Plano pastoral 2016-2022 apresentado esta quinta à noite, em Lisboa; e um perfil do actual provincial dos jesuítas, padre José Frazão Correia
Foto reproduzida da capa do plano apostólico 2016-2022
dos jesuítas portugueses
O “serviço da fé, a promoção da
justiça e o diálogo intercultural e inter-religioso, num contexto plural e
crescentemente secularizado” são algumas das prioridades enunciadas pelos
jesuítas portugueses, no seu plano apostólico para 2016-2022, que esta noite de
quinta-feira será apresentado em Lisboa (Centro Social da Musgueira, na Rua
Maria Margarida, 6, na Alta de Lisboa).
Apresentado no encontro da província
portuguesa de 1 e 2 de Setembro último, e aprovado pelo anterior geral dos jesuítas, padre Adolfo Nicolás, o plano será apresentado pelo
provincial português, padre José Frazão Correia, num debate com Isabel Figueiredo,
produtora na Rádio Renascença.
No documento, os jesuítas afirmam
continuar a dar uma atenção especial “à juventude e aos mais pobres”, ao mesmo
tempo que desejam “estar mais atentos aos casais jovens e às famílias em dificuldade,
ao acompanhamento espiritual do clero diocesano, concretamente através dos
Exercícios Espirituais, e das pessoas que se colocam a questão vocacional”.
Na análise que fazem para chegar a
estas opções, os jesuítas descrevem um contexto cultural “cada vez mais
secularizado”, no qual “imagens e valores que remetiam para a tradição cristã
vão deixando de ser quadro de referência comum”. E acrescentam: “A
mundividência cristã é cada vez menos partilhada e tida como referência na
compreensão da realidade e na configuração do espaço público. Vai-se
desenhando, de facto, uma outra antropologia”.
O contexto eclesial, notam os
jesuítas portugueses, é de agravamento das “dificuldades sérias na transmissão
da fé” e que “a sua relevância vital não é imediatamente reconhecida, nem a
cultura se revê espontaneamente na sua força inspiradora”. É notório, verificam
ainda, “o embaraço e são reais as dificuldades das comunidades cristãs em
enquadrar a crescente aceleração da realidade e de acompanhar ritmos diferentes
de vida e de fé”.
Enquanto corpo apostólico, os
jesuítas sentem a necessidade de “recuperar a força de traços de sempre e de
lhes dar nova forma”. “A vida no Espírito será sempre o húmus elementar de uma
vida humana e espiritualmente autêntica, alicerçada e centrada no conhecimento
e na identificação com Cristo pobre e humilde, que procura a fecundidade apostólica
segundo o Evangelho.” A vida em comum também precisa de ser renovada: “Por
estar longe do que deve e pode ser, continua a pedir o melhor de cada um. Em
relação ao passado, mesmo recente, irá passar, em vários casos, por estruturas
comunitárias mais pequenas, que pedirão outros estilos de vida e outras
dinâmicas de relação, de discernimento e de colaboração na missão.”
Apesar dos desafios e das
limitações, os jesuítas escrevem, no seu plano apostólico, que o actual
“contexto plural e crescentemente secularizado, com todas as suas qualidades e
possibilidades, ambiguidades e desordens é, portanto, o tempo favorável para o
anúncio do Evangelho – o tempo presente é sempre o tempo favorável”. E propõem
“amar este nosso mundo como graça e campo de missão”, em três movimentos:
“estar com”, traduzindo a “proximidade amorosa e misericordiosa” e um “olhar
generoso e contemplativo para reconhecer como Deus age sempre; “ir contra”,
significando o “distanciamento crítico”, a “liberdade interior e leitura
profética da realidade à luz do Evangelho de Jesus”; e ainda o de “ir mais além”,
vivendo “em contacto encarnado com a realidade, relendo continuamente a experiência
como exercício de discernimento espiritual”.
A propósito da apresentação do novo plano apostólico, reproduzo a
seguir um perfil do provincial da Companhia de Jesus, padre José Frazão Correia,
publicado na revista Bíblica (número 361, de Novembro-Dezembro de 2015), que
pode dar outras pistas para a compreensão deste novo plano, agora divulgado.
As portas abertas e a indiferença do provincial dos jesuítas
Padre José Frazão Correia, em Setembro de 2015, em Lisboa
Porta aberta, iluminação,
indiferença, liberdade são palavras-chave no percurso do actual provincial dos
jesuítas portugueses. E já veremos que indiferença é sinónimo de liberdade...
Pode um provincial dos jesuítas
insistir sobre a importância da indiferença e, com isso, pôr em causa todas as
obras que a Companhia tem? A indiferença é sinónimo de liberdade, diz o padre
José Frazão Correia, 45 anos, provincial da Companhia de Jesus em Portugal. A
ideia vem do Princípio e Fundamento,
de Inácio de Loiola. Escrevia o fundador da Companhia de Jesus: «O homem é
criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a
sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, a
fim de ajudá-lo a alcançar o fim para que foi criado.»
Mesmo com a linguagem do século
XVI, entende-se o que Inácio pretendia dizer. E continuava: «Donde se segue que
há-de usar delas [das coisas] tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e
há-de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário
tornarmo-nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo
que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal
maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que
pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o
mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduzir ao fim para que
fomos criados.»
A liberdade que nos cabe desejar
Traduza-se então para o século
XXI: «É essa liberdade que nos cabe desejar e que deveria permitir pôr em causa
tudo o que se faz. Se não se tomar esse ponto de partida, isso vicia o
exercício», diz o padre José Frazão.
Incluindo, por exemplo, a
existência de alguns dos colégios? «No limite, sim. A liberdade é a base da
vida religiosa e da fé em Jesus. Mesmo se nesses casos há contratos de trabalho
e um quadro complexo que se deve ter em conta.»
Deixar algo que está mal deveria
decorrer de si. Mas a liberdade deve ir mais longe: «Devemos ser capazes de
deixar algo que está bem, para abraçar outra coisa que corresponda melhor à
vontade de Deus.» A liberdade, veremos no decorrer desta conversa, é tema caro
a alguém que, numa “iluminação”, viu uma porta aberta: nascido em Alqueidão da
Serra (Porto de Mós), numa família católica, José Frazão entrou no seminário
dos Missionários da Consolata aos 12 anos. Mas só aos 24 percebeu o que queria,
quando fez os Exercícios Espirituais (EE) de Santo Inácio e eles «abriram uma
porta ao desejo» de consagração e de presbiterado. «Percebi que tinha ali a
resposta a muitas questões que eu não sabia como responder.»
Essas perguntas vinham de há
muito. Quinto de sete irmãos (cinco rapazes, duas raparigas, todos os outros
casados, o que já lhe “deu” 18 sobrinhos), o percurso de José Frazão fez-se desde
a infância num catolicismo tradicional. Mas «com um toque de discernimento»: o
pai, funcionário da Câmara, e a mãe, doméstica, integravam a Acção Católica e
as Conferências de São Vicente de Paulo. Era um ambiente rural, actividades
agrícolas além do emprego do pai, uma «vida austera» cujo custo se sentia, mas
com responsabilidade. Rezava-se o terço à noite. «O ritmo era cadenciado»: o
domingo, com a eucaristia, «interrompia o ritmo da semana para descansar; a
presença de Deus marcava a própria vida.»
Apesar das formas tradicionais,
havia «uma leitura cristã nada obscurantista». Foi nascendo aí a ideia vocacional.
«Tenho memória de esse desejo estar presente», mesmo sem acontecimentos ou
pessoas que a isso tenham ajudado. «Talvez pela introspecção ou pela
consciência da presença de Deus, a possibilidade de ser padre esteve presente
desde cedo.»
O percurso, depois, foi linear:
entrou no seminário da Consolata aos 12 anos, por circunstâncias ocasionais.
Foi a primeira porta que se abriu a esse desejo. Fez o noviciado e o primeiro
ciclo de Teologia, chegou aos primeiros votos na congregação.
Aprofundou alguns elementos mas
sentia que vestia uma camisa “apertada”. A última fase viveu-a em Roma, onde
frequentara a Universidade Gregoriana. Regressou a Portugal e deu aulas de
Educação Moral e Religiosa Católica. Foi nessa fase, a fazer EE, que se deu a
iluminação. «Os Exercícios surgiram como o final de uma procura. Foi uma luz
com um impacto forte, que me tornou claro o caminho que procurava e respondia a
inquietações ainda não preenchidas.»
Da via estética à categoria de estilo
Outra porta se abre, então. Em
1995, José Frazão entra na Companhia de Jesus, faz o noviciado em Coimbra e a
Filosofia em Braga, mais dois anos de magistério (acção pastoral), completa os
estudos de Teologia, trabalha dois anos na pastoral universitária e lança-se ao
doutoramento entre 2004-2010, de novo em Roma. Um tema e três autores estão no
centro da reflexão: como compreender o acto de fé como profundamente humano?
Dito de outro modo, trata-se de «entender as raízes antropológicas do acto de
fé, para perceber o divórcio entre o acto de fé e a vida elementar de hoje.»
Nessa reflexão, José Frazão
Correia socorreu-se de três autores contemporâneos. Pierangelo Sequeri explora
uma via estética, com uma «ressonância afectiva», segundo a qual à verdade da
fé se reconhece um sabor particular. Armido Rizzi, ex-jesuíta, opta por uma via
ética e propõe que «a relação de Deus connosco nasce de um impacte exterior que
tem uma repercussão ética: a verdade da fé não tem um sabor que me agrada mas é
um apelo que me implica».
O terceiro é Christoph Theobald,
que explora a categoria de estilo. Para este jesuíta alemão é preciso ter em
conta a sociedade secularizada em que vivemos. Nesse sentido, diz José Frazão,
ele propõe que «não basta recordar uma verdade; é necessário que ela seja
corporizada em formas de vida comunitárias, com capacidade de estabelecer pontes
e diálogo com outras verdades».
No livro A fé vive de afeto (ed.
Paulinas), escreve o provincial dos jesuítas: «A transmissão da fé em Jesus a
outros só poderá ter a forma de testemunho.» Mas o testemunho, comenta agora, é
a «comunicação de uma verdade que depende da aceitação do outro». Exemplo: «Se
eu amo uma pessoa, o meu amor é verdadeiro, mas ele só se realiza se o outro o
reconhece. A experiência do amor vive da relação e do reconhecimento.»
O testemunho tem, assim, «a força
e a fragilidade» de uma relação. «Por isso, o estilo de vida eclesial tem
grande relevância. Mas o discurso eclesial ainda não reconhece suficientemente
a dimensão comunitária: não basta que a comunidade seja santa. É preciso que a
santidade seja capaz de questionar a vida dos outros, sendo força profética e
inquietação.»
A crise da vida consagrada e a insegurança
A vida consagrada tem, aqui, um
papel: «Ela vive, na Europa, uma crise assinalável; podemos maquilhar o rosto,
mas isso encobre uma realidade que precisa de outras dinâmicas.» Deveria ser
dado um passo atrás, de «grande liberdade ou indiferença», para responder à pergunta:
«O que quer Deus, hoje, de nós para respondermos às pessoas?»
No livro Entre-tanto (ed.
Paulinas), escreve: «A oportunidade de graça passará pela aceitação da
insegurança das fronteiras como lugar privilegiado para a nossa fé em Jesus de
Nazaré.»
O provincial dos jesuítas sente no
Papa Francisco a liberdade que vem dessa atitude e da dinâmica do discernimento
proposta pelos EE de Santo Inácio. «A fronteira é tudo menos um lugar romântico;
é um lugar de exposição, inóspito, difícil, ambivalente, onde o discernimento é
ainda mais necessário.»
A eleição do padre José Frazão
como provincial interrompeu um caminho de investigação e docência
universitária, que tinha começado. E no qual a Bíblia tem lugar de destaque: «A
Escritura é também uma longa história da apreensão de Deus, desde figuras
humanas complexas como Abraão, Moisés, David, Saul, Pedro ou Paulo. Ela não tem
medo de dar nome à grandeza e à miséria do ser humano, porque é nessa complexidade
que Deus se revela, até São João dizer que Deus é amor”.»
Publicação anterior no blogue:
Deus, Religiões, (In)Felicidade - as perguntas que andam pelas ruas - sobre o novo livro de Anselmo Borges
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