terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Espevitar as brasas debaixo das cinzas
Nunca apreciaremos bastante o alcance do gesto que há um ano tomou o Papa Bento XVI, ao resignar ao seu múnus para se dedicar à oração. Vistas as coisas friamente, não há nada de excepcional na atitude. É o que acontece já em toda a Igreja, com os bispos que chegam aos 75 anos. Mas o Papa não. A simples ideia de resignação deixou não poucos cristãos pouco menos do que em estado de choque.
Ficou claro que o acto, profundamente ponderado, decorreu de um conflito interior entre a consciência das (cada vez mais) débeis forças próprias e a percepção da magnitude dos problemas que enfrentou: a Cúria, a pedofilia, a desobediência assumida de vastos sectores de cristãos e de clero, a desafectação cada vez maior dos preceitos eclesiásticos...
A renúncia foi um acto de grande humildade. Diria de enorme humanidade. Involuntariamente, Bento XVI abria porta ao Papa Francisco, a um estilo mais terra a terra, mais próximo das pessoas.
A abdicação representou um profundo golpe num modelo de Igreja papolâtrico que, proclamando a verdade, a justiça e a fraternidade, vivia, ao seu mais alto nível, na pompa, na arrogância sobre o mundo e sobre as outras confissões religiosas e frequentemente na mentira. O caso dos Legionários de Cristo (só o nome tresanda!) e o modo como, através dessa figura sinistra que foi o seu fundador e mentor, Marcial Maciel, se insinuaram no Vaticano e junto do Papa João Paulo II é, talvez, o caso mais paradigmático da corrupção económica e moral na Igreja.
É-me difícil não recordar as célebres palavras da última entrevista do cardeal Carlo Martini: "Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me invade uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas".
A "sensação de impotência" deve ter sido o que sentiu Ratzinger. A procura das brasas que ainda ardem sob as cinzas foi o desafio que decidiu enfrentar o Papa Francisco.
Num ano, muita coisa já mudou. Na atitude. No modo de estar. Na centração da vida cristã na atenção e compaixão com os humildes e os humilhados na sua dignidade. Na denúncia vigorosa de uma economia da exclusão e de uma lógica que torna as pessoas descartáveis.
Já é alguma coisa. Mas falta ainda tanto para fazer. E há tanta resistência a ir por esse caminho que não seria de espantar que o Papa ficasse a falar e a agir sozinho.
Há toda uma geração de bispos e de padres que foram formatados numa hermenêutica conciliar assente no medo da força do Evangelho e temerosa dos desafios do mundo de hoje.
O que vale é que os caminhos do Espírito são surpreendentes. A Igreja é uma casa plural em que também existe em abundância a entrega, a misericórdia, a busca da justiça, com obras. Temos motivos para acreditar. E temos a garantia da oração de Bento XVI que confessava, há dias, em carta ao teólogo Hans Küng:
"Estou grato por poder estar ligado por uma grande identidade de pontos de vista e por uma amizade de coração ao Papa Francisco. Hoje, vejo como minha única e última tarefa é apoiar o seu Pontificado na oração."
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