos
pareceram mais centrados na elucidação de uma proposta de espiritualidade.
Procurámos,
depois, referências comuns dentro desse conjunto, de modo a obter uma unidade
temática, que permitisse uma organização por capítulos; dentro de cada
capítulo, seguimos a ordem cronológica. Neste volume, no entanto, abrimos uma
única excepção, relativa a este último aspecto: no capítulo VI, em que as
crónicas se referem aos diferentes tempos da liturgia católica (Natal, Páscoa,
Pentecostes, etc.), preferimos agrupar os textos seguindo essa ordem temática.
* * *
Na
crónica de 10 de Outubro de 2004, a propósito do que designava como uma
“pastoral da incredulidade”, frei Bento escrevia: “A ressurreição de Cristo
significa, positivamente, que Jesus, ao morrer, não entrou no nada, no absoluto
vazio. Foi acolhido pela Realidade mais real, mas irrepresentável, a que damos
o nome Deus. O próprio Jesus, segundo o Evangelho de S. Lucas, disse aos
discípulos, orgulhosos dos seus êxitos prodigiosos numa campanha de
evangelização: ‘Alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão escritos no
Céu’. (…) Espero, contra toda a evidência, que Deus seja a alegria infinita, o
verdadeiro paraíso, o verdadeiro céu daqueles que nos deixaram em lágrimas.”
A
proposta do caminho espiritual em fragmentos que é sugerido nestes textos é, contra
todas as evidências, a de um percurso que levará cada um ao encontro dessa
alegria infinita. A que uns chamarão plenitude. Ou humanidade. E que outros,
como frei Bento, dão o nome de Deus.
5 de
Abril de 2015
Domingo
de Páscoa
(1) Foi isso mesmo,
aliás, que largas centenas de pessoas quiseram afirmar, na sessão que, em
Setembro de 2014, se realizou na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Pela presença
ou intervindo publicamente, cerca de setecentas de pessoas manifestaram essa
convicção, reflectindo sobre o pensamento de Bento Domingues, a partir dos dois
anteriores livro de crónicas publicados: Um
Mundo que Falta Fazer e A Insurreição
de Jesus.
(2)
Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium
et Spes, sobre a Igreja no mundo actual, nº 16
(3)
Ver “Trindade, mística de olhos abertos e mºistica de olhos fechados”, 7 de
Junho de 2009, publicada em A Insurreição
de Jesus, pág. 59.
(3) Um Mundo Que Falta Fazer, com crónicas
sobre questões sociais e políticas (democracia, pobreza, paz, não-violência,
laicidade, Portugal, Europa, América latina, Médio Oriente e África); e A Insurreição de Jesus, sobre a questão
de Deus, o Jesus histórico, a sua vida e mensagem, a essência do cristianismo e
o pluralismo e diálogo inter-religioso; ambos editado em 2014 pelo Círculo de
Leitores/Temas e Debates.
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