domingo, 6 de dezembro de 2015

O Papa em África: uma mensagem em miniatura


(foto reproduzida daqui)

Vários comentários retomam ainda a viagem do Papa a África, que terminou segunda-feira passada. No CM de sexta-feira, Fernando Calado Rodrigues pegava nas declarações do Papa no regresso de Bangui (República Centro-Africana), a propósito da sida. Sob o título A Igreja e o preservativo, escrevia:

Mais importante do que ditar o uso ou não uso do preservativo, a Igreja deve preocupar-se em propor valores, como sejam o altruísmo e a abertura à vida, ou a humanização da sexualidade, como defendeu Bento XVI. No fundo, é fazer o mesmo caminho que percorreu em relação à organização política das sociedades: em vez de propor um modelo a partir da sua Doutrina Social, fornecer os valores a respeitar no exercício do poder. E denunciar todos os comportamentos que não os respeitam, sem canonizar um qualquer sistema político.
(Texto na íntegra aqui)


No Público, Alexandra Lucas Coelho toma esse e outros pretextos para falar d’O PREC do Papa em 2015:

É aqui que o Papa Francisco entra, detendo o ponteiro enlouquecido da bússola. Ao ir onde vai, ao dizer o que diz, ao abraçar quem abraça, ele redefine o eixo da fé em 2015, uma fé tão nos antípodas da Inquisição ou das seitas cristãs contemporâneas como a minha família de Gaza está nos antípodas do “Estado Islâmico”. A grande revolução de Francisco será essa, resgatar a fé da zona vermelha do saque, começando pelos saqueadores do Vaticano, porque um cristão humanista estará sempre mais próximo de um muçulmano humanista do que de um cristão fundamentalista, tal como um muçulmano humanista está mais próximo de um cristão humanista do que de um muçulmano fundamentalista. Dois crentes humanistas estarão sempre próximos, independentemente da Igreja.
(Texto na íntegra aquia propósito da última referência do texto, a Israel e Palestina, pode recordar-se a importante viagem do Papa Francisco à Terra Santa, onde ele se referiu exactamente à urgência do reconhecimento mútuo dos dois Estados, bem como a outras questões do conflito)


No Crux, o site de informação religiosa do Boston Globe, Inés San Martín escrevia que a viagem a África como que sublinhou e sintetizou, numa espécie de “miniatura”, os diferentes aspectos do “Papa das periferias”.
No texto, a correspondente do Crux em Roma destaca que a viagem permitiu ao Papa colocar as periferias no centro da Igreja e insistir na ideia de um catolicismo centrado na misericórdia de Deus.
A paz, os pobres, o ambiente, o diálogo inter-religioso, a reconciliação, os doentes e os jovens são alguns dos tópicos do Papa na viagem ao Quénia, Uganda e República Centro-Africana (RCA), destacados por Inés San Martín. “Por detrás de tudo, a misericórdia foi um refrão constante”, nota a jornalista, recordando o gesto da abertura da porta do ano jubilar da misericórdia na catedral de Bangui.
A ideia da misericórdia esteve ainda presente, acrescenta o texto no facto de a RCA ser o terceiro país mais pobre do mundo, de ser a primeira vez que um Papa contemporâneo visita um país numa situação de guerra activa.
(O texto, em inglês, pode ser lido aqui na íntegra)


No DN de segunda-feira, o dia em que a viagem do Papa terminou, publiquei um artigo sobre o catolicismo africano. Fica a seguir o texto, com o título

O Papa perante uma Igreja plural, a falar ao mundo

O Papa Francisco deixa hoje a República Centro-Africana (RCA), país mergulhado num violento conflito e última etapa desta já histórica viagem, depois de ter estado no Quénia e no Uganda. Nestes seis dias intensos, o Papa despertou uma Igreja com desafios críticos pela frente, tocou todos os graves problemas das sociedades africanas e não deixou de ter os olhos postos no mundo – por exemplo, com as referências ao meio ambiente e ao terrorismo.
Francisco repetiu críticas à corrupção política e eclesial, condenou o tribalismo e a violência terrorista, apelou à defesa do ambiente, dos mais pobres e das mulheres, e pediu educação e emprego para os jovens como forma de prevenir a violência.
O Papa não deixou de se referir aos tremendos desafios que se colocam à Igreja africana – ou melhor, às muito diferentes expressões do catolicismo africano, como chama a atenção José Carlos Rodríguez Soto, ex-padre e missionário, que vive em África há 24 anos (Uganda, República Democrática do Congo, República Centro-Africana e Gabão) e trabalha actualmente na Cáritas do Uganda e outras organizações não-governamentais.
No site da Fundación Sur, Rodríguez Soto escrevia recentemente que África acolhe um catolicismo que tanto pode ter uma grande implantação na maioria da população (Congo-Kinshasa, Uganda, Burundi, Gabão), como ser uma minoria com forte implantação social (Mali, Chade) ou uma minoria em sociedades de maioria cristã ortodoxa (Etiópia, Eritreia) ou de maioria cristã protestante (África do Sul).
O ex-padre refere ainda uma Igreja Católica que, em determinados países, vive mais acomodada com o poder (Guiné Equatorial) ou que, pelo contrário, contesta ditaduras e defende a paz e a dignidade humana (República Democrática do Congo ou República Centro-Africana, onde o Papa chegou ontem). E recorda ainda Soto casos como o do bispo John Baptist Odama, do Uganda, que esteve nas negociações de paz, falava com guerrilheiros na selva ou dormia nas ruas da sua cidade, Gulu, junto das crianças de rua, que fugiam da guerrilha.

Lideranças frágeis

Saído de séculos de colonização, só nas últimas décadas o catolicismo africano foi ganhando rostos e lideranças autóctones. Mas estas são ainda muito frágeis: estão por vezes demasiado ligadas a políticos autoritários ou não investem suficientemente na formação teológica, sem reflectir a realidade africana.
Apesar dos seminários cheios, em muitos casos “é difícil detectar as verdadeiras motivações” dos candidatos a padre, como escrevia Rodríguez Soto. Muitas vezes, acrescentava, a ideia do padre demasiado ligado ao poder ou ao prestígio social acaba por pesar mais na vocação do que o serviço à comunidade.
Sexta-feira, no Uganda, Francisco agradeceu o trabalho dos mais de 15 mil catequistas do país – e das centenas de milhares que, por todo o continente, asseguram muitas das estruturas locais da Igreja. Os catequistas, mulheres e homens, “são autênticos padres não ordenados”, diz ao DN o padre José Vieira, actual provincial (responsável) dos Missionários Combonianos em Portugal, que viveu na Etiópia (1993-2000) e no Sudão do Sul (2006-13). “Eles transmitem a fé, animam a liturgia e a celebração da missa, fazem as homilias, asseguram a ligação ao bispo.”
José Vieira diz que o papel dos catequistas é uma das potencialidades maiores do catolicismo africano – a par da juventude da Igreja. Mas o modo como a autoridade é vista é um problema, confirma este missionário: “Os anciãos são vistos como guardadores da tradição e muitos bispos encarnam esse papel, preservando da novidade. Um bispo queniano dizia-me uma vez: ‘Eu estou sempre com Roma.’ Essa frase traduz a tendência grande para estar do lado do poder, seja ele qual for.”
O missionário aponta outros problemas do catolicismo africano: a dependência do financiamento externo, que “confirma o conservadorismo e induz a corrupção”, a “dificuldade em responder à cultura tecnológica e ao crescimento dos novos movimentos religiosos”, ou ainda o tribalismo e a submissão da mulher – “as mulheres são submetidas, não submissas”, corrige, “porque, quando elas têm espaço, conseguem manifestar-se e são elas que levam para a frente a sociedade e a Igreja”.
O Papa como que confirmou alguns aspectos deste retrato: a corrupção, que se entranha “como um açúcar”, é um dos problemas das sociedades, mas também da Igreja, disse em Nairobi (Quénia). A lógica do tribalismo – num continente onde cristãos de etnias diferentes por vezes se matam, como aconteceu há duas décadas no Ruanda e no Burundi – deve ser contrariada, disse também o Papa na primeira etapa da viagem. “Há bispos literalmente rejeitados só por serem de uma etnia diferente”, confirma o padre José Vieira.

O tribalismo pode ir ao ponto de provocar guerras civis ou, pelo menos, graves conflitos em diversos países – como é o caso da RCA. Para o Papa, é clara a relação entre a pobreza, a degradação ambiental e o terrorismo ou a violência. Francisco não se cansou de repetir essa mensagem. Resta saber se ela passou também para os responsáveis da Igreja (e das sociedades). 

Texto anterior no blogue
Novas figuras do Advento, a mulher mais poderosa e uns sapatos - crónicas de frei Bento Domingues, Anselmo Borges e Vítor Gonçalves


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