Duas intervenções de Alfredo Bruto
da Costa
“O último fundamento da igualdade
encontra-se na fé cristã”, dizia, em Junho de 2010, Alfredo Bruto da Costa,
então presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, que morreu sexta-feira em
Lisboa. Falando na Jornada de Pastoral da
Cultura, dedicada ao tema Elogio da Igualdade, Bruto da Costa contava a
história de um pintor que se lhe dirigia tratando-o por “senhor engenheiro”.
“Algo está errado entre nós”, disse ele ao pintor: “Ou o senhor me trata por
Alfredo ou eu o trato por senhor pintor.” O senhor António, tal era o nome do
pintor, perguntou-lhe então “Até onde é que posso ir?”
Quando um homem pergunta a outro
homem “até onde é que posso ir” na relação entre ambos, “essa é uma pergunta
obscena que dava para um doutoramento”, dizia Alfredo Bruto da Costa,
defendendo que “o último fundamento da igualdade” se encontra na fé cristã e no
texto bíblico do Génesis: “Todos somos iguais perante Deus – e não há diferença
nenhuma que possa reduzir o sentido profundo desta igualdade.” E, referindo-se
aos princípios da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade –
acrescentava: “Somos livres, antes de mais ou além do mais, para afirmar a
nossa igualdade. Qualquer coisa corre mal nos três princípios se não formos
suficientemente fundo na compreensão da própria igualdade.”
Oito minutos com excertos dessa
intervenção podem ser vistos neste vídeo (entre 1’10” e 9’25”):
A 5 de Março passado, falando na
Sessão de Estudos do Metanoia – Movimento Católico de Profissionais, naquela
que terá sido uma das suas últimas intervenções públicas, Alfredo Bruto da
Costa aprofundou o tema Com misericórdia,
novos estilos de vida. O seu carácter de investigador social pioneiro nos
estudos sobre a exclusão em Portugal e a sua carreira pública de serviço ao bem
comum, fundavam-se na sua fé cristã e nos seus profundos conhecimento e adesão
à Bíblia e ao pensamento social cristão, desde os teólogos dos primeiros
séculos do cristianismo até à doutrina social católica contemporânea. Este
texto revela exactamente esse outro lado de alguém que fazia da Bíblia e do
Evangelho a força da sua vida. Reproduz-se a seguir essa intervenção, na versão
final corrigida e formatada pelo próprio:
Com misericórdia, novos estilos de vida
Agradeço o convite para falar
neste encontro do Metanoia.
Devo anunciar que não tenho
qualquer qualificação para falar da Misericórdia. Aceitei o convite no
pressuposto de que os que me convidaram admitem que eu tenha alguma coisa de
útil a dizer. É confiado neles que aqui estou.
Peço, pois, que me ouçam com
redobrado espírito crítico.
***
Pareceu-me que poderia ter
interesse para vós refletir no tema da Misericórdia em três pontos:
a) a importância da misericórdia
na mensagem evangélica e na espiritualidade cristã;
b) como devemos entender hoje as
exigências da Misericórdia, designadamente as chamadas «obras da misericórdia»;
c) o grau de transformação
individual e comunitária que a Misericórdia recomenda. Designadamente, se será
um problema de pequenos acertos ou, como se diz no título deste encontro, serão
necessários «novos estilos de vida».
A IMPORTÂNCIA DA MISERICÓRDIA NA MENSAGEM CRISTÃ
Creio que todos nós ouvimos falar,
desde criança, da Misericórdia de Deus. «Deus é misericordioso» é uma expressão
que certamente nos é familiar. A questão que se coloca é a da noção que
tínhamos da Misericórdia de Deus e como a entendemos no conjunto dos atributos
de Deus. Deus é justiça, é amor, é omnipotente, etc. É também misericórdia. Como
conciliar todos estes atributos de Deus?
Vou socorrer-me do livro do Cardeal Walter Kasper, que é teólogo,
para situar o problema. Faço-o de forma esquemática.
- a misericórdia, que é tão
fundamental na Bíblia, ou caiu
largamente no esquecimento na teologia sistemática, ou é tratada apenas de uma
forma muito pouco cuidada. (…) [A] espiritualidade e a mística vão muito
adiante da teologia académica. (p. 7)
- se não somos capazes de anunciar
de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de
aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus.(p. 15)
- Depois das terríveis
experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão
sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do
que nunca. (p. 15)
- A misericórdia é uma dimensão
importante do pontificado do Papa Francisco. Já era preocupação quando ainda
era Bispo de Buenos Aires. Mas o Papa situa-se numa sucessão de papas que se
ocuparam do assunto: João XXIII (nos
seus escritos e no discurso de abertura do Concílio Vaticano II), João Paulo II (designadamente na
encíclica Dives in Misericordia, Bento XVI também valorizou o tema, além
do mais, na encíclica Caritas in Veritate.
(pp. 15-19)
- É necessário repensar do
princípio ao fim a doutrina sobre os atributos
de Deus, concedendo à misericórdia divina o lugar que lhe pertence. (p. 21)
- Como disse, um dos problemas que
tem dificultado o desenvolvimento da teologia da misericórdia parece ser o da
compatibilização dos diversos atributos
de Deus, designadamente a misericórdia
com a justiça de Deus. A este
respeito, diz Walter Kasper: “A misericórdia deve ser entendida como a
própria justiça de Deus, como a sua santidade” (p. 25)
A MISERICÓRDIA DE DEUS E NÓS
Na Mensagem para esta Quaresma que
estamos a viver, texto cuja meditação recomendo muito vivamente, o Papa
começa por convidar a Igreja a viver esta Quaresma mais intensamente “como tempo forte para celebrar e
experimentar a misericórdia de Deus”.
Vale a pena notar: celebrar e experimentar.
O Papa Francisco tem frases muito
fortes para tornar claro que em Deus, a misericórdia não é um atributo secundário.
Vejamos.
“A misericórdia, diz, (…) é o
primeiro atributo de Deus”. (1)
Já Bento XVI tinha afirmado que “A Misericórdia é na realidade o núcleo
central da mensagem evangélica”, acrescentando: “é o nome de Deus”. (2)
Como sabemos isso?
O Papa Francisco nota que “O mistério da misericórdia
divina desvenda-se no decurso da história da aliança entre Deus e o seu povo
Israel”. O Papa apresenta o drama
da infidelidade de Israel como um drama de amor, e conclui dizendo que este
drama de amor “alcança o seu ápice no
Filho feito homem. N’Ele [Filho],
Deus derrama a sua misericórdia sem limites até ao ponto de fazer d’Ele a
Misericórdia encarnada”. Jesus é a Misericórdia que se fez homem.
Na homilia
da Missa de abertura do Jubileu e da Porta Santa, a 8 de Dezembro
último, disse Francisco:
“(…) a própria história do pecado só é
compreensível à luz do amor que perdoa. (…) Se tudo permanecesse ligado ao
pecado, seríamos os mais desesperados entre as criaturas. Mas não! A promessa
da vitória do amor de Cristo encerra tudo na misericórdia do Pai.”
Na
entrevista que está publicada em livro intitulado O Nome de Deus é Misericórdia,
entre muitas outras coisas interessante e importantes, o Papa Francisco conta a
história de uma velhinha que lhe pediu para confessar (ele ainda era Bispo
Auxiliar de Buenos Aires).
«Mas se a senhora não pecou…?», perguntou
o Bispo Bergoglio.
«Todos temos pecados» respondeu a
senhora.
«Mas o Senhor talvez não os perdoe…», replicou
o Bispo.
E ela: «O Senhor perdoa tudo».
«Como sabe a Senhora?», perguntou o Bispo.
«Se o Senhor não perdoasse tudo, o mundo não existiria».
***
MISERICÓRDIA COM OS OUTROS
Acontece, no entanto, que
“A
misericórdia de Deus transforma o coração do homem (…) tornando-o assim, por
sua vez, capaz de misericórdia”.
Quer isto
dizer que somos não apenas recetores
da misericórdia de Deus, mas também capazes
de misericórdia para com os outros.
Com
referência ao Papa Francisco, diz o Cardeal Kasper; “Um pequeno gesto de misericórdia entre os homens pode mudar o mundo
para melhor” (3)
***
Tradicionalmente,
o exercício da Misericórdia para com os outros se realiza através das chamadas «14 obras de Misericórdia», sete «corporais» e sete «espirituais».
Como
sabemos, estas obras, sobretudo as chamadas corporais, apoiam-se no evangelho de S. Mateus (25), passagem
em que Jesus não apenas aponta quem
são as pessoas e os grupos que devem merecer a nossa atenção preferencial, mas
Ele próprio, Jesus, se identifica
com os «pobres»: pessoas com fome, com sede, peregrinos, nus, doentes presos.
Como nota
o Papa, estes «pobres» não só mendigam pão e água e vestido, mas mendigam também, a nossa conversão.
O pobre chamado Lázaro, do evangelho de S. Lucas, aparece com uma dupla missão.
Por um lado, é alguém com quem Jesus se identifica ao ponto de nos dizer que o
que fizermos a Lázaro fazemos a Ele, Jesus.
Por
outro, Lázaro aparece como “figura de Cristo que, nos pobres, mendiga a
nossa conversão”. “Lázaro ─ diz
o Papa ─ é a possibilidade de conversão que Deus nos
oferece e talvez não vejamos”.
O EXERCÍCIO DA MISERICÓRDIA NÃO É SÓ
INTERPESSOAL
Acresce,
que essa conversão, este exercício da misericórdia se não limita à dimensão individual ou interpessoal. Nota o Papa que a cegueira que faz com que não
vejamos Lázaro, o pobre que está à nossa porta, pode assumir também formas sociais e políticas, como
mostram alguns exemplos:
· os totalitarismos do século XX e hoje
· as ideologias do pensamento único e da tecnociência que pretendem
• tornar Deus irrelevante e
• reduzir o homem a massa possível de instrumentalizar.
· as estruturas de pecado ligadas a um modelo de falso desenvolvimento fundado na idolatria do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres
as pessoas e as sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se
até mesmo a vê-los. (4)
Creio que
todas ou a maior parte destes problemas são do nosso conhecimento. Penso,
todavia que os cristãos em geral não têm estas questões no primeiro plano das
suas preocupações de serem fiéis à mensagem evangélica. Cada um saberá como e
quanto mudar, mas estes são, porventura aspetos em que terá que ocorrer a busca
de «novos estilos de vida» de que
fala o título deste encontro.
O Papa fala
em “escuta orante da Palavra,
especialmente a palavra profética”. (5)
***
Este é o contexto em que devemos
refletir sobre as obras de Misericórdia.
O Papa Francisco insiste em que
nunca devemos separar as obras de misericórdia corporais das obras espirituais.
Gostaria de sublinhar este ponto. Todavia, iremos aqui limitar-nos a refletir
apenas numa ou outra, a título de exemplo.
Lembremo-nos dessas obras:
Obras corporais: dar de comer a
quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos
peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; enterrar os mortos. Obras
espirituais: dar bons conselhos; ensinar os ignorantes; corrigir os que erram;
consolar os tristes; perdoar as injúrias; sofrer com paciência as fraquezas do
nosso próximo; rogar a Deus por vivos e defuntos.
***
Podemos começar por colocar algumas questões prévias:
a) Será que as obras de misericórdia continuam válidas nos
nossos dias?
Se olharmos para o mundo que nos cerca, não vejo que possa
haver dúvida quanto à sua atualidade, porventura com uma ou outra modificação.
b) Será que hoje existem situações novas que deveriam ser
incluídas nas obras de misericórdia?
Creio que sim. Teremos oportunidade para aludirmos a um ou
outro caso.
c) Como deveremos entender as situações e que atitudes e
comportamentos essas situações devem suscitar hoje?
Se a consideração desta alínea não nos levar a «novos estilos de vida», receio que o
resultado do Jubileu será mais atenuado do que poderá ser.
O que significa «dar de comer» hoje?
Analisemos a primeira obra de misericórdia: dar de comer a quem tem fome.
a) Quem é aquele que tem fome? Uma pessoa? Uma família? Um
país? Um continente? O mundo?
b) Como devemos entender hoje a expressão «dar de comer»?
c) Ter fome é um problema que se resolve em si mesmo, ou
exige a solução de um conjunto de problemas?
Comecemos pela
situação de uma pessoa (um indivíduo) com fome (o pobre chamado Lázaro, por
exemplo).
Que atitude se espera que a situação de fome suscite em mim?
A resposta é precisa: dar
de comer.
E o que devemos
entender por «dar de comer»? Estamos na segunda questão. É uma questão
importante, por duas razões: em primeiro lugar porque a resposta pode evoluir
ao longo do tempo: dar de comer no tempo de S. Mateus não é necessariamente o
mesmo que hoje; em segundo lugar, há formas de «dar de comer» mais conformes
com a dignidade humana e outras que
até podem ofender a dignidade humana, sobretudo de quem «recebe». Também o sentido
da dignidade desenvolveu-se ao longo do tempo.
Convém sermos claros a este respeito.
A fome é um
problema que exige remédio imediato.
Quem tem fome precisa de comer já. Há um sentido de urgência
ligado à situação de fome, urgência que tem de ser respeitada.
Voltemos ao que disse: o que se espera que eu faça perante
alguém com fome é que lhe dê de comer e já. Tomemos isto no sentido restrito:
matar a fome.
O que resulta deste
«dar de comer»?
Resulta que o faminto já não tem fome.
E depois?
Depois, passado o efeito nutricional ou alimentar da
refeição, o homem volta a ter fome, regressa à sua condição de faminto, ou
seja, continua a precisar que alguém lhe
dê de comer. Volta à sua condição de Lázaro.
Por outras palavras, continua
pobre.
Demos aqui um salto
conceptual: de fome para pobreza. Estamos na terceira questão.
Se eu me limitar a dar de comer, eu contribuo para matar a
fome, mas a causa dessa fome (pobreza) mantém-se intacta e continua
a causar fome.
Quer isto dizer que dar de comer é necessário (mata a fome), mas não é suficiente (porque mantém a situação de pobreza).
Estaremos, assim,
diante de duas atitudes possíveis:
· ou nos dispomos a alimentar o faminto
indefinidamente ─ diretamente ou através de alguma instituição ─, mantendo-o
numa situação crónica de dependência,
que não dignifica nenhuma das partes;
· ou vamos à busca das causas da sua fome, para as erradicar, ajudando-o a libertar-se da
pobreza. Aqui põe-se, por exemplo, o problema do emprego, de uma pensão
digna, de reforma ou outra, etc. Na verdade, a situação daquele faminto só
fica resolvida com dignidade quando ele tiver uma fonte de rendimento normal (salário, pensão de reforma, etc.) e puder comprar o seu alimento como o normal
dos cidadãos. Quando já não precisar
de ajudas extraordinárias para se alimentar e satisfazer as suas necessidades
humanas básicas.
Este objectivo requer humanidade, justiça, solidariedade,
compaixão, mas também qualificação científica e técnica, e
pode requerer intervenção social e
intervenção política. Pode requerer associar-me
com outros para combater a pobreza.
Donde se vê que, tal como acontece com a relação entre a caridade e a verdade, também a relação entre a misericórdia e a verdade
é incontornável. “Um cristianismo de caridade sem verdade ─ disse Bento XVI na encíclica Caritas in
Veritate ─, pode ser facilmente
confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social
mas marginais.” (6)
Motivações fortes e profundas não dispensam o concurso da
verdade, incluindo a verdade científica.
Assim teremos também alargado
o âmbito da nossa preocupação e ação: não nos limitamos a olhar por Lázaro,
mas pelos muitos lázaros que existem neste país e no mundo,
A TODOS OS NÍVEIS
Isto é válido para o comportamento
individual de cada um de nós, como é válido para as instituições sociais e mesmo para a Igreja enquanto comunidade, ou para a sociedade como um todo (à escala nacional ou à escala
mundial).
Recordo uma das passagens do Papa que atrás citei: “as estruturas
de pecado ligadas a um modelo de
falso desenvolvimento fundado na idolatria
do dinheiro, que torna indiferentes ao destino dos pobres as pessoas e as
sociedades mais ricas, que lhes fecham as portas recusando-se até mesmo a
vê-los.”
Estamos perante um fenómeno coletivo e comunitário em dois
sentidos: relativamente às vítimas (“destino dos pobres”) e aos responsáveis (“as
pessoas e as sociedades mais ricas”).
Há pessoas e instituições sociais que optam pela primeira fase de intervenção: matar a fome,
dar de comer em sentido restrito. E neste patamar realizam uma obra notável e
indispensável que ajuda muitos famintos, de pão e de outros bens. É o plano da assistência, respeitável em si, desde
que se não confunda com assistencialismo.
É preciso explicar o sentido destas palavras.
Na Europa central e do norte, a assistência é um direito
integrado no rol dos direitos humanos.
É um direito consagrado no artigo 13º da Carta
Social Europeia, do Conselho da Europa, carta que foi ratificada por
Portugal.
Assim entendida, a assistência nada tem de parecido com o
que acontece entre nós: a chamada
«assistência» é uma área onde as decisões são aleatórias e discricionárias,
dependentes da boa vontade das pessoas, instituições e governos, quer na sua formulação das medidas, quer na sua gestão. É isto que costumo designar por
assistencialismo. Não falo de todas
as pessoas e instituições, mas creio poder falar em muitas pessoas e
instituições, incluindo instituições públicas
e privadas.
Diversamente, a assistência de que falo é um direito consagrado na lei, definido em
termos precisos, de modo a que o cidadão saiba quais são as regras que regem a
medida. Direito que, em caso em que o cidadão se sinta prejudicado, por
negação, cancelamento ou redução de algum benefício, possa recorrer a uma entidade independente daquela que gere o recurso,
desejavelmente um tribunal.
Por maior que seja a boa
vontade dos que praticam o assistencialismo,
este não respeita a dignidade do faminto.
Será melhor eliminar
o assistencialismo e deixar as pessoas passarem fome? Trata-se de um
falso dilema. Não é aceitável colocar em termos alternativos a fome ou a ofensa da dignidade humana. A única opção aceitável é matar a fome com respeito da dignidade humana.
Como disse, a
assistência, a assistência respeitadora da dignidade humana, é necessária.
Porém, deve ser uma medida transitória,
o que implica que, ao mesmo tempo, se desenvolvam ações que permitam ao pobre vencer a pobreza e já não precisar de
medidas assistenciais.
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,
disse o Papa Francisco:
“Os planos de
assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se
apenas como respostas provisórias.” E acrescentou: “Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando
à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as
causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do
mundo e, em definitivo, problema algum.” (EG 202)
Neste entendimento, se o critério de sucesso da nossa ação de «dar de comer» for apenas a do
número de refeições que fornecemos
ou de famílias que são ajudadas através
do Banco Alimentar, estaremos a olhar para um indicador que, embora
positivo, é um indicador menor. O que realmente importa saber é quantas pessoas ou famílias deixaram de ser
pobres, deixaram de precisar da nossa ajuda, por causa da nossa intervenção.
Falei atrás da relação entre a misericórdia e a verdade. Ao
pensarmos em dar de comer com
respeito pela dignidade ocorre
ressaltar também a relação da misericórdia com a justiça.
Durante a Audiência
geral de Quarta Feira de Cinzas deste ano, disse o Papa: “se o jubileu não chegar aos bolsos, não será um
verdadeiro jubileu”.
Mais precisamente, explicou Papa Francisco que prescrições como a do jubileu “serviam para combater a
pobreza e a desigualdade, garantindo uma vida digna para todos e uma
distribuição equitativa da terra onde habitar e da qual haurir o próprio
sustento”. E acrescentou: “A ideia central é que a terra pertence originariamente
a Deus e foi confiada aos homens (cf. Gn 1, 28-29), e por isso ninguém
pode reivindicar para si a sua posse exclusiva, criando situações de
desigualdade. Hoje podemos reconsiderar isto; cada qual no seu coração pense se
possui demasiados bens. Mas por que motivo não os deixar a quantos nada
possuem? Dez por cento, cinquenta por cento... Digo: que o Espírito Santo
inspire cada um de vós.”
Isto tem a ver com um dos princípios fundamentais do
pensamento social da Igreja: o do destino
universal dos bens da terra.
Apoiando-se nesse
princípio, realçado pelo Concilio Vaticano II, afirmou o Papa Paulo VI: “todo o homem tem direito (…) de nela
encontrar o que lhe é necessário.” (7) E
acrescentou: “Todos os outros direitos,
quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comércio livre, estão-lhe
subordinados”. (8)
O conceito cristão de justiça não poderá
ignorar este princípio fundamental do
pensamento da Igreja.
• O direito de propriedade privada,
mesmo sobre bens produtivos, tem valor permanente, pela simples razão de ser um
direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e finalista de cada
ser humano em relação à sociedade. (9)
• Também por esta via se vê que esse direito é
um direito universal (baseado na natureza hu- mana, tenha ou não
tenha propriedade).
É precisamente
porque a propriedade privada é tão importante ao ser humano que é um mal social que existam tantos homens e
mulheres a quem é negado esse direito.
Todos conhecemos o
modelo de vida na primeira comunidade cristã de Jerusalém. Lê-se nos Atos dos
Apóstolos: “Entre eles não havia ninguém necessitado,
pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da
venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um
conforme a necessidade que tivesse.” (At 4, 34-35)
Na encíclica Deus Caritas est, o Papa Bento XVI tece
algumas considerações a propósito deste modelo de vida cristã. Antes do mais,
afirma o universalismo da caridade.
Como se vê na parábola do Samaritano (Lucas),
a nossa caridade deve exercer-se com aquele que acontece encontrarmos, aquele
que precisa de nós, seja quem for, conhecido ou desconhecido. Porém, ressalvado
este universalismo, afirma Bento XVI que mantém atualidade a noção de que entre
os cristãos não deve haver ninguém necessitado. “[N]o seio da comunidade dos crentes não deve
haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários
para uma vida condigna.” (10)
É evidente que nada
disto se resolve com sobras. Disse o
Papa Francisco na mensagem quaresmal de 2014: “Desconfio da esmola que não custa nem dói.”
S. Basílio Magno disse numa das
suas homílias o seguinte:
“Quando alguém rouba os vestidos de um homem
dizemos que é um ladrão. Não devemos dar o mesmo nome a quem, podendo vestir o
nu, não o faz? O pão que existe na tua despensa pertence ao faminto; o agasalho
pendurado, sem uso, no teu guarda-fatos pertence a quem dele necessita; os
sapatos que se estragam no teu armário pertencem ao descalço; o dinheiro que
acumulas pertence ao pobre” (11).
S. Basílio Magno trava um diálogo
com o jovem rico do evangelho de Mateus (12).
Recordemos o
episódio.
Tendo o jovem
perguntado a Jesus o que deveria fazer de bom para “alcançar a vida eterna”,
Jesus propõe-lhe os mandamentos, destacando o do amor do próximo. Tenho
cumprido tudo isto, responde o jovem, que me falta ainda? Jesus responde: “Se
queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um
tesouro no Céu; depois, vem e segue-me”. E acrescenta o evangelista que ao
ouvir tais palavras, “o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos
bens”.
S. Basílio aprecia
as qualidades do jovem, designadamente porque era sincero e não havia nas suas
perguntas qualquer fingimento. Mas analisa, também as fraquezas que o levaram a
retirar-se.
“Se as tuas
pretensões fossem justificadas, e se observasses desde a juventude o preceito
da caridade, dando a cada um o mesmo que te dás, donde te viria essa profusão
de riqueza? O cuidado que se dá aos pobres consome as fortunas.”
E, mais adiante:
“Se tivesses
vestido o que estava nu, se estenderas o teu pão ao faminto e abriras a tua
porta aos estranhos, se te tivesses tornado um pai para os órfãos, se todas as
mágoas te magoassem, sobre que bens chorarias hoje? Custar-te-ia acaso tanto
ceder aquilo que te resta, se há muito cuidasses em distribuí-lo aos pobres?” (13)
Estas palavras são
do século IV. Será que hoje devem ter uma leitura aguada, que não chega a
interpelar?
Por vezes, ficamos muito
impressionados com a generosidade de alguns empresários e homens ricos que
utilizam parte dos seus lucros ou da sua riqueza para criar fundações para
fazer bem aos pobres ou à sociedade em geral.
Não digo que não devemos apreciar
estes gestos. Mas o problema que se põe é o de saber como é que essas pessoas e
empresários se comportaram na sua atividade económica, de forma a acumular essa
riqueza. Na perspetiva de S. Basílio Magno, essa riqueza seria mesmo deles?
***
Uma outra obra de misericórdia consiste
em «dar pousada aos peregrinos», ou,
no dizer de S. Mateus, «recolher o
peregrino».
O profeta Isaias fala em “dar abrigo aos infelizes sem casa.»
(Is 50, 1-9a)
As obras de misericórdia corporais
e o Evangelho de S. Mateus em que as mesmas se inspiram querem exemplificar algumas necessidades humanas básicas. Penso que se colocam duas questões a
este respeito: primeiramente, as obras são indicadas a título ilustrativo e não exaustivo. Em segundo lugar, fazem-no segundo o modo de entender no
tempo em que foram formuladas.
Resulta daqui que, uma das nossas tarefas deve ser
a de verificar se as necessidades então verificadas continuam a verificar-se
hoje, e se não haverá hoje novas necessidades que não existiam noutros tempos.
Hoje, talvez se não ponha com a
mesma acuidade o problema dos peregrinos,
mas há outras formas de situações semelhantes:
- Temos os migrantes (o problema massivo das migrações do Médio Oriente e da
Ásia para a Europa), com mais incertezas e inseguranças do que as dos
peregrinos.
- Temos o fenómeno dos sem-abrigo (quer como famílias
inteiras, quer como indivíduos).
- Temos os idosos que ou são abandonados ou colocados em lares (por vezes em
condições desumanas), porque não têm lugar na família, nem apoios domiciliários para continuarem a viver na sua
própria casa. “A família é o melhor lar
para os idosos” disse o Papa Francisco. (14)
Se quisermos ter uma ideia clara
do lugar dos idosos na sociedade, vale a pena lermos o artigo 23º da Carta
Social Europeia do Conselho da Europa.
- Etc.
Na maior parte destes casos, não
se trata apenas de facultar um teto.
O teto é importante, mas as pessoas precisam também de acolhimento, de cuidado, de
viver em dignidade.
Na Audiência Geral de Quarta Feira
de Cinzas deste ano, Papa Francisco concluiu a sua mensagem nestas palavras; “Contribuir para edificar uma terra sem pobres quer
dizer construir sociedades sem discriminações, baseadas na solidariedade que
leva a compartilhar quanto se possui, numa divisão de recursos assente na
fraternidade e na justiça.”
(1) Papa Francisco, O
nome de Deus é Misericórdia, p. 71.
(2) Cit. em Papa Francisco, O nome de Deus é Misericórdia, p. 25.
(3) Kasper, Walter (2015), Papa Francisco ─ a revolução da Misericórdia e do amor, Paulinas,
Portugal. Original alemão de 2015.
(4) Mensagem par a Quaresma de 2016.
(5) Ibidem.
(6) Bento XVI, Caritas in Veritate, nº 4.
(7) Paulo VI, Populorum Progressio, nº 22.
(8) Ibidem.
(9) João XXIII, Mater et Magistra, 109.
(10) Bento XVI, Deus
caritas est, nº 20.
(11) S. Basílio Magno, Homilía
“Destruiré mis graneros”, sobre Lc. 12, 16-21, 7 (PG 31, 277), citado por
González-Carvajal (1991), pp. 47-48.
(12) Mt 19, 16-26; Mc 10,
17-27; Lc 18, 18-27. Embora os três sinópticos narrem o episódio, Marcos
refere-se a um homem, e Lucas a um chefe. Só Mateus alude a um jovem.
(13) S. Basílio Magno, Homilia contra os Ricos, in
AA. VV. (1964), A Pobreza na Igreja, Livraria Morais Editora, Lisboa,
pp. 4-25.
(14) Papa Francisco, O
nome de Deus é Misericórdia, p. 91.
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