segunda-feira, 25 de março de 2013

Carta Aberta a Belmiro de Azevedo



Exmo. Senhor Belmiro de Azevedo,

Escrevemos-lhe na sequência de declarações suas no Clube dos Pensadores, em Vila Nova de Gaia, no dia 18 deste mês. O jornal PÚBLICO, no dia seguinte, na sua edição on-line noticiava que o senhor afirmara “não perceber por que motivo se diz que a economia não deve ser baseada em trabalho de custo reduzido”. E o diário fazia eco das suas próprias palavras: “Diz-se que não se devem ter economias baseadas em mão-de-obra barata. Não sei por que não. Porque se não for a mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém”.
Por outro lado, durante a sua intervenção no Clube dos Pensadores – ainda segundo o PÚBLICO –, o senhor referiu-se às manifestações dos portugueses contra as medidas de austeridade que o país tem vindo a assistir, cada vez com mais veemência, que elas representam “quase um Carnaval, mais ou menos, permanente”.

As suas declarações ensombraram os nossos corações por revelarem falta de sensibilidade para com os cidadãos, vítimas de modelos de governação caracterizados por má gestão, que agora são penalizados nos seus mais elementares direitos constitucionais – redução de salários, quer seja por via do sistema de impostos, diretos ou indiretos, quer seja na retirada de direitos através da anulação de prestações sociais, como é o caso gravoso no âmbito da Saúde; redução do valor de pensões de reforma e de subsídio de desemprego, cujo financiamento já havia sido garantido pelos trabalhadores, durante a sua vida ativa; eliminação de medidas de apoio social, como decorre da alteração do quadro de concessão de abonos de família ou de apoios suplementares às baixas pensões de sobrevivência…

As suas palavras, sobretudo, causaram-nos perplexidade, particularmente por serem proferidas por quem é responsável por mais de 30 mil trabalhadores. A sua experiência empresarial deveria, em nosso entender, ter-lhe concedido o conhecimento suficiente de que uma empresa só é possível sobreviver com a mais-valia da “mão-de-obra”, seja ela braçal ou intelectual. Aliás, a sua riqueza pessoal avaliada em 1,45 mil milhões de dólares (mais 450 mil dólares do quem em 2012), segundo a revista FORBES, não foi certamente conseguida apenas com o seu esforço pessoal. A sua subida em 129 posições, neste ano, no ranking dos mais ricos de todo o mundo face ao ano anterior, só foi possível, seguramente, graças ao bom desempenho profissional de cada um dos seus 30 mil trabalhadores.

Onde está o teu irmão?

A citação bíblica, colocada acima, somente pretende centrar as razões desta carta. Não nos movem quaisquer interesses de ordem partidária ou de qualquer outro tipo de agremiações sociopolíticas. Somos cidadãs e cidadãos empenhados em diferentes áreas sociais, de forma voluntária, norteando-nos somente o desejo de uma Humanidade co-responsável e fraterna.
O que nos mobiliza é o desejo de uma sociedade fundada na ética, cujo primeiro valor é o respeito pelo ser humano, em todas as suas dimensões, como recorda Dionigi Tettamanzi, ex-arcebispo de Milão, no seu livro Não há futuro sem solidariedade – A crise económica e a ajuda da Igreja (*). A propósito, parece-nos oportuno fazer referência a “duas perguntas inevitáveis” que o bispo Tettamanzi coloca logo no início daquele seu livro: “Poderá considerar-se ética uma economia que, no centro, não põe o homem, mas o lucro a obter a todo o custo? Que responsabilidade tem – sobre as dificuldades do momento presente – aquela finança virtual que perdeu de vista a economia real centrada no bem-estar da comunidade e dos indivíduos?”. E o ex-arcebispo de Milão conclui: “Não tenho dúvidas: a ética não é um acrescento à economia, mas é o seu fundamento.”

As suas declarações no Clube dos Pensadores não refletem estas preocupações. As suas palavras revelam, antes, uma leviandade; a leviandade de quem afortunadamente vive despreocupado, porque, como o senhor afirmou, pretende viver à custa de “economias baseadas em mão-de-obra barata”.
Por outro lado, as manifestações de dor e de revolta perante as injustiças levadas a cabo por sucessivos Governos no nosso país (e ultimamente agravadas), não as consideramos “um Carnaval, mais ou menos, permanente.” Autêntico “Carnaval” – para usar a sua expressão – têm sido as contínuas medidas que, há mais de dois anos, configuram um verdadeiro desrespeito pela Constituição e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, descredibilizando os agentes políticos e financeiros que nelas se empenham. E recordamos-lhe alguns dos danos que aquelas medidas têm ultimamente causado à generalidade dos portugueses:
 – Dados do Instituto Nacional de Estatística, relativos ao primeiro trimestre de 2012, indicam que a média das remunerações pagas tiveram uma quebra de 6 por cento, relativamente ao mesmo período de 2011, devido à redução da remuneração média por trabalhador e à queda do emprego;
– O subsídio de desemprego e o subsídio social de desemprego passou de uma cobertura de 70,3 por cento, no 4º trimestre de 2009, para 47,4 por cento três anos depois. E não esquecendo que este é um apoio inalienável, dado que os trabalhadores já haviam descontado para ele nas suas remunerações mensais, recordamos que um desempregado com uma prestação média de 502 euros tem, a partir de 2012, um corte de 10 por cento ao fim de 6 meses, ao que se junta, com a aprovação do Orçamento de Estado de 2013, um novo corte permanente de 6 por cento. O valor daquele subsídio passa a ser de 425 euros, mensalmente;
– Em 2009, antes da aplicação das medidas de austeridade aprovadas pelos sucessivos Governos, o Abono de Família atingia perto de 1 milhão e oitocentas mil crianças e jovens. Em Outubro do ano passado, este número abrangia pouco mais de 1 milhão. Os governantes consideraram um luxo a referência de 5 salários mínimos para atribuição deste apoio social, restringindo-o agora às famílias cujos rendimentos mensais de referência não ultrapassem os 628 euros;
– Na área da Saúde, porque os cortes são tantos e tão significativos, particularmente nos meios auxiliares de diagnóstico, torna-se quase impossível enumerá-los. Recordamos somente que a despesa pública de Portugal por habitante é das mais baixas da média da União Europeia – 66 por cento da despesa total, no nosso país, enquanto a média da UE situa-se nos 75 por cento. Como exemplo, referimos que em Novembro de 2011 o aumento das taxas moderadoras afastou 1800 pessoas das urgências dos hospitais públicos. Talvez desconheça que o preço-base do recurso a uma consulta na urgência hospitalar passou de 9,60 euros para 20 euros. Entretanto, enquanto as últimas notícias dão conta de racionamento de medicamentos básicos em diversos hospitais públicos, como recentemente foi denunciado por estruturas do Hospital de Coimbra, o coordenador do Plano Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral de Saúde, Álvaro Carvalho, anota: "Temos cada vez mais informações sobre doentes que avisam que não vão comparecer às consultas por falta de dinheiro para o transporte”. E lembra aquele médico que privados de tratamento, os doentes mentais correm sérios riscos.

Uma longa lista de injustiças poderia ainda ser enumerada. Todavia, parece-nos importante sublinhar o seguinte: as alterações nos escalões de IRS, que significam um corte considerável nos ordenados e pensões de reforma, têm levado ao empobrecimento da maioria dos portugueses. Como exemplo, e não o mais gritante, referimos que um casal de reformados em que ambos recebem mensalmente 500 euros de pensão conseguia recuperar todo o IRS retido na fonte. Com as taxas em vigor para os rendimentos de 2012, e com o novo sistema de deduções à coleta, aquele casal irá pagar ainda mais 83 euros de IRS. Enquanto isto, este ano, 884 milhões de euros do Orçamento de Estado serão entregues às parcerias público-privadas, negócio efectuado por diversos Governos e nunca devidamente explicado, enquanto no BPN serão colocados mais de 4 mil milhões de euros, através de garantias bancárias e dos crescentes custos de reprivatização. Finalmente, os juros da chamada dívida pública – sobre cuja origem os cidadãos nunca foram corretamente informados por nenhum governante – irão custar aos portugueses 8,6 mil milhões de euros, cerca de 28 por cento do total da receita de IRS e dos impostos indiretos arrecadados em 2013. Recorde-se que este valor ultrapassa a despesa do Estado em Saúde e Educação…

A voz do sangue do teu irmão levanta-se da terra até mim…

A atual “crise”, não devidamente explicada e resultante de negócios nunca esclarecidos entre os dirigentes políticos e interesses financeiros privados – recordem-se as permanentes derrapagens orçamentais das obras encomendadas pelo Estado e a apetência revelada, mutuamente por políticos e empresas, pelo desenvolvimento das designadas parcerias público-privadas –, está a causar sofrimento a um incalculável número de famílias; um sofrimento impossível hoje de avaliar na sua verdadeira extensão, em resultado dos prejuízos materiais e humanos que acarreta. Para lhe possibilitar um melhor conhecimento da realidade, em Fevereiro passado, diariamente, 21 famílias deixaram de poder pagar empréstimos à banca…

“A crise que estamos a viver ou, melhor dizendo, a sofrer, tem por base os traços e as características da avidez, do enriquecimento fácil alicerçado na aposta e revestido pela pátina dourada da grande finança que, nos últimos anos, se originou e estruturou com rápido e grande sucesso. Um enriquecimento, de poucos, baseado na criação de riqueza imediata; centrado naquela lógica especulativa que leva ao ganho usando a Bolsa…”.
Estas palavras certeiras de Dionigi Tettamanzi remetem-nos para o texto bíblico citado. Na verdade, o cenário descrito pelo ex-arcebispo de Milão é que pode ser considerado um verdadeiro “Carnaval”, pelo que representa de uma luxúria financeira apenas ávida de lucros…

Não se trata de um manifesto contra os empresários que arriscam o investimento em favor do bem comum, mas tão-só um sublinhar que o fundamento das empresas reside naqueles que nelas entregam, quotidianamente, as suas vidas: os trabalhadores. Aliás, são sublimes as palavras do bispo Tettamanzi a propósito do dever ético dos investidores: “Ao dar prioridade absoluta ao capital sobre o trabalho, isto é, ao dinheiro em relação às pessoas, esta onda especulativa acaba por transformar as estruturas da economia e das finanças – que devem ser um instrumento ao serviço do bem-estar coletivo – num mecanismo de exploração de muitos para interesse da avidez de poucos, como demonstra o crescimento indiscriminado da desigualdade nos últimos decénios e o alargamento do fosso entre os pobres (cada vez mais pobres e mais numerosos) e os ricos (cada vez mais ricos e menos numerosos).”
Um modelo que o senhor, pelas palavras que proferiu no Clube dos Pensadores, parece desejar perpetuar… Nós, os subscritores desta carta, sabemos, porém, que um outro mundo é possível. E dele, nos diversos locais onde trabalhamos voluntariamente pelo bem comum, já vislumbramos pequenos sinais. Quase imperceptíveis, constituídos por gestos que, parecendo insignificantes, vão alterando localmente muitas sociedades e que, um dia, se hão-de tornar em decisões globais. Porque acreditamos que “a economia provém do homem e exige que permaneça ao seu serviço”, como recorda o bispo Dionigi Tettamanzi.

Finalmente, senhor Belmiro de Azevedo, já se imaginou a viver, mensalmente, com 485 euros? Este é o salário mínimo que o senhor parece ainda considerar exagerado…

Com consideração,

comunidade grão de mostarda – Emília Torres e Mário Robalo

Maria Isabel Tenreiro dos Santos Monteiro
António Schiappa Cabral
Rui Pedro Rodrigues Vasconcelos
Maria Adelaide Carvalho Miranda
Inês Nabais
Madalena Cruz
Cristina Fabião
Sérgio Gonçalves
Maria Eunice M. Alves
Maria de Lurdes França Rocha 
Maria Clara Ferreira Seabra Sá 
Paulo da Conceição Fernandes França
Luis Manuel Dias Coelho Soares Barbosa 
Abel Oliveira Magalhães
Sérgio Paulo da Cunha Cabaço
Ana Nunes
José Neves
Maria Conceição Rangel Silva
Maria de Fátima Silva Machado
Filomena Marcos
Rodolfo Sousa
Maria Paula Constantino
Célia Santiago
Gustavo Sousa
Rui Filipe Correia Santiago
Constantino Gonçalves Alves
Fernanda Antunes
Adérito Marcos
Isabel Maria Roque dos Santos
Carlos Manuel Simões Dinis Gomes
Manuel Pinto
Emília Alexandre
Neftali Ricardo Seabra Delgado 
Lia Seabra Delgado  
Diana de Vallescar
Rosa Soares Nunes
Fernando Paulo Morais Fabião
Duarte Miguel Barcelos Mendonça
Zulmira da Conceição Pinto Correia Antunes
Ana Cristina Rito Aço Martins 
António Campelo
Pedro Jorge Santos Freitas
Estela Pinto Ribeiro Lamas
Natalia Abel Fernández García
Victoriana Breogán López Udías 
Ana Vicente
Maria Rosalina Freitas
Jaime Freitas
Joaquim Póvoas Chambel
Valentim Gonçalves
Maria Fernanda Macedo Tavares
Carlos Maria Antunes
Teresa Rita Lopes
Bruno Alexandre Mareca Lopes
Filipa Maria Roncon de Vilhena e Silva

23 de março de 2013

(*) Dionigi Tettamanzi, ex-arcebispo de Milão (Itália), perante sinais evidentes de pobreza, resultantes do colapso financeiro, decidiu, em 2008, instituir na sua diocese um fundo de um milhão de euros destinados ao apoio a desempregados, cuja situação não lhes permitisse manter com dignidade a sua família. O fundo, proveniente de poupanças do próprio bispo, de capitais da diocese e do valor doado nas declarações de IRS para instituições de caridade da diocese, permanece activo, em resultado de uma solidariedade permanente.

Contacto:
graodemostardacomunidade@gmail.com

[Texto da carta enviada hoje, via CTT, pela Comunidade Grão de Mostarda]

2 comentários:

Lucy disse...

muito bom. obrigada

Anónimo disse...

Concordo plenamente!
Obrigada!
MRL