domingo, 13 de novembro de 2016

Alfredo Bruto da Costa (1938-2016): o sonho de um mundo sem pobreza

In memoriam


Alfredo Bruto da Costa, a 5 de Março de 2016, no Porto, 
durante a Sessão de Estudos do Metanoia - Movimento Católico de Profissionais, 
dedicada ao tema Com misericórdia, novos estilos de vida (foto António José Paulino)

No momento da sua morte, dele se disse que alimentou sempre o sonho de um mundo sem pobreza, que não se conformou nunca com a pobreza estrutural, que aliou o desafio da sua fé cristã à “intervenção marcada pela caridade, pela acção social junto dos mais pobres” e pela “prática da justiça”. Alfredo Bruto da Costa, profundo conhecedor da Bíblia e do pensamento social católico, morreu sexta-feira em Lisboa, depois de vários meses de luta contra um cancro. O seu funeral decorreu este sábado, dia 12 de Novembro. 
Seja-me permitida uma evocação pessoal: não me recordo já quando ouvi Alfredo Bruto da Costa pela primeira vez. Mas talvez tenha sido a falar sobre a Laborem Exercens, a encíclica do Papa João Paulo sobre o trabalho humano (1981). E, perante o texto de um Papa que tantas vezes era criticado pelas suas rígidas posições no campo da moral pessoal, Bruto da Costa não tinha dúvidas sobre as prioridades enunciadas há décadas pelo pensamento social católico e confirmadas pelo Papa polaco naquele documento e em outros pronunciamentos de carácter social: prioridade da pessoa e do trabalho sobre o capital, do bem comum sobre a propriedade privada, do serviço aos mais pobres sobre os privilégios de quem tudo tem, da justiça sobre a finança e a economia... Ou seja, o sonho de um mundo sem pobreza.
Há pouco menos de dois anos, na sua despedida de presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Alfredo Bruto da Costa quis convidar-me para fazer o comentário final à conferência anual que a comissão organizava e que nesse ano teve, a abrir, uma intervenção do cardeal Rodriguez Maradiaga. Na ocasião, fiz questão de agradecer, em público, a sua dedicação de há muitos anos ao estudo sério e à reflexão sobre o pensamento social da Igreja e sobre as consequências sociais e políticas do Evangelho. Com ele, aprendi muito, com ele muitos cristãos portugueses aprenderam muito. Em Portugal, Alfredo Bruto da Costa era, com o José Dias da Silva e Manuela Silva, uma das pessoas que mais sabia sobre o tema e que mais se empenhava no seu estudo, na sua divulgação e no seu aprofundamento.
A Igreja Católica deve muito, em Portugal, a Alfredo Bruto da Costa. Mas também o país, tendo em conta não só os cargos públicos que desempenhou, sempre com a preocupação do bem comum (desde ministro dos Assuntos Sociais no Governo liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo até ao de presidente do Conselho Económico e Social), mas sobretudo pelo pioneirismo dos estudos sobre a exclusão social, que liderou com Manuela Silva. Um dos seus últimos compromissos foi a elaboração da Estratégia Nacional de Erradicação da Pobreza: “Nós sabemos quem são os pobres em Portugal”, disse, na apresentação pública do roteiro, em Setembro de 2015, como recorda o Público aqui.
 “O problema é termos procurado combater a pobreza sobretudo de forma pontual. Pontual e dispersa”, sintetizou, ao convidar a “aderir a um compromisso para uma estratégia nacional de combate à pobreza”, que desse consistência a uma acção que visasse “não apenas reduzir o sofrimento do pobre, o que é certamente necessário, mas também ajudá-lo a libertar-se da pobreza”.
Por todas estas razões, era de esperar que estivesse ainda mais gente no momento da despedida, a dizer-lhe a sua gratidão.

Um problema de políticas económicas

Alfredo Bruto da Costa nasceu em Goa, na então colónia portuguesa na Índia, em 1938. Veio estudar para o Instituto Superior Técnico, em Lisboa, em 1957, onde se licenciou em Engenharia. Rapidamente, no entanto, enveredou por outros campos do saber, acabando por se doutorar em Sociologia, no Reino Unido, precisamente com uma teses sobre a pobreza em Portugal.
Era, por isso, um engenheiro que queria ver erradicada a pobreza, como recorda o DN.
Uma das características das suas intervenções era a do profundo rigor que colocava na linguagem: “Chamo pobreza a uma situação de privação por falta de recursos. Privação é alguém não ter as suas necessidades básicas satisfeitas, por não ter recursos ou por outras razões, por ser toxicómano, por exemplo, ou por não saber gerir os seus bens”, dizia ele, numa entrevista que lhe fiz, em Junho de 2007. “Ora, as soluções para estes dois casos são completamente diferentes. Num, é preciso ajudar a pessoa a ter recursos, no outro, é preciso ajudar a gerir os recursos que tem. A privação precisa de uma resposta imediata. Não se pode dizer a uma pessoa que tem fome: ‘tire um curso de formação profissional, arranje um emprego e depois coma’...”, acrescentava (alguns excertos dessa entrevista podem ser lidos aqui). 
Defendia a necessidade de dar autonomia às pessoas vitimadas pela exclusão da pobreza, alertava para o facto de muitas das pessoas que vivem em situação de privação terem emprego – consequentemente, os baixos salários e a repartição primária dos rendimentos são um dos factores que levam à pobreza – e recordava que a pobreza económica é, “antes de mais, um problema de políticas económicas”. E acrescentava: “Que caminho tem seguido a política económica que leva a que existam 40 por cento de pobres que têm trabalho? Ou decidimos que vamos crescer primeiro para distribuir depois, ou das várias maneiras de crescer escolhemos a que assegura o crescimento com uma melhor distribuição. Tem-se provado que a primeira não acontece. Há décadas que se espera o dia em que já crescemos o suficiente para distribuir.”
O mesmo rigor da sua análise levava-o a considerar que, além da estratégia sobretudo “assistencialista” que o Estado, a Igreja e as instituições de solidariedade têm tido, é importante fazer muito mais e muito melhor. Colocava também o foco na democratização das empresas e na formação dos empresários, como recordava noutra entrevista, em Maio de 2008: “Mas pode-se subir os salários sem aumentar a produtividade? Todos dizem que a economia portuguesa não pode continuar com salários baixos. O que se diz a seguir é que os salários não podem aumentar sem aumentar a produtividade. Uma das causas de baixa produtividade é a baixa qualificação dos trabalhadores, mas isso só explica uma parte muito pequena. Há muitas outras: a organização da empresa, os métodos de gestão. Há uns anos, se se dissesse que também os empresários tinham baixas qualificações, seria quase um escândalo. Hoje, é uma realidade que entra pelos olhos dentro.”

Um mundo sem pobreza

Alfredo Bruto da Costa sonhava com um mundo sem pobreza, recordava o presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio Fonseca, ao fazer a memória do ex-presidente da CNJP: “Foi à nossa frente um amigo, um professor, um sonhador que nunca perdeu a esperança de viver num mundo sem pobreza. A melhor gratidão que a Cáritas lhe pode prestar e a todos seus familiares, que muitas vezes aceitaram ser privados da sua companhia para nos tornar humanamente mais ricos e a sociedade menos pobre, é dar continuidade ao seu legado”
A actual Comissão Nacional Justiça e Paz, presidida por Pedro Vaz Patto, também recordou o anterior presidente como um inconformado: “Alfredo Bruto da Costa permanece para todos nós como modelo de dedicação sem limites às causas da justiça e da paz. Movia-o o amor preferencial pelos pobres que decorre da fidelidade ao Evangelho. Esse amor levou-o a estudar as causas estruturais da pobreza, com as quais nunca se conformou.”
Na eucaristia de acção de graças pela vida de Alfredo Bruto da Costa, onde estiveram o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e o ministro da Solidariedade, Vieira da Silva, o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, referiu Bruto da Costa como alguém para quem anunciar “a Boa Nova aos pobres era a inquietação constante”.
No final da mesma celebração, o padre Vítor Feytor Pinto acrescentou: “Alfredo Bruto da Costa somou o desafio da fé à intervenção marcada pela caridade, pela acção social junto dos mais pobres”, “deu a vida pelo serviço aos pobres com uma intenção imensa de mudar a sociedade, no que passasse pela sua capacidade de intervenção” e sonhava com uma “sociedade em que todos sejam suficientemente iguais”, marcada pela “distribuindo os bens disponíveis" e pela “prática da justiça”.

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