Um guia pelos comentários à encíclica do Papa “sobre o cuidado da casa comum”; pensadores e investigadores, cientistas e políticos, crentes e ambientalistas coincidem na importância do texto papal; este domingo, na Praça de São Pedro, organizações e ambientalistas e ecologistas vão agradecer ao Papa a publicação de Laudato Si'.
(ilustração reproduzida daqui)
A encíclica Laudato Si’ é “o primeiro acto de um apelo para uma nova
civilização”, considera o sociólogo Edgar Morin, numa entrevista em que comenta
o novo documento do Papa Francisco.
Publicada na semana passada, a
encíclica, já considerada histórica por muitos comentadores e pensadores de
relevo, tem provocado muitos comentários, incluindo de quem critica o Papa por
falar de alterações climáticas e considerar que ele não deve falar sobre
política ou economia. Tal é o caso do candidato republicano às presidenciais dos
Estados Unidos do próximo ano, Jeb Bush.
Também o articulista espanhol Miguel
Angel Belloso é muito crítico com Francisco: apesar de se apresentar como
católico, ele manifesta, no DN, uma profunda ignorância sobre o que dizem a
teologia e a doutrina social católica desde os primeiros séculos do
cristianismo, ao escrever, por exemplo, que “Francisco chega a ser ofensivo ao
assegurar que a propriedade privada não pode estar acima do bem comum”.
Em geral, no entanto, a encíclica Louvado Sejas – Sobre o Cuidado da CasaComum (versão em pdf também disponível nesta ligação) foi bem acolhida. A tal ponto que
levou já um conjunto de organizações de diversos países a propor uma petição internacional de apoio ao apelo do Papa por uma ecologia integral.
A petição é dirigida aos chefes de
Estado e de Governo dos países que participarão na Conferência Internacional
sobre a Mudança do Clima, que decorre na primeira quinzena de Dezembro, em
Paris.
“Em nome dos nossos filhos e de
todas as crianças”, em nome “dos pobres e do próprio planeta” e “em nome de
toda a família humana”, os signatários pedem aos líderes políticos “que acolham
o apelo lançado pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, sobre o ‘cuidado da casa comum’, na qual ele reconhece
que a humanidade ainda está em tempo de evitar uma catástrofe ecológica e pede
compromissos concretos por uma ‘autêntica ecologia humana’”.
O texto de Francisco motivou
também, e sobretudo, interessantes e importantes reflexões a propósito do seu
conteúdo e das propostas que faz. O sociólogo agnóstico Edgar Morin considerou,
em entrevista ao La Croix, que a Laudato Si’ “é, talvez, o primeiro acto de um apelo para uma nova
civilização”. O pensador francês considera a encíclica “providencial”, porque “vivemos
uma época de deserto do pensamento,
um pensamento fragmentado em
que os partidos que se dizem ecologistas não têm nenhuma real visão da
magnitude e da complexidade do problema, em que perdem de vista o interesse
daquilo que o Papa Francisco, numa maravilhosa fórmula retomada
de Gorbatchev, chama de “casa comum”. Na entrevista (aqui em português), Morin acrescenta que considera o
texto muito “bem estruturado”.
O “undécimo mandamento”
Prior da comunidade monástica de
Bosé, teólogo e cronista reconhecido em Itália, Enzo Bianchi (autor de Para Uma Ética Partilhada, ed. Pedra Angular) fala da
encíclica como o “undécimo mandamento”. “A mensagem de Francisco é
urgente e clara: para nos salvar, nós, humanos, devemos nos salvar junto com a
terra. Há anos eu repito a mim mesmo um mandamento que eu coloco ao lado dos
mandamentos bíblicos: ‘Ama a terra como a ti mesmo’”, escreve ele, num artigo publicado
no jornal La Repubblica, aqui traduzido para português.
Outro teólogo, o jesuíta Daniel
Izuzquiza, propõe sete chaves de leitura para o que caracteriza como uma
“encíclica urgente”. Essas chaves – científica, ético-filosófica,
política, social, cultural, teológica, espiritual – ajudam a entender o
conteúdo do texto e apelam ao compromisso pessoal, já que o Papa se dirige a
cada habitante do planeta, diz Izuzquiza.
Teologicamente, Marco Roncalli –
sobrinho-neto e biógrafo do Papa João XXIII – descobre ainda na encíclica
referências ao pensamento de Teilhard de Chardin, o jesuíta que trabalhou a
questão da evolução, enquanto cientista e chegou a ser alvo de um processo do
então Santo Ofício. Num artigo no Avvenire
de dia 20 (traduzido aqui em português), ele cita o final do parágrafo 83
do texto, onde se lê: “A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de
Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação
universal. (…) O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas
avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus,
em uma plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina.”
O contributo de Teilhard de
Chardin é expressamente referido numa nota de rodapé e, neste caso, as notas de
rodapé – e não só – revelam também algumas coisas importantes do documento do
Papa: “Além de quebrar a tradição ao citar textos de conferências [episcopais]
nacionais, o Papa Francisco lança mão de uma gama de pensadores
católicos”, escreve Kevin Ahern, eticista teológico, em artigo publicado pelo
sítio America e aqui em português.
Mas há mais: “Além da utilização de
uma linguagem inclusiva de género – a primeira nas encíclicas sociais católicas
–, um dos aspectos mais surpreendentes de Laudato
Si’ são as notas de rodapé. Para ser honesto, elas foram uma das primeiras
coisas que olhei. Francisco se afasta da tradição das encíclicas
sociais católicas ao citar várias fontes não católicas oficiais, tais como
documentos da ONU, as conferências episcopais nacionais e, de modo mais
surpreendente, um místico sufi!”
“Uma atitude muito científica”, um
texto “desafiador e profético”
O lugar da ciência é outro aspecto
importante. Na apresentação do documento, no Vaticano, esteve presente Hans
Schellnhuber, presidente do Instituto Potsdam de Investigação sobre os Impactos
Climáticos, na Alemanha, um dos principais investigadores da área e “pai da
ideia de que se deve evitar um aumento da temperatura média global acima de 2
graus centígrados até ao final deste século - como se recorda aqui. Esse foi um indicador da
importância dada a indicadores científicos. Mas também o físico Roberto
Cingolini, director científico do Instituto Italiano de Tecnologia, afirmou, em
entrevista ao Avvenire, aqui referida em português, ter identificado no texto “uma atitude
muito científica”.
O documento não se fica, no
entanto, pela abordagem científica e pelo diagnóstico: a intenção do Papa é a
proposta de um novo estilo de vida e, por isso, ele chega mesmo a dar
sugestões concretas sobre o papel de cada pessoa para a salvação do planeta.
No National Catholic Reporter, Tony Magliano escreve que a encíclica
franciscana é “corajosa, profética, desafiadora, holística, maravilhosa”. E
acrescenta: “Citando o seu santo patrono,
Francisco de Assis, que também é o santo padroeiro da ecologia, o Papa
Francisco começa a sua carta papal com um belo verso do Cântico das Criaturas: Louvado Sejas, meu Senhor, pela nossa irmã,
a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores
coloridas e verduras.”
Um documento do Conselho
Missionário Indígena (CMI) brasileiro, divulgado um dia depois da encíclica,
parece dar razão ao texto do Papa. No nº 146 da Laudato Si’, , escreve ele que “é indispensável prestar uma atenção
especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais”. Ora, o
relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil” destaca os casos de
assassinatos, suicídios, mortalidade infantil, invasões de terras e exploração
de recursos de que aqueles povos são vítimas. Para concluir que “a situação
entre os povos indígenas é muito complicada”, como disse o bispo Erwin
Kräutler, de Xingu.
A conversão ecológica como contrapoder
Fora do universo crente, e para lá
da já citada entrevista de Edgar Morin, há igualmente outros textos que devem
ser referidos. No novo suplemento dominical Ideas,
do El País, Lluís Bassets referia-se
ao Papa como um contrapoder, com a sua proposta de conversão ecológica.
Acrescentando que a encíclica teve
“efeitos políticos imediatos” e que a repercussão do pensamento do Papa
transcende o universo católico, escrevia: “a Laudato Si’ (...) pretende alcançar a humanidade inteira,
independentemente das religiões ou crenças. É além disso um apelo, em muitos
aspectos dramático, à acção urgente diante das catástrofes meio-ambientais que
se avizinham (...), dirigido sobretudo aos países mais ricos e com maiores
responsabilidades contaminadoras e às organizações internacionais, mas também
aos indivíduos, cada um no seu nível, para que actuem respectivamente com
políticas que limitem os desastres e adoptem formas de vida mais ecológicas e
menos consumistas.”
No texto
(aqui em castelhano), Bassets acrescenta que a
repercussão da encíclica “demonstra o prestígio e a autoridade crescente do
Papa Francisco”, do qual só se afastaram as vozes “cada vez mais isoladas dos
que negam a evidência científica da mudança climática”.
No âmbito institucional,
registaram-se vários elogios: o secretário-geral da Organização das Nações
Unidas, Ban Ki-moon, destacou o facto de a encíclica descrever as mudanças
climáticas como uma questão moral fundamental, enquanto o Presidente
norte-americano, Barack Obama, manifesta a esperança de que “todos os líderes
do mundo reflictam sobre o apelo do Papa para cuidar da nossa casa comum”.
A Cáritas e a Manos Unidas,
instituições católicas com vasto trabalho social, sublinharam o facto de a
encíclica pretender “reequilibrar as desigualdades entre ricos e pobres” e
“reconhecer a responsabilidade humana na degradação do meio ambiente”. Também o Global Catholic Climate
Movement [Movimento Climático Católico Global] agradeceu ao Papa o apelo urgente à acção na questão das alterações climáticas.
O alcance ecuménico e os ecologistas
na Praça de São Pedro
O alcance ecuménico da encíclica
não se mede apenas pela presença, na apresentação, do metropolita João, de
Pérgamo (já aqui referida) e por citações de textos ortodoxos
e, nomeadamente, do patriarca Bartolomeu, de Constantinopla. O secretário-geral
do Conselho Mundial de Igrejas, pastor Olav Fykse Tveit, afirmou que a encíclica mostra que as
questões abordadas pelo Papa são “centrais na nossa fé cristã e que devemos
afrontá-las como questões de justiça e paz, unidos como cristãos e igrejas com
todas as pessoas que se preocupam pelo nosso futuro comum”.
Martin Junge, secretário-geral da
Federação Luterana Mundial, saudou por seu turno a encíclica como um incentivo
ao combate às mudanças climáticas. E acrescentou que o documento “encoraja cada
um que vive neste planeta a colaborar, urgentemente, na proteção da nossa casa
comum”.
Organizações ecologistas e
ambientalistas como o Greenpeace, o World Wildlife Fund e a italiana
Legambiente também se referiram com elogios ao documento do Papa. Como prova
disso, estarão este domingo, 28, na Praça de São Pedro, para saudar Francisco
pela publicação de Laudato Si’.
Em Portugal, Francisco Ferreira,
da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, afirmou que a
encíclica é de uma “extrema” importância. Também A Rocha,
organização ambientalista cristã com origens em Portugal, apontou a importância
de o Papa ser seguido pelos políticos. O director de teologia de A Rocha
Internacional, Dave Bookless, afirmou: “Na actual conjuntura, onde as
ações da humanidade estão tendo um impacto negativo sem precedentes no reino de
Deus, é vital que os cristãos de todas as denominações – juntamente com pessoas
de outras crenças, ou de nenhuma crença – se unam para proteger a integridade
da criação.”
No mesmo tom, o
presidente da rede ambiental anglicana e arcebispo da cidade do Cabo, Thabo Makgoba, afirmou que os crentes precisam de se “centrar nos elementos morais e espirituais
da crise provocada pela rápida mudança climática”.
“Um vendaval de contributos”
A encíclica Laudato Si’, que foi objecto do debate de Actualidade Religiosa,
quarta-feira passada, na Rádio Renascença, foi escrita a partir de imensos
contributos – e esse talvez seja um dos segredos do seu êxito imediato – como
disse o decano da Universidade Centro Americana, Víctor Manuel Fernández: “Partiu-se
de um primeiro rascunho, mas logo chegou um vendaval de contributos e propostas
de gente de todo o mundo: cientistas, activistas, filósofos, empresários,
políticos. Contou-me [o Papa] que, sem contar com os contributos menores ou as
cartas mais simples, houve mais de 200 colaborações de muito valor e que isso
permitiu elaborar um texto que dialoga muito com as inquietações mais
variadas.”
Um dos contributos foi o do
teólogo brasileiro Leonardo Boff. Num artigo publicado já depois da
publicação de Laudato Si’, o autor de
Saber Cuidar – Ética do Humano, Compaixão
pela Terra (ed. Vozes) Boff escreve que a encíclica, a primeira a abordar a ecologia
numa perspectiva integral, assume a certeza de que “a pobreza e a degradação
ambiental são dois lados da mesma moeda”. E acrescenta que o texto papal
reflecte a forma mentis
latino-americana do Papa: este organiza o pensamento a partir da experiência
pastoral e teológica que, nos documentos do episcopado latino-americano de
Medellín (1968), Puebla (1979) e Aparecida (2007) “fizeram uma opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da libertação”.
(agradecimentos a Eduardo Jorge Madureira e Paulo Terroso pelas referências)
2 comentários:
Belíssima atitude de quem tem poder em alcançar com propostas práticas a reeducação de hábitos e comportamentos para o bem comum é uma vida melhor incondicionalmente! Parabéns ao grande representante do Vaticano. Vida longa e grandes ações ao Papa Francisco!
um grande agradecimento pela elaboração deste texto que nos ajuda a uma leitura atenta da "Laudato Si" e a um empenhamento na sua divulgação e aplicação concreta.
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