sábado, 19 de dezembro de 2015

Pacto das Catacumbas: lugar aos pobres na Igreja

O programa Setenta Vezes Sete, de domingo passado, foi dedicado ao Pacto das Catacumbas, um documento assinado há 50 anos e que ajuda a compreender o modo de ser e de agir do Papa Francisco. O texto, assinado por quatro dezenas de bispos, a que se juntaram depois perto de 500, aponta um objectivo, como caracteriza frei Bento Domingues: "Sem ter os pobres no centro da Igreja, a Igreja não é Igreja.”




O texto do Pacto das Catacumbas foi assinado na Catacumba de Santa Domitila, um dos cemitérios romanos dos primeiros séculos da era cristã, no final de uma missa, há 50 anos: a 16 de novembro de 1965, cerca de meia centena de bispos católicos, que estavam em Roma a concluir o Concílio Vaticano II, assinaram o que viria a ficar conhecido como Pacto das Catacumbas. O documento acabou por ficar quase desconhecido, sendo ressuscitado apenas nos últimos cinco anos. (um curto texto pode ser lido aqui)


Sobre o Pacto, publiquei no Diário de Notícias do passado dia 8 um texto com o título
O Papa Francisco é fruto de um pacto assinado na catacumba

O texto foi assinado por 40 bispos numa catacumba de Roma, mas o lugar não foi escolhido por medo ou fuga: a 16 de Novembro de 1965, esses bispos – e mais uns 500 que assinaram o documento nos dias seguintes – quiseram comprometer-se em conjunto, de forma discreta e sem holofotes, a renunciar à propriedade pessoal, a viver em casas semelhantes às do seu povo ou a ser chamados com títulos “que signifiquem a grandeza e o poder”, como eminência, excelência ou monsenhor.
Cinco décadas depois, o Pacto das Catacumbas, como ficou conhecido o curto texto de duas páginas, teve um dos seus frutos maiores com a eleição e acção do actual Papa: “Quem lê o Pacto pela primeira vez, não pode deixar de pensar como ele está próximo do Papa Francisco. De certo modo, o Papa é fruto do compromisso daqueles bispos que procuraram viver de forma simples, sem ostentação, próximos do povo e solidários com os pobres”, diz ao DN o padre José Antunes da Silva, missionário do Verbo Divino e co-organizador do livro O Pacto das Catacumbas – A Missão dos Pobres na Igreja (ed. Paulinas), que acaba de ser editado.


No texto, os signatários comprometiam-se ainda a dar todo o tempo e meios ao serviço das pessoas “economicamente mais débeis”. E prometiam também insistir, junto de governantes e responsáveis públicos, para que pusessem em prática “as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmónico e total do homem todo e de todos os homens”.

Um apelo de João XXIII


O Pacto das Catacumbas procurava responder a um apelo do Papa João XXIII. A 11 de Setembro de 1962, um mês antes de iniciar o Concílio Vaticano II, a reunião de todos os bispos católicos do mundo, que convocara para renovar a Igreja e actualizar o seu modo de agir no mundo, afirmou: “A Igreja apresenta-se tal como é e como pretende ser, como a Igreja de todos e, particularmente a Igreja dos pobres.”
Na expressão do Papa Roncalli, relê-se, como um eco antecipado, a exclamação do Papa Francisco. Ao explicar a escolha do seu nome, perante os jornalistas, três dias depois de ser eleito, o actual Papa afirmou: “Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!”
Luigi Bettazzi, então bispo auxiliar de Bolonha (Itália) e um dos signatários do Pacto ainda vivos, recorda que “a consideração sobre as expectativas do mundo, sobretudo do mundo dos mais pobres, dos mais necessitados, das nações em vias de desenvolvimento, constitui uma orientação para a primeira sessão do Concílio” – a reunião magna dos bispos de todo o mundo teve quatro sessões, entre 11 de Outubro de 1962 e 8 de Dezembro de 1965, faz hoje 50 anos).
Num dos textos do livro citado, Bettazzi refere que o tema da pobreza foi, a pouco e pouco, entrando no debate do Concílio. Havia, no entanto, quem pedisse mais: o cardeal Giacomo Lercaro, arcebispo de Bolonha (com quem Bettazzi trabalhava), defendia que a evangelização dos pobres “iluminasse a abordagem dos vários assuntos de que o próprio Concílio tratasse”.
A tese de Lercaro, uma das personalidades mais influentes da Igreja da época, não vingou. Prevaleceu a ideia de que o tema da pobreza permeabilizasse os diferentes documentos. O debate, apesar das diferentes perspectivas, acabou por ter consequências, recorda Bettazzi. Desde logo, afirmações doutrinais importantes, como a consideração de como “Cristo quis ser pobre e proclamou o espírito da pobreza como a primeira das bem-aventuranças” – a perspectiva cristã sobre a pobreza entende-a como a simplificação e sobriedade de vida, e não o viver na miséria.
Também houve decisões práticas em questões como a liturgia (simplificação de adereços e paramentos litúrgicos) ou na utilização de símbolos do poder temporal – o Papa aboliu, por exemplo, a sede gestatória, cadeirão em que era transportado em ombros.
Mas a consequência mais importantes seria a adopção, por todo o episcopado latino-americano, da ideia da “opção preferencial pelos pobres”, nas suas conferências de Medellín (Colômbia, 1968), Puebla (México, 1978) e Aparecida (Brasil, 2007). Nesta última, o então cardeal Jorge Bergoglio – actual Papa Francisco – foi um dos responsáveis pela redacção do texto final. A corrente da teologia da libertação e a dinamização das comunidades eclesiais de base acabariam também devedoras do Pacto.

Artífices e protagonistas

A proposta de João XXIII e as ideias consagradas no Pacto não surgiram do nada. Respondiam a um movimento que, no catolicismo da época, procurava responder aos desafios do mundo contemporâneo de modo mais autêntico e mais fiel ao cristianismo das origens.
Na altura, vários movimentos de renovação do catolicismo pugnavam pela intervenção dos católicos na sociedade e na política, por mais atenção à Bíblia ou por mudanças no campo da liturgia ou da catequese, por exemplo. A par deles, foi ganhando corpo a ideia de uma Igreja mais despojada.
O movimento dos padres-operários (com um emprego como forma de sustento e assumindo a condição de vida das classes mais baixas) foi uma das correntes a contribuir para este movimento da “Igreja dos pobres”, como ficaria conhecido o grupo do Pacto.
Charles de Foucauld (1858-1916) era outra das inspirações: o monge que vivera sozinho entre os tuaregues da Argélia, procurando concretizar o espírito de um Jesus próximo dos mais pobres, acabaria assassinado por alguns fanáticos. Mas a sua proposta de uma vida sóbria e reduzida ao essencial, solidária com os mais desfavorecidos, acabaria por fazer caminho em várias congregações religiosas – os Irmãozinhos e as Irmãzinhas de Jesus, por exemplo – e outros dinamismos religiosos.
Paul Gauthier (1914-2002), um padre que vivera sozinho em Nazaré (Palestina) tentando reproduzir esse estilo de vida, esteve em Roma durante o Concílio e propôs a vários bispos a espiritualidade de Foucauld. Foi com essa proposta que o grupo “Igreja dos Pobres” se foi constituindo e alargando pouco a pouco.
O texto só seria referido três semanas depois da sua assinatura, numa curta notícia do Le Monde. Nela, Henri Fesquet escrevia que muitos consideravam o documento como um dos frutos proveitosos do Concílio Vaticano II. Foi preciso esperar 50 anos para perceber que o jornalista acertara.

Compromissos e renúncias

Uma missa, duas páginas de papel, doze pontos, 39 bispos. O Pacto das Catacumbas é um texto que resulta da vontade expressa dos seus signatários em mudar de atitude pessoal, renunciando a formas ou aparências de poder e de riqueza.
Os bispos – aos quais se juntaram mais uns 500 que o assinariam também, nas duas semanas seguintes – comprometiam-se a viver de modo semelhante ao das populações que serviam, no que respeitava à habitação, alimentação e meios de locomoção, por exemplo. Também a renúncia à riqueza (aparente ou real), mesmo na forma de vestir (por exemplo, com cores berrantes ou com insígnias de matéria preciosa) era assumida pelos subscritores.
Entre eles, estavam vários bispos que deram exemplo disso mesmo. Hélder Câmara (1909-1999), futuro arcebispo de Olinda-Refice (Brasil), que esteve em Portugal em 1986, foi um dos rostos do episcopado brasileiro na luta contra a ditadura e por uma Igreja empenhada na defesa dos direitos humanos e de mais justiça social. “Quando dou comida aos pobres chamam-me santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me comunista”, costumava ele dizer. Dom Hélder, como era chamado, deixou em 1968 o paço episcopal e foi viver para um modesto anexo da igreja de Fronteiras, no Recife, como resuktado do Pacto.
 José Maria Pires (Paraíba, Brasil), Alfred Ancel (bispo auxiliar de Lyon e ex-padre operário), Georges Hakim (Nazaré, Israel/Palestina), Manoel Larraín (Talca, Chile), e Georges Mercier (Laghouat, Argélia) foram outros dos nomes destacados da época que integraram e dinamizaram o grupo.
O Pacto, que os signatários entregaram ao Papa Paulo VI, em 1965, afirmava ainda a renúncia à propriedade privada, a entrega da gestão dos bens da Igreja a leigos competentes na matéria e a recusa em ser chamados por títulos “que signifiquem a grandeza e o poder (eminência, excelência, monsenhor)”. Também a adopção de um comportamento que mostrasse a preferência pelos mais pobres e não o contrário, bem como a transformação das “obras de caridade” em “obras sociais baseadas na caridade e na justiça” era propostas assumidas pelos signatários do Pacto.

Um lugar de despojamento


A Catacumba de Domitila, em Roma, é uma das mais importantes, entre as cerca de 60 existentes fora dos muros da cidade antiga. Ao contrário da ideia comum, as catacumbas não eram lugares onde os cristãos de refugiavam, mas onde sepultavam os seus mortos (tal como os outros romanos), incluindo mártires das diferentes perseguições. Mas simbolizam esse cristianismo despojado das origens, longe do poder e do prestígio social.


A catacumba toma o nome de uma nobre convertida ao cristianismo que acabou martirizada. Com 17 quilómetros de galerias subterrâneas e 150 mil sepulturas, a Catacumba de Domitila é a única, entre as abertas ao público, que tem uma basílica subterrânea. Uma das pinturas mais importantes que ali se podem encontrar é a que representa Jesus Cristo como o bom pastor, uma das representações mais antigas da iconografia cristã.

Padre José Antunes: “Um instrumento para renovar a Igreja”


O padre José Antunes da Silva faz parte da congregação do Verno Divino e está em Roma, desde 2009, como membro do seu conselho geral. Só nessa altura ouviu falar do documento, pretexto para organizar, com o teólogo espanhol Xabier Pikaza, um livro que recolhe vários estudos sobre o Pacto – que teve como um dos seus frutos o Papa Francisco, diz.



P. – Que importância tem o Pacto, 50 anos depois?  
P. JOSÉ ANTUNES DA SILVA – O documento continua actual e muitas das suas propostas continuam por implementar. O Pacto das Catacumbas desafia-nos a regressar ao evangelho, fonte da vida cristã. O texto começa com as seguintes palavras: “Nós, bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho...”. Por isso, eles comprometem-se a fazer uma série de mudanças na sua vida pessoal e nas suas dioceses.
P. – Como por exemplo?
R. – Por exemplo, ter um estilo de vida mais simples e exercer o ministério episcopal de acordo com critérios evangélicos. O Pacto tem doze breves compromissos inspirados no evangelho. Também hoje, o evangelho é o critério para discernir em que ponto do caminho nos encontramos a nível pessoal, comunitário, eclesial, etc.
Por isso, o Pacto das Catacumbas pode ser um excelente instrumento para renovar a Igreja. Não como um programa para impor a terceiros, mas como uma proposta feita a cada baptizado para redescobrir a beleza e a actualidade do evangelho.
P. – Pode dizer-se que o Papa Francisco é fruto do Pacto?
R. – Quem lê o Pacto pela primeira vez, não pode deixar de pensar como ele está próximo do Papa Francisco. De certo modo, Francisco é fruto do compromisso daqueles bispos que procuraram viver de forma simples, sem ostentação, próximos do povo e solidários com os pobres.
P. – É neste contexto que surge o livro?
R. – A publicação do livro ocorre no contexto do quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II. Através desta obra, queremos contribuir para reviver o espírito do Concílio e renovar o compromisso da Igreja para a transformação do mundo.
Pareceu-nos que o Pacto das Catacumbas vem ao encontro do pensamento e da acção pastoral do Papa Francisco, que deseja uma Igreja pobre ao serviço dos pobres.
P. – O facto de ter sido assinado numa catacumba é simbólico?
R. – A catacumba de Domitila pertence à Santa Sé e, desde 2009, estão ao cuidado da Congregação do Verbo Divino. O facto de sermos os guardiães destas catacumbas fez-nos tomar consciência da responsabilidade que temos em divulgar o conteúdo e o espírito deste Pacto. Aliás, a sua visão e as suas propostas estão muito em linha com a missão da nossa congregação, traduzida no lema: missão “inter gentes” – colocando os últimos em primeiro lugar.

O Pacto permaneceu praticamente desconhecido, excepto nalguns contextos eclesiais da América Latina. Por isso, quisemos aproveitar a passagem dos 50 anos da sua assinatura para o dar a conhecer e organizar várias iniciativas: um seminário, vídeos em diversas línguas... O livro insere-se neste projecto.

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