quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Fé, justiça e diálogo cultural e religioso, prioridades dos jesuítas para os próximos seis anos

Plano pastoral 2016-2022 apresentado esta quinta à noite, em Lisboa; e um perfil do actual provincial dos jesuítas, padre José Frazão Correia



Foto reproduzida da capa do plano apostólico 2016-2022 
dos jesuítas portugueses

O “serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo intercultural e inter-religioso, num contexto plural e crescentemente secularizado” são algumas das prioridades enunciadas pelos jesuítas portugueses, no seu plano apostólico para 2016-2022, que esta noite de quinta-feira será apresentado em Lisboa (Centro Social da Musgueira, na Rua Maria Margarida, 6, na Alta de Lisboa).
Apresentado no encontro da província portuguesa de 1 e 2 de Setembro último, e aprovado pelo anterior geral dos jesuítas, padre Adolfo Nicolás, o plano será apresentado pelo provincial português, padre José Frazão Correia, num debate com Isabel Figueiredo, produtora na Rádio Renascença.
No documento, os jesuítas afirmam continuar a dar uma atenção especial “à juventude e aos mais pobres”, ao mesmo tempo que desejam “estar mais atentos aos casais jovens e às famílias em dificuldade, ao acompanhamento espiritual do clero diocesano, concretamente através dos Exercícios Espirituais, e das pessoas que se colocam a questão vocacional”.
Na análise que fazem para chegar a estas opções, os jesuítas descrevem um contexto cultural “cada vez mais secularizado”, no qual “imagens e valores que remetiam para a tradição cristã vão deixando de ser quadro de referência comum”. E acrescentam: “A mundividência cristã é cada vez menos partilhada e tida como referência na compreensão da realidade e na configuração do espaço público. Vai-se desenhando, de facto, uma outra antropologia”.
O contexto eclesial, notam os jesuítas portugueses, é de agravamento das “dificuldades sérias na transmissão da fé” e que “a sua relevância vital não é imediatamente reconhecida, nem a cultura se revê espontaneamente na sua força inspiradora”. É notório, verificam ainda, “o embaraço e são reais as dificuldades das comunidades cristãs em enquadrar a crescente aceleração da realidade e de acompanhar ritmos diferentes de vida e de fé”.
Enquanto corpo apostólico, os jesuítas sentem a necessidade de “recuperar a força de traços de sempre e de lhes dar nova forma”. “A vida no Espírito será sempre o húmus elementar de uma vida humana e espiritualmente autêntica, alicerçada e centrada no conhecimento e na identificação com Cristo pobre e humilde, que procura a fecundidade apostólica segundo o Evangelho.” A vida em comum também precisa de ser renovada: “Por estar longe do que deve e pode ser, continua a pedir o melhor de cada um. Em relação ao passado, mesmo recente, irá passar, em vários casos, por estruturas comunitárias mais pequenas, que pedirão outros estilos de vida e outras dinâmicas de relação, de discernimento e de colaboração na missão.”

Apesar dos desafios e das limitações, os jesuítas escrevem, no seu plano apostólico, que o actual “contexto plural e crescentemente secularizado, com todas as suas qualidades e possibilidades, ambiguidades e desordens é, portanto, o tempo favorável para o anúncio do Evangelho – o tempo presente é sempre o tempo favorável”. E propõem “amar este nosso mundo como graça e campo de missão”, em três movimentos: “estar com”, traduzindo a “proximidade amorosa e misericordiosa” e um “olhar generoso e contemplativo para reconhecer como Deus age sempre; “ir contra”, significando o “distanciamento crítico”, a “liberdade interior e leitura profética da realidade à luz do Evangelho de Jesus”; e ainda o de “ir mais além”, vivendo “em contacto encarnado com a realidade, relendo continuamente a experiência como exercício de discernimento espiritual”.

A propósito da apresentação do novo plano apostólico, reproduzo a seguir um perfil do provincial da Companhia de Jesus, padre José Frazão Correia, publicado na revista Bíblica (número 361, de Novembro-Dezembro de 2015), que pode dar outras pistas para a compreensão deste novo plano, agora divulgado.

As portas abertas e a indiferença do provincial dos jesuítas


Padre José Frazão Correia, em Setembro de 2015, em Lisboa

Porta aberta, iluminação, indiferença, liberdade são palavras-chave no percurso do actual provincial dos jesuítas portugueses. E já veremos que indiferença é sinónimo de liberdade...

Pode um provincial dos jesuítas insistir sobre a importância da indiferença e, com isso, pôr em causa todas as obras que a Companhia tem? A indiferença é sinónimo de liberdade, diz o padre José Frazão Correia, 45 anos, provincial da Companhia de Jesus em Portugal. A ideia vem do Princípio e Fundamento, de Inácio de Loiola. Escrevia o fundador da Companhia de Jesus: «O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, a fim de ajudá-lo a alcançar o fim para que foi criado.»
Mesmo com a linguagem do século XVI, entende-se o que Inácio pretendia dizer. E continuava: «Donde se segue que há-de usar delas [das coisas] tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e há-de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornarmo-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduzir ao fim para que fomos criados.»

A liberdade que nos cabe desejar

Traduza-se então para o século XXI: «É essa liberdade que nos cabe desejar e que deveria permitir pôr em causa tudo o que se faz. Se não se tomar esse ponto de partida, isso vicia o exercício», diz o padre José Frazão.
Incluindo, por exemplo, a existência de alguns dos colégios? «No limite, sim. A liberdade é a base da vida religiosa e da fé em Jesus. Mesmo se nesses casos há contratos de trabalho e um quadro complexo que se deve ter em conta.»
Deixar algo que está mal deveria decorrer de si. Mas a liberdade deve ir mais longe: «Devemos ser capazes de deixar algo que está bem, para abraçar outra coisa que corresponda melhor à vontade de Deus.» A liberdade, veremos no decorrer desta conversa, é tema caro a alguém que, numa “iluminação”, viu uma porta aberta: nascido em Alqueidão da Serra (Porto de Mós), numa família católica, José Frazão entrou no seminário dos Missionários da Consolata aos 12 anos. Mas só aos 24 percebeu o que queria, quando fez os Exercícios Espirituais (EE) de Santo Inácio e eles «abriram uma porta ao desejo» de consagração e de presbiterado. «Percebi que tinha ali a resposta a muitas questões que eu não sabia como responder.»
Essas perguntas vinham de há muito. Quinto de sete irmãos (cinco rapazes, duas raparigas, todos os outros casados, o que já lhe “deu” 18 sobrinhos), o percurso de José Frazão fez-se desde a infância num catolicismo tradicional. Mas «com um toque de discernimento»: o pai, funcionário da Câmara, e a mãe, doméstica, integravam a Acção Católica e as Conferências de São Vicente de Paulo. Era um ambiente rural, actividades agrícolas além do emprego do pai, uma «vida austera» cujo custo se sentia, mas com responsabilidade. Rezava-se o terço à noite. «O ritmo era cadenciado»: o domingo, com a eucaristia, «interrompia o ritmo da semana para descansar; a presença de Deus marcava a própria vida.»
Apesar das formas tradicionais, havia «uma leitura cristã nada obscurantista». Foi nascendo aí a ideia vocacional. «Tenho memória de esse desejo estar presente», mesmo sem acontecimentos ou pessoas que a isso tenham ajudado. «Talvez pela introspecção ou pela consciência da presença de Deus, a possibilidade de ser padre esteve presente desde cedo.»
O percurso, depois, foi linear: entrou no seminário da Consolata aos 12 anos, por circunstâncias ocasionais. Foi a primeira porta que se abriu a esse desejo. Fez o noviciado e o primeiro ciclo de Teologia, chegou aos primeiros votos na congregação.
Aprofundou alguns elementos mas sentia que vestia uma camisa “apertada”. A última fase viveu-a em Roma, onde frequentara a Universidade Gregoriana. Regressou a Portugal e deu aulas de Educação Moral e Religiosa Católica. Foi nessa fase, a fazer EE, que se deu a iluminação. «Os Exercícios surgiram como o final de uma procura. Foi uma luz com um impacto forte, que me tornou claro o caminho que procurava e respondia a inquietações ainda não preenchidas.»

Da via estética à categoria de estilo

Outra porta se abre, então. Em 1995, José Frazão entra na Companhia de Jesus, faz o noviciado em Coimbra e a Filosofia em Braga, mais dois anos de magistério (acção pastoral), completa os estudos de Teologia, trabalha dois anos na pastoral universitária e lança-se ao doutoramento entre 2004-2010, de novo em Roma. Um tema e três autores estão no centro da reflexão: como compreender o acto de fé como profundamente humano? Dito de outro modo, trata-se de «entender as raízes antropológicas do acto de fé, para perceber o divórcio entre o acto de fé e a vida elementar de hoje.»
Nessa reflexão, José Frazão Correia socorreu-se de três autores contemporâneos. Pierangelo Sequeri explora uma via estética, com uma «ressonância afectiva», segundo a qual à verdade da fé se reconhece um sabor particular. Armido Rizzi, ex-jesuíta, opta por uma via ética e propõe que «a relação de Deus connosco nasce de um impacte exterior que tem uma repercussão ética: a verdade da fé não tem um sabor que me agrada mas é um apelo que me implica».
O terceiro é Christoph Theobald, que explora a categoria de estilo. Para este jesuíta alemão é preciso ter em conta a sociedade secularizada em que vivemos. Nesse sentido, diz José Frazão, ele propõe que «não basta recordar uma verdade; é necessário que ela seja corporizada em formas de vida comunitárias, com capacidade de estabelecer pontes e diálogo com outras verdades».
No livro A fé vive de afeto (ed. Paulinas), escreve o provincial dos jesuítas: «A transmissão da fé em Jesus a outros só poderá ter a forma de testemunho.» Mas o testemunho, comenta agora, é a «comunicação de uma verdade que depende da aceitação do outro». Exemplo: «Se eu amo uma pessoa, o meu amor é verdadeiro, mas ele só se realiza se o outro o reconhece. A experiência do amor vive da relação e do reconhecimento.»
O testemunho tem, assim, «a força e a fragilidade» de uma relação. «Por isso, o estilo de vida eclesial tem grande relevância. Mas o discurso eclesial ainda não reconhece suficientemente a dimensão comunitária: não basta que a comunidade seja santa. É preciso que a santidade seja capaz de questionar a vida dos outros, sendo força profética e inquietação.»

A crise da vida consagrada e a insegurança

A vida consagrada tem, aqui, um papel: «Ela vive, na Europa, uma crise assinalável; podemos maquilhar o rosto, mas isso encobre uma realidade que precisa de outras dinâmicas.» Deveria ser dado um passo atrás, de «grande liberdade ou indiferença», para responder à pergunta: «O que quer Deus, hoje, de nós para respondermos às pessoas?»
No livro Entre-tanto (ed. Paulinas), escreve: «A oportunidade de graça passará pela aceitação da insegurança das fronteiras como lugar privilegiado para a nossa fé em Jesus de Nazaré.»
O provincial dos jesuítas sente no Papa Francisco a liberdade que vem dessa atitude e da dinâmica do discernimento proposta pelos EE de Santo Inácio. «A fronteira é tudo menos um lugar romântico; é um lugar de exposição, inóspito, difícil, ambivalente, onde o discernimento é ainda mais necessário.»

A eleição do padre José Frazão como provincial interrompeu um caminho de investigação e docência universitária, que tinha começado. E no qual a Bíblia tem lugar de destaque: «A Escritura é também uma longa história da apreensão de Deus, desde figuras humanas complexas como Abraão, Moisés, David, Saul, Pedro ou Paulo. Ela não tem medo de dar nome à grandeza e à miséria do ser humano, porque é nessa complexidade que Deus se revela, até São João dizer que Deus é amor”.»

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