sábado, 27 de junho de 2015

Encíclica “Laudato Si’”, o primeiro acto de um apelo para uma nova civilização

Um guia pelos comentários à encíclica do Papa sobre o cuidado da casa comum; pensadores e investigadores, cientistas e políticos, crentes e ambientalistas coincidem na importância do texto papal; este domingo, na Praça de São Pedro, organizações e ambientalistas e ecologistas vão agradecer ao Papa a publicação de Laudato Si'

(ilustração reproduzida daqui)

A encíclica Laudato Si’ é “o primeiro acto de um apelo para uma nova civilização”, considera o sociólogo Edgar Morin, numa entrevista em que comenta o novo documento do Papa Francisco.
Publicada na semana passada, a encíclica, já considerada histórica por muitos comentadores e pensadores de relevo, tem provocado muitos comentários, incluindo de quem critica o Papa por falar de alterações climáticas e considerar que ele não deve falar sobre política ou economia. Tal é o caso do candidato republicano às presidenciais dos Estados Unidos do próximo ano, Jeb Bush.
Também o articulista espanhol Miguel Angel Belloso é muito crítico com Francisco: apesar de se apresentar como católico, ele manifesta, no DN, uma profunda ignorância sobre o que dizem a teologia e a doutrina social católica desde os primeiros séculos do cristianismo, ao escrever, por exemplo, que “Francisco chega a ser ofensivo ao assegurar que a propriedade privada não pode estar acima do bem comum”.
Em geral, no entanto, a encíclica Louvado Sejas – Sobre o Cuidado da CasaComum (versão em pdf também disponível nesta ligação) foi bem acolhida. A tal ponto que levou já um conjunto de organizações de diversos países a propor uma petição internacional de apoio ao apelo do Papa por uma ecologia integral.
A petição é dirigida aos chefes de Estado e de Governo dos países que participarão na Conferência Internacional sobre a Mudança do Clima, que decorre na primeira quinzena de Dezembro, em Paris.
“Em nome dos nossos filhos e de todas as crianças”, em nome “dos pobres e do próprio planeta” e “em nome de toda a família humana”, os signatários pedem aos líderes políticos “que acolham o apelo lançado pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, sobre o ‘cuidado da casa comum’, na qual ele reconhece que a humanidade ainda está em tempo de evitar uma catástrofe ecológica e pede compromissos concretos por uma ‘autêntica ecologia humana’”.
O texto de Francisco motivou também, e sobretudo, interessantes e importantes reflexões a propósito do seu conteúdo e das propostas que faz. O sociólogo agnóstico Edgar Morin considerou, em entrevista ao La Croixque a Laudato Si’ “é, talvez, o primeiro acto de um apelo para uma nova civilização”. O pensador francês considera a encíclica “providencial”, porque “vivemos uma época de deserto do pensamento, um pensamento fragmentado em que os partidos que se dizem ecologistas não têm nenhuma real visão da magnitude e da complexidade do problema, em que perdem de vista o interesse daquilo que o Papa Francisco, numa maravilhosa fórmula retomada de Gorbatchev, chama de “casa comum”. Na entrevista (aqui em português), Morin acrescenta que considera o texto muito “bem estruturado”.

O “undécimo mandamento”

Prior da comunidade monástica de Bosé, teólogo e cronista reconhecido em Itália, Enzo Bianchi (autor de Para Uma Ética Partilhada, ed. Pedra Angular) fala da encíclica como o “undécimo mandamento”. “A mensagem de Francisco é urgente e clara: para nos salvar, nós, humanos, devemos nos salvar junto com a terra. Há anos eu repito a mim mesmo um mandamento que eu coloco ao lado dos mandamentos bíblicos: ‘Ama a terra como a ti mesmo’”, escreve ele, num artigo publicado no jornal La Repubblica, aqui traduzido para português.

Outro teólogo, o jesuíta Daniel Izuzquiza, propõe sete chaves de leitura para o que caracteriza como uma “encíclica urgente. Essas chaves – científica, ético-filosófica, política, social, cultural, teológica, espiritual – ajudam a entender o conteúdo do texto e apelam ao compromisso pessoal, já que o Papa se dirige a cada habitante do planeta, diz Izuzquiza.
Teologicamente, Marco Roncalli – sobrinho-neto e biógrafo do Papa João XXIII – descobre ainda na encíclica referências ao pensamento de Teilhard de Chardin, o jesuíta que trabalhou a questão da evolução, enquanto cientista e chegou a ser alvo de um processo do então Santo Ofício. Num artigo no Avvenire de dia 20 (traduzido aqui em português), ele cita o final do parágrafo 83 do texto, onde se lê: “A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal. (…) O fim último das restantes criaturas não somos nós. Mas todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, em uma plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina.”
O contributo de Teilhard de Chardin é expressamente referido numa nota de rodapé e, neste caso, as notas de rodapé – e não só – revelam também algumas coisas importantes do documento do Papa: “Além de quebrar a tradição ao citar textos de conferências [episcopais] nacionais, o Papa Francisco lança mão de uma gama de pensadores católicos”, escreve Kevin Ahern, eticista teológico, em artigo publicado pelo sítio America e aqui em português.
Mas há mais: “Além da utilização de uma linguagem inclusiva de género – a primeira nas encíclicas sociais católicas –, um dos aspectos mais surpreendentes de Laudato Si’ são as notas de rodapé. Para ser honesto, elas foram uma das primeiras coisas que olhei. Francisco se afasta da tradição das encíclicas sociais católicas ao citar várias fontes não católicas oficiais, tais como documentos da ONU, as conferências episcopais nacionais e, de modo mais surpreendente, um místico sufi!”

“Uma atitude muito científica”, um texto “desafiador e profético”

O lugar da ciência é outro aspecto importante. Na apresentação do documento, no Vaticano, esteve presente Hans Schellnhuber, presidente do Instituto Potsdam de Investigação sobre os Impactos Climáticos, na Alemanha, um dos principais investigadores da área e “pai da ideia de que se deve evitar um aumento da temperatura média global acima de 2 graus centígrados até ao final deste século - como se recorda aqui. Esse foi um indicador da importância dada a indicadores científicos. Mas também o físico Roberto Cingolini, director científico do Instituto Italiano de Tecnologia, afirmou, em entrevista ao Avvenire, aqui referida em portuguêster identificado no texto “uma atitude muito científica”.
O documento não se fica, no entanto, pela abordagem científica e pelo diagnóstico: a intenção do Papa é a proposta de um novo estilo de vida e, por isso, ele chega mesmo a dar sugestões concretas sobre o papel de cada pessoa para a salvação do planeta.
No National Catholic Reporter, Tony Magliano escreve que a encíclica franciscana é “corajosa, profética, desafiadora, holística, maravilhosa”. E acrescenta: “Citando o seu santo patrono, Francisco de Assis, que também é o santo padroeiro da ecologia, o Papa Francisco começa a sua carta papal com um belo verso do Cântico das Criaturas: Louvado Sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras.”
Um documento do Conselho Missionário Indígena (CMI) brasileiro, divulgado um dia depois da encíclica, parece dar razão ao texto do Papa. No nº 146 da Laudato Si’, , escreve ele que “é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais”. Ora, o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil” destaca os casos de assassinatos, suicídios, mortalidade infantil, invasões de terras e exploração de recursos de que aqueles povos são vítimas. Para concluir que “a situação entre os povos indígenas é muito complicada”, como disse o bispo Erwin Kräutler, de Xingu.

A conversão ecológica como contrapoder


(ilustração reproduzida daqui)

Fora do universo crente, e para lá da já citada entrevista de Edgar Morin, há igualmente outros textos que devem ser referidos. No novo suplemento dominical Ideas, do El País, Lluís Bassets referia-se ao Papa como um contrapoder, com a sua proposta de conversão ecológica.
Acrescentando que a encíclica teve “efeitos políticos imediatos” e que a repercussão do pensamento do Papa transcende o universo católico, escrevia: “a Laudato Si’ (...) pretende alcançar a humanidade inteira, independentemente das religiões ou crenças. É além disso um apelo, em muitos aspectos dramático, à acção urgente diante das catástrofes meio-ambientais que se avizinham (...), dirigido sobretudo aos países mais ricos e com maiores responsabilidades contaminadoras e às organizações internacionais, mas também aos indivíduos, cada um no seu nível, para que actuem respectivamente com políticas que limitem os desastres e adoptem formas de vida mais ecológicas e menos consumistas.”
No texto (aqui em castelhano), Bassets acrescenta que a repercussão da encíclica “demonstra o prestígio e a autoridade crescente do Papa Francisco”, do qual só se afastaram as vozes “cada vez mais isoladas dos que negam a evidência científica da mudança climática”.
No âmbito institucional, registaram-se vários elogios: o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, destacou o facto de a encíclica descrever as mudanças climáticas como uma questão moral fundamentalenquanto o Presidente norte-americano, Barack Obama, manifesta a esperança de que “todos os líderes do mundo reflictam sobre o apelo do Papa para cuidar da nossa casa comum”.
A Cáritas e a Manos Unidas, instituições católicas com vasto trabalho social, sublinharam o facto de a encíclica pretender “reequilibrar as desigualdades entre ricos e pobres” e “reconhecer a responsabilidade humana na degradação do meio ambiente”. Também o Global Catholic Climate Movement [Movimento Climático Católico Global] agradeceu ao Papa o apelo urgente à acção na questão das alterações climáticas.

O alcance ecuménico e os ecologistas na Praça de São Pedro

O alcance ecuménico da encíclica não se mede apenas pela presença, na apresentação, do metropolita João, de Pérgamo (já aqui referidae por citações de textos ortodoxos e, nomeadamente, do patriarca Bartolomeu, de Constantinopla. O secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas, pastor Olav Fykse Tveit, afirmou que a encíclica mostra que as questões abordadas pelo Papa são “centrais na nossa fé cristã e que devemos afrontá-las como questões de justiça e paz, unidos como cristãos e igrejas com todas as pessoas que se preocupam pelo nosso futuro comum”.
Martin Junge, secretário-geral da Federação Luterana Mundial, saudou por seu turno a encíclica como um incentivo ao combate às mudanças climáticas. E acrescentou que o documento “encoraja cada um que vive neste planeta a colaborar, urgentemente, na proteção da nossa casa comum”.
Organizações ecologistas e ambientalistas como o Greenpeace, o World Wildlife Fund e a italiana Legambiente também se referiram com elogios ao documento do Papa. Como prova disso, estarão este domingo, 28, na Praça de São Pedro, para saudar Francisco pela publicação de Laudato Si’.
Em Portugal, Francisco Ferreira, da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza, afirmou que a encíclica é de uma “extrema” importânciaTambém A Rocha, organização ambientalista cristã com origens em Portugal, apontou a importância de o Papa ser seguido pelos políticos. O director de teologia de A Rocha Internacional, Dave Bookless, afirmou: “Na actual conjuntura, onde as ações da humanidade estão tendo um impacto negativo sem precedentes no reino de Deus, é vital que os cristãos de todas as denominações – juntamente com pessoas de outras crenças, ou de nenhuma crença – se unam para proteger a integridade da criação.”
No mesmo tom, o presidente da rede ambiental anglicana e arcebispo da cidade do Cabo, Thabo Makgoba, afirmou que os crentes precisam de se “centrar nos elementos morais e espirituais da crise provocada pela rápida mudança climática”.

“Um vendaval de contributos”

A encíclica Laudato Si’, que foi objecto do debate de Actualidade Religiosa, quarta-feira passada, na Rádio Renascençafoi escrita a partir de imensos contributos – e esse talvez seja um dos segredos do seu êxito imediato – como disse o decano da Universidade Centro Americana, Víctor Manuel Fernández: “Partiu-se de um primeiro rascunho, mas logo chegou um vendaval de contributos e propostas de gente de todo o mundo: cientistas, activistas, filósofos, empresários, políticos. Contou-me [o Papa] que, sem contar com os contributos menores ou as cartas mais simples, houve mais de 200 colaborações de muito valor e que isso permitiu elaborar um texto que dialoga muito com as inquietações mais variadas.”
Um dos contributos foi o do teólogo brasileiro Leonardo BoffNum artigo publicado já depois da publicação de Laudato Si’, o autor de Saber Cuidar – Ética do Humano, Compaixão pela Terra (ed. Vozes) Boff escreve que a encíclica, a primeira a abordar a ecologia numa perspectiva integral, assume a certeza de que “a pobreza e a degradação ambiental são dois lados da mesma moeda”. E acrescenta que o texto papal reflecte a forma mentis latino-americana do Papa: este organiza o pensamento a partir da experiência pastoral e teológica que, nos documentos do episcopado latino-americano de Medellín (1968), Puebla (1979) e Aparecida (2007) “fizeram uma opção pelos pobres, contra a pobreza e em favor da libertação”.

(agradecimentos a Eduardo Jorge Madureira e Paulo Terroso pelas referências)

2 comentários:

Anónimo disse...

Belíssima atitude de quem tem poder em alcançar com propostas práticas a reeducação de hábitos e comportamentos para o bem comum é uma vida melhor incondicionalmente! Parabéns ao grande representante do Vaticano. Vida longa e grandes ações ao Papa Francisco!

pe. António Janela disse...

um grande agradecimento pela elaboração deste texto que nos ajuda a uma leitura atenta da "Laudato Si" e a um empenhamento na sua divulgação e aplicação concreta.