In memoriam
Alfredo Bruto da Costa, a 5 de Março de 2016, no Porto,
durante a Sessão de Estudos do Metanoia - Movimento Católico de Profissionais,
dedicada ao tema Com misericórdia, novos estilos de vida (foto António José Paulino)
No momento da sua morte, dele se
disse que alimentou sempre o sonho de um mundo sem pobreza, que não se
conformou nunca com a pobreza estrutural, que aliou o desafio da sua fé cristã à “intervenção
marcada pela caridade, pela acção social junto dos mais pobres” e pela “prática
da justiça”. Alfredo Bruto da Costa, profundo conhecedor da Bíblia e do
pensamento social católico, morreu sexta-feira em Lisboa, depois de vários
meses de luta contra um cancro. O seu funeral decorreu este sábado, dia 12 de
Novembro.
Seja-me permitida uma evocação
pessoal: não me recordo já quando ouvi Alfredo Bruto da Costa pela primeira
vez. Mas talvez tenha sido a falar sobre a Laborem
Exercens, a encíclica do Papa João Paulo sobre o trabalho humano (1981). E,
perante o texto de um Papa que tantas vezes era criticado pelas suas rígidas
posições no campo da moral pessoal, Bruto da Costa não tinha dúvidas sobre as
prioridades enunciadas há décadas pelo pensamento social católico e confirmadas
pelo Papa polaco naquele documento e em outros pronunciamentos de carácter
social: prioridade da pessoa e do trabalho sobre o capital, do bem comum sobre
a propriedade privada, do serviço aos mais pobres sobre os privilégios de quem
tudo tem, da justiça sobre a finança e a economia... Ou seja, o sonho de um
mundo sem pobreza.
Há pouco menos de dois anos, na
sua despedida de presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Alfredo
Bruto da Costa quis convidar-me para fazer o comentário final à conferência
anual que a comissão organizava e que nesse ano teve, a abrir, uma intervenção
do cardeal Rodriguez Maradiaga. Na ocasião, fiz questão de agradecer, em
público, a sua dedicação de há muitos anos ao estudo sério e à reflexão sobre o
pensamento social da Igreja e sobre as consequências sociais e políticas do
Evangelho. Com ele, aprendi muito, com ele muitos cristãos portugueses
aprenderam muito. Em Portugal, Alfredo Bruto da Costa era, com o José Dias da Silva e Manuela Silva, uma das pessoas
que mais sabia sobre o tema e que mais se empenhava no seu estudo, na sua
divulgação e no seu aprofundamento.
A Igreja Católica deve muito, em
Portugal, a Alfredo Bruto da Costa. Mas também o país, tendo em conta não só os
cargos públicos que desempenhou, sempre com a preocupação do bem comum (desde
ministro dos Assuntos Sociais no Governo liderado por Maria de Lourdes
Pintasilgo até ao de presidente do Conselho Económico e Social), mas sobretudo
pelo pioneirismo dos estudos sobre a exclusão social, que liderou com Manuela
Silva. Um dos seus últimos compromissos foi a elaboração da Estratégia Nacional
de Erradicação da Pobreza: “Nós sabemos quem são os pobres em Portugal”, disse,
na apresentação pública do roteiro, em Setembro de 2015, como recorda o Público
aqui.
“O problema é termos procurado combater a
pobreza sobretudo de forma pontual. Pontual e dispersa”, sintetizou, ao
convidar a “aderir a um compromisso para uma estratégia nacional de combate à
pobreza”, que desse consistência a uma acção que visasse “não apenas reduzir o
sofrimento do pobre, o que é certamente necessário, mas também ajudá-lo a
libertar-se da pobreza”.
Por todas estas razões, era de
esperar que estivesse ainda mais gente no momento da despedida, a dizer-lhe a
sua gratidão.
Um problema de políticas económicas
Alfredo Bruto da Costa nasceu em
Goa, na então colónia portuguesa na Índia, em 1938. Veio estudar para o
Instituto Superior Técnico, em Lisboa, em 1957, onde se licenciou em Engenharia.
Rapidamente, no entanto, enveredou por outros campos do saber, acabando por se
doutorar em Sociologia, no Reino Unido, precisamente com uma teses sobre a
pobreza em Portugal.
Era, por isso, um engenheiro que
queria ver erradicada a pobreza, como recorda o DN.
Uma das características das suas
intervenções era a do profundo rigor que colocava na linguagem: “Chamo pobreza
a uma situação de privação por falta de recursos. Privação é alguém não ter as
suas necessidades básicas satisfeitas, por não ter recursos ou por outras
razões, por ser toxicómano, por exemplo, ou por não saber gerir os seus bens”,
dizia ele, numa entrevista que lhe fiz, em Junho de 2007. “Ora, as soluções
para estes dois casos são completamente diferentes. Num, é preciso ajudar a
pessoa a ter recursos, no outro, é preciso ajudar a gerir os recursos que tem.
A privação precisa de uma resposta imediata. Não se pode dizer a uma pessoa que
tem fome: ‘tire um curso de formação profissional, arranje um emprego e depois
coma’...”, acrescentava (alguns excertos dessa entrevista podem ser lidos aqui).
Defendia a necessidade de dar autonomia
às pessoas vitimadas pela exclusão da pobreza, alertava para o facto de muitas
das pessoas que vivem em situação de privação terem emprego – consequentemente,
os baixos salários e a repartição primária dos rendimentos são um dos factores
que levam à pobreza – e recordava que a pobreza económica é, “antes de mais, um
problema de políticas económicas”. E acrescentava: “Que caminho tem seguido a
política económica que leva a que existam 40 por cento de pobres que têm
trabalho? Ou decidimos que vamos crescer primeiro para distribuir depois, ou
das várias maneiras de crescer escolhemos a que assegura o crescimento com uma
melhor distribuição. Tem-se provado que a primeira não acontece. Há décadas que
se espera o dia em que já crescemos o suficiente para distribuir.”
O mesmo rigor da sua análise
levava-o a considerar que, além da estratégia sobretudo “assistencialista” que
o Estado, a Igreja e as instituições de solidariedade têm tido, é importante
fazer muito mais e muito melhor. Colocava também o foco na democratização das
empresas e na formação dos empresários, como recordava noutra entrevista, em
Maio de 2008: “Mas pode-se subir os salários sem aumentar a produtividade?
Todos dizem que a economia portuguesa não pode continuar com salários baixos. O
que se diz a seguir é que os salários não podem aumentar sem aumentar a
produtividade. Uma das causas de baixa produtividade é a baixa qualificação dos
trabalhadores, mas isso só explica uma parte muito pequena. Há muitas
outras: a organização da empresa, os métodos de gestão. Há uns anos, se se
dissesse que também os empresários tinham baixas qualificações, seria quase um
escândalo. Hoje, é uma realidade que entra pelos olhos dentro.”
Um mundo sem pobreza
Alfredo Bruto da Costa sonhava com
um mundo sem pobreza, recordava o presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio
Fonseca, ao fazer a memória do ex-presidente da CNJP: “Foi à nossa frente um
amigo, um professor, um sonhador que nunca perdeu a esperança de viver num
mundo sem pobreza. A melhor gratidão que a Cáritas lhe pode prestar e a todos
seus familiares, que muitas vezes aceitaram ser privados da sua companhia para
nos tornar humanamente mais ricos e a sociedade menos pobre, é dar continuidade
ao seu legado”
A actual Comissão Nacional Justiça
e Paz, presidida por Pedro Vaz Patto, também recordou o anterior presidente
como um inconformado: “Alfredo Bruto da Costa permanece para todos nós como
modelo de dedicação sem limites às causas da justiça e da paz. Movia-o o amor
preferencial pelos pobres que decorre da fidelidade ao Evangelho. Esse amor
levou-o a estudar as causas estruturais da pobreza, com as quais nunca se
conformou.”
Na eucaristia de acção de graças
pela vida de Alfredo Bruto da Costa, onde estiveram o presidente da Assembleia
da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e o ministro da Solidariedade, Vieira da
Silva, o patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, referiu Bruto da Costa como
alguém para quem anunciar “a Boa Nova aos pobres era a inquietação constante”.
No final da mesma celebração, o
padre Vítor Feytor Pinto acrescentou: “Alfredo Bruto da Costa somou o desafio
da fé à intervenção marcada pela caridade, pela acção social junto dos mais
pobres”, “deu a vida pelo serviço aos pobres com uma intenção imensa de mudar a
sociedade, no que passasse pela sua capacidade de intervenção” e sonhava com
uma “sociedade em que todos sejam suficientemente iguais”, marcada pela
“distribuindo os bens disponíveis" e pela “prática da justiça”.
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