O Papa Francisco a encerrar, ontem, a porta do ano jubilar
dedicado à misericórdia (foto reproduzida daqui)
No dia em que se conclui o Ano da Misericórdia, o Papa Francisco assinou uma carta
apostólica sobre o tema, que será divulgada esta segunda-feira. Seguramente,
essa carta insistirá em algumas das ideias-chave deste pontificado – e,
nomeadamente, na misericórdia como seu conceito definidor. A 30 de Abril último, publiquei na
Revista E, do Expresso, um texto com o título acima, no qual tentava fazer uma
leitura das principais ideias do Papa Francisco e do modo como essas ideias são
uma tradução do seu modo de agir – e vice-versa. Fica a seguir o texto, devendo
as datas ser lidas tendo em conta a data de publicação.
Há pessoas reconhecidas pelo
pensamento, outras admiradas pelo que fazem. Há ainda quem seja respeitado pelo
que pensa e por aquilo que faz. O Papa Francisco estará neste último caso. Há
quem o menospreze dizendo que ele é apenas uma pessoa simpática. Mas
percebe-se, pelos seus textos e decisões que, pelo contrário, ele é um
pensador, em relação permanente com a realidade. Neste trabalho, analisam-se os
seus documentos e propostas, bem como algumas das suas decisões, tentando ler
como pensa e como age o Papa.
Tudo começa numa escolha
aparentemente pouco importante: depois de eleito, quando o levaram aos
aposentos de Papa, Jorge Mario Bergoglio comentou que o espaço era demasiado
grande e que precisava de pessoas na sua vida. Preferiu, por isso, ficar a
residir na Casa de Santa Marta, onde estão alojados dirigentes e funcionários
de serviços da Santa Sé, e que serve também de hotel para pessoas de passagem.
Santa Marta tem mulheres e homens
a trabalhar na recepção, na limpeza, no serviço de mesa. Pessoas que não vivem
apenas fechadas no círculo do Vaticano e se cruzam diariamente com o Papa
Bergoglio. Seja nos corredores, na capela, no átrio de entrada ou à mesa.
Os antecessores de Francisco só
contactavam, no dia-a-dia, com os funcionários mais próximos – secretários,
cardeais e bispos, religiosas. Ao contrário, o facto de este Papa estar numa
residência “normal” permite-lhe aproximar-se dos funcionários, conhecer os seus
problemas, as pequenas alegrias ou grandes dores.
Há dois meses, por exemplo,
Francisco foi rezar durante um tempo largo junto do corpo de Miriam Wuolou,
recepcionista de Santa Marta com 34 anos, de origem eritreia, grávida de sete
meses, que morrera vítima de diabetes. Ver o Papa num velório de uma
funcionária do Vaticano seria, até há pouco, muito pouco provável.
Se Bergoglio já era, por
temperamento, próximo das pessoas, a decisão de residir em Santa Marta permite
que, enquanto Papa, ele parta do quotidiano e da provocação da vida dos outros
para reflectir sobre factos e acontecimentos. Depois, num movimento permanente
e circular, a sua reflexão propõe novas visões do mundo, dos modos de estar da
Igreja e da relação dos crentes com a sua fé.
Um pensador, portanto. Mas, ao
invés da escultura de Auguste Rodin, Francisco não se inclina sobre si mesmo.
Antes se coloca à escuta do que o envolve.
Esse modo de estar reflecte-se
quer nas homilias que faz todos os dias, na missa matinal, quer em documentos
importantes como o que publicou, a 8 de Abril, sobre a família – Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), e no qual fala de todas as
situações de alegria ou tensão no contexto familiar. Ou ainda em situações tão
diferentes quanto o discurso perante os refugiados de Lesbos ou as referências
a questões de economia ou emprego, a decisões no campo do combate à pedofilia
do clero ou da reforma da Cúria Romana.
O padre jesuíta Antonio Spadaro,
que fez a primeira grande entrevista a Francisco já depois de eleito, nota, no
livro Temos de Ser Normais: “É significativo que, como
declara o Papa, o discernimento espiritual guie as suas opções quotidianas, à
primeira vista imediatas e espontâneas. Um exemplo: quando me falou da decisão
de ficar a morar em Santa Marta, utilizou o termo ‘eleição’. Impressionou-me o
facto de o Papa ter usado esta palavra, típica da linguagem de Santo Inácio [de
Loiola, fundador dos jesuítas], para indicar uma escolha que é fruto de um
atento discernimento sobre a vontade de Deus.”
O conceito: misericórdia
No centro do pensamento e da acção
do Papa, está o conceito de misericórdia, que o levou a proclamar um ano
dedicado a esse tema. O cardeal Walter Kasper, autor de um livro sobre o
assunto que o Papa citou logo no primeiro domingo depois de eleito, não tem
dúvidas: “A misericórdia é o centro, o fulcro da mensagem bíblica” e é “a
trave-mestra da Igreja”, afirma, no livro-entrevista Testemunha da Misericórdia. Francisco, acrescenta o cardeal
alemão, “fala da ‘hierarquia da verdade’, e diz que o cerne da verdade bíblica é
a caridade de Deus. Por isso, a misericórdia constitui a hermenêutica das
outras verdades e dos próprios mandamentos”.
É essa ideia – sinónimo de coração
compadecido – que o Papa retoma a partir do Evangelho. E que lhe permite
perguntar, quando é questionado sobre a homossexualidade: “Quem sou eu para
julgar?” Ou que está por detrás do gesto de, no dia 16 de Abril, levar três
famílias de refugiados sírios do campo de Moria, em Lesbos, para viverem no
Vaticano. Ou que o fez abrir novas possibilidades aos católicos divorciados que
voltaram a casar, como o próprio admitiu, também no dia 16, a bordo do avião
que o levou de Lesbos ao Vaticano, a propósito da exortação Amoris Laetitia.
O Papa teve a “genialidade” – a
expressão é de novo do cardeal Kasper – “de compreender a imensa necessidade de
misericórdia e de amor que percorre a noite do homem e da mulher
contemporâneos”. Por isso, acrescenta ainda Walter Kasper, “não se compreende a
oposição de muita gente ao Papa Francisco, que exprime esta centralidade da
misericórdia de um modo novo e muito mais incisivo, porque a liga à necessidade
de regressar à fonte evangélica”.
É o próprio Francisco quem fala de
revolução, a propósito deste tema. Em Novembro de 2013, na exortação Evangelli Gaudium (A Alegria do Evangelho), escrevia que “na sua
encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura”. No livro A Felicidade Treina-se em Cada Dia, que recolhe as homilias de
2014-2015 em Santa Marta e acaba de ser publicado, o Papa diz que a
misericórdia é “uma grande luz de amor, de ternura”.
A misericórdia tem de ser vivida
no concreto por todos os crentes, acrescenta Francisco, na carta que proclamou
o ano santo: “Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos
movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder
encontrar um oásis de misericórdia.”
“É o tempo de regresso ao
essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão
é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o
futuro com esperança”, diz ainda, sobre o fundamento da sua proposta. Defendendo,
como faz no livro-entrevista O Nome de Deus é Misericórdia, que o perdão deve ser estendido
às relações sociais e entre Estados. Sob pena de não se fazer justiça e de se
correr o risco de “alimentar uma espiral de conflitos sem fim”.
A convocação do ano da
misericórdia e a insistência do Papa no tema não são apenas ideias generosas.
Antes correspondem a uma ideia central, fundamentada no Evangelho. A divisa que
escolheu quando foi nomeado bispo – e que manteve como Papa – não deixa
dúvidas: Miserando atque elegendo. Uma frase retirada do evangelho segundo
São Mateus: “Jesus viu um cobrador de impostos e, olhando para ele com
misericórdia, escolheu-o”. Quando passava por Roma antes de ser Papa, Bergoglio
ficava numa casa ao lado da igreja de São Luís dos Franceses. E entrava aqui
muitas vezes para contemplar o quadro Vocação de Mateus (aqui reproduzido), de Caravaggio, como
o próprio contou na entrevista a Spadaro...
O método: abrir portas
Francisco coloca a aproximação a
cada pessoa acima da tradição, da norma ou do costume. Abrir portas é o seu
método, baseado no modelo de acompanhamento pessoal proposto nos “Exercícios
Espirituais” de Santo Inácio de Loiola, o fundador dos jesuítas (no passado dia
22, o Papa assinalou o aniversário do dia em que, em 1973, fez os últimos votos
na Companhia de Jesus).
Esta abertura traduz-se em
mudanças em situações em que já há um ambiente favorável (mesmo que não
unânime) à renovação; foi o caso da alteração ao ritual litúrgico do lava-pés,
que passou a incluir mulheres; ou dos procedimentos que Francisco tem exigido no
combate à pedofilia do clero – denúncias dos casos às autoridades, demissões de
bispos silenciosos ou coniventes, etc.
Noutras situações, o Papa prefere
propor caminhos que levem as pessoas a entender a necessidade de alterar
regras, disciplinas, comportamentos. Com cautelas, por vezes, para não colocar
em causa toda a proposta, mas insistindo nas suas ideias e sugestões como forma
de levar a comunidade dos crentes a percorrer um caminho.
O lugar da mulher na Igreja é um
outro indicador de como se abrem portas que estão ainda mais trancadas. Em
1984, o Papa João Paulo II publicou uma carta em que afirma que a ordenação
sacerdotal deve ficar reservada aos homens para sempre. Ao regressar do Brasil,
em 2013, Francisco repetiu que o seu antecessor já encerrara o assunto, mas
dizendo que a Igreja devia ampliar a participação das mulheres.
Dias depois, na entrevista que
daria ao padre Spadaro, para as revistas jesuítas (publicada nos livros Temos de Ser Normais e Sonho Com Uma Igreja Mãe e Pastora),
dizia ser “necessário ampliar os espaços
de uma presença feminina mais incisiva na Igreja”, que “não pode ser ela
própria sem a mulher e o seu papel”; que “a mulher, para a Igreja, é
imprescindível” e que é necessário “aprofundar melhor a figura da mulher na
Igreja”.
Depois, o Papa acrescentava algo de novo: “É preciso
trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher. (...) O génio
feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O
desafio hoje é exactamente esse: reflectir sobre o lugar específico da mulher,
precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”
Ao falar dos lugares de autoridade, o Papa está a referir a
hierárquica católica. Se diz, por um lado, que a questão da ordenação está
fechada, por outro abre a porta ao debate sobre o assunto. E insiste no
contributo específico das mulheres, também em lugares de autoridade na Igreja.
É a sua forma, tranquila, de provocar a revolução.
Uma tal opção do Papa tem implicações mesmo na teologia. Nas
últimas décadas, os exegetas bíblicos têm relido os textos dos evangelhos e das
cartas de São Paulo e descoberto algo que, durante séculos, se omitiu por
razões culturais: as mulheres foram muito mais importantes nos primeiros
seguidores de Jesus do que se pensava e tiveram mesmo um papel de liderança nas
comunidades fundadas por São Paulo. Em várias homilias, Francisco pediu já o
aprofundamento do papel das mulheres na Bíblia e, ao empossar cinco mulheres na
Comissão Teológica Internacional, disse que elas não devem ser apenas a “cereja
no topo do bolo”.
A prática: as pessoas no centro
A família, com dois sínodos de
bispos dedicados ao tema, foi um dos campos onde mais se percebeu a estratégia
de ir abrindo portas, constante nestes três anos de pontificado. No sábado, 16
de Abril, comentando a exortação Amoris
Laetitia, o Papa disse explicitamente, sobre a possibilidade do acesso à
comunhão de católicos divorciados e casados segunda vez: “Posso dizer que sim,
ponto final. Mas seria uma resposta demasiado curta.” Depois, remeteu para o
que tinha sido dito na conferência de imprensa de apresentação do documento. O
cardeal Christoph Schonborn, arcebispo de Viena, falara de novidades, sem
rupturas, no documento do Papa. E referira a importância do discernimento “delicado,
mas necessário”, em relação a cada caso.
A abertura destes caminhos não tem
sido fácil: o cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito da importante Congregação
para a Doutrina da Fé, contestou várias vezes as soluções que o Papa e o
cardeal Kasper propunham e que agora ficaram consagradas na exortação
apostólica A Alegria do Amor. Em
Portugal, houve uma diferença de sublinhados entre o patriarca de Lisboa e o
bispo de Leiria-Fátima: D. Manuel Clemente destacou que o Papa não quis propor
mudanças, enquanto António Marto acentuou que Francisco, “de modo genial,
introduziu uma mudança da disciplina sem pôr em causa a doutrina sobre o
matrimónio e a família”.
No documento, o Papa sugere uma
arte poética, relacional, emotiva e erótica para a vida do casal. Um capítulo
inteiro – o quarto, sobre o amor no matrimónio – é dedicado a esses aspectos.
Refere, mesmo, a união afectiva dos esposos como podendo reunir em si “a
ternura da amizade e a paixão erótica”. E admite que, na formação do clero,
“pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes
casados”. Sempre abrindo portas, sugerindo caminhos, sem nada forçar.
Francisco insiste em três verbos
como chave para a acção da Igreja: “acompanhar, discernir e integrar”, título
do capítulo oitavo. Aqui, o Papa argentino inclui não só os divorciados, mas
também os homossexuais ou as pessoas que vivem em união de facto, seja por
relutância contra as instituições ou os compromissos, seja pela falta de
segurança económica ou social. Também nestes casos os responsáveis da Igreja
devem procurar valorizar “aqueles sinais de amor que reflectem, de algum modo,
o amor de Deus”. E, se neste documento o tom é sério, também já se referiu, com
humor, às sogras ou a situações de discussão e conflito nos casais, quando os
pratos voam entre marido e mulher.
Ao regressar de Lesbos, dia 16, vincou
a sua perspectiva: a família é um todo, entre questões morais, emocionais e
sociais. Tomando como ponto de partida algumas leituras mediáticas que
considera redutoras, dizia: “Estes média não se apercebem de que este
[divorciados recasados] não é o problema importante: a família está em crise em
todo o mundo, e a família é a base da sociedade; que os jovens não se querem
casar; que há uma queda da taxa de natalidade na Europa que dá vontade de
chorar; que falta trabalho; que as crianças crescem sozinhas. Estes são os
grandes problemas.”
O Papa já deu exemplo de que a
prática da Igreja Católica pode centrar-se mais nas pessoas do que nas regras
ou em algumas práticas distorcidas. Nestes três anos, Francisco baptizou já
várias crianças filhas de situações “irregulares”, como uma mãe solteira ou um
casal casado apenas pelo registo civil. O primeiro episódio deu-se em Janeiro
de 2014 e foi notícia não por quebrar uma regra (o Direito Canónico apenas pede
que se garanta a educação cristã dos filhos), mas pelo inédito de um Papa fazer
o que muitos padres não facilitam ou até contrariam.
A decisão de alterar a regra
litúrgica que previa que, na Quinta-Feira Santa, a cerimónia do lava-pés fosse
restringida a homens é outro exemplo. Apesar de o Papa o ter feito logo na
Páscoa de 2013, dias depois de ter sido eleito, poucos bispos e padres se
atreveram a seguir-lhe os passos. No início deste ano, Francisco promulgou um
decreto afirmando que é assim que deve ser feito.
Realidade nova: as pessoas que
sobram
Colocar as pessoas no centro é
também o grande argumento do Papa nas invectivas contra a “economia que mata”.
A expressão, cunhada na exortação A
Alegria do Evangelho, de Novembro de 2013, traduz, para Francisco, a
condenação de um sistema que promove a “cultura do descartável” e a
“globalização da indiferença”. Esta foi condenada na sua primeira viagem fora
do Vaticano, quando foi à ilha de Lampedusa estar com refugiados e homenagear
as vítimas de naufrágios no Mediterrâneo.
Monumento Final - Lampedusa (2011), do artista cubano Kcho
(pintura reproduzida daqui)
Para Francisco, já não está em
causa apenas “um fenómeno de exploração e opressão”, mas antes uma “realidade
nova”: os excluídos, que “não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’”. Esta
exclusão atinge uma das suas manifestações mais dramáticas na “grave crise
humanitária” dos refugiados – para a qual o Papa foi a Lesbos, dia 16, implorar
a resolução.
É na sua encíclica sobre a questão
ecológica – Laudato Si’ (Louvado Sejas), Sobre o cuidado da casa comum – que o Papa leva mais longe a
sistematização das suas críticas a um sistema que submete a política à finança,
relacionando diferentes factores e realidades: crise ecológica e ambiental,
pobreza e subdesenvolvimento, depredação e esgotamento de recursos,
concentração de grandes grupos financeiros e dívida externa, natalidade e fim
da biodiversidade, privatização da água e dívida ecológica, ecologia social e
desigualdade.
O Papa entende que “uma verdadeira
abordagem ecológica” exige uma “abordagem social”, ouvindo em simultâneo “o
clamor da terra” e o “clamor dos pobres”. Francisco repropõe alguns princípios
que vêm dos primeiros séculos do cristianismo: o destino universal dos bens e a
sua primazia sobre a propriedade privada. Mas, precisamente por causa de tais
argumentos, este foi o seu documento que mais críticas provocou em alguns
sectores católicos e político-financeiros.
O articulista espanhol Miguel
Angel Belloso, publicado em Portugal pelo Diário
de Notícias, apresenta-se como católico mas é muito crítico de Francisco.
Em Junho, depois da publicação da Laudato
Si’, escrevia que o Papa “chega a ser ofensivo ao assegurar que a
propriedade privada não pode estar acima do bem comum”. Ora, já João Paulo II
recordava, na encíclica sobre o trabalho, em Setembro de 1981, que a tradição cristã
“sempre” defendeu que “o direito à propriedade privada está subordinado ao
direito ao uso comum, subordinado ao destino universal dos bens”. Aliás, lendo
os teólogos dos primeiros séculos do cristianismo, eles chegam a pugnar que um
pobre que roube para comer não deve ser condenado por esse acto.
No livro Papa Francisco – Esta Economia Mata, os jornalistas italianos Andrea
Tornielli e Giacomo Galeazzi sistematizam outras críticas feitas ao Papa: o
comentador radiofónico norte-americano Rush Limbaugh acusa Francisco de ser
marxista; Jonathan Moseley, expoente do Tea Party, acrescenta que Jesus chora
“por causa das palavras do Papa” apelando à redistribuição, pois Jesus era “um
capitalista, apelando à responsabilidade pessoal, nunca um socialista”.
A revista financeira americana Forbes colava Bergoglio às teses do
Nobel Joseph Stiglitz e o magnata Keneth Langone, católico e dono de uma grande
riqueza, dizia que iria repensar o seu apoio a obras católicas de beneficência.
Sarah Palin e John McCain, candidatos republicanos contra Obama, também
alinharam nas críticas ao Papa “liberal”. Michael Novak, católico e guru dos
conservadores teológicos americanos, tentava reduzir o alcance das palavras do
Papa à realidade argentina ou, quando muito, latino-americana.
Os autores do livro recordam, no
entanto, que Novak já criticara, em 2009, a encíclica do Papa Bento XVI Caritas in Veritate (A Caridade naVerdade). Nesse documento, o Papa
Ratzinger defendia, por exemplo, “a urgência de uma reforma quer da Organização
das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional,
para que seja possível uma real concretização do conceito de família de
nações”. E recordava que o subdesenvolvimento e a pobreza de muitas áreas do
globo se tornou “mais agudo e premente com a crise económico-financeira em
curso”.
Na Laudato Si’, Francisco faz a defesa do trabalho como direito e
factor de realização pessoal. A diminuição dos postos de trabalho,
substituindo-os por máquinas, é “um exemplo de como a acção do homem se pode
voltar contra si mesmo”. Conclui o Papa, defendendo a existência de políticas
de emprego: “Renunciar ao investimento nas pessoas para se obter maior receita
imediata é um péssimo negocio para a sociedade”.
Por contraste, e dias antes da
publicação da encíclica, o director da Faculdade de Economia da Universidade
Católica Portuguesa, Francisco Veloso, condenava a 13 de Junho, em entrevista
ao DN e TSF, a “rigidez” no despedimento e na contratação em Portugal,
defendendo que é preciso “ir mais além” na flexibilização.
Uma linguagem: a homilia
Regressemos a Santa Marta: a
homilia na missa matinal na casa onde reside acabou por se tornar uma nova
linguagem com que o Papa fala ao mundo. No livro A Felicidade Treina-se em Cada Dia, o padre Antonio Spadaro cita o
filósofo Giovanni Reale, especialista em Platão e nos grandes clássicos, que
dizia que o livro com as homilias do primeiro ano (A Verdade é Um Encontro) era um verdadeiro tratado de
filosofia. De uma filosofia oral, explica depois Spadaro, de um logos que acolhe a força das metáforas,
das irregularidades gramaticais e tensão vital.
Basta ler um qualquer dos 155
textos reunidos neste volume (ou dos 186 de A
Verdade é um Encontro) para perceber esse método filosófico franciscano:
partindo da Bíblia, o Papa refere e brinca com o quotidiano, explica o que pode
fazer o crente que o escuta, propõe novos modos de estar por parte da Igreja.
Liberdade, desprendimento, pluralidade no pensamento, centralidade dos mais
pobres na acção dos católicos, crítica da burocracia e do carreirismo
eclesiástico, pedidos de perdão pelas falhas – ligeiras ou mais graves, como a
pedofilia –, apelos à paz e condenação do comércio de armas, a proposta da
alegria...
Jesus é aquele que abre portas e a
Igreja “tem sempre as portas abertas”, dizia ele, na homilia de 17 de Março do
ano passado. E dia 23 do mesmo mês, remata assim, sobre o tema “sem
misericórdia não há justiça”: “Gostaria apenas de dizer uma das mais belas
palavras do Evangelho, que me comove muito: ‘Ninguém te condenou?’ ‘Também eu
não te condeno.’ ‘Também eu não te condeno.’ É uma das palavras mais belas,
porque é cheia de misericórdia.”
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