(ilustração: Maria Helena Vieira da Silva (1908-1922), A Poesia Está na Rua, reproduzida daqui.)
Foi nos retiros e nos encontros de jovens
cristãos dinamizados por frei Bento Domingues que Ana Isabel Sá Gomes Pena
aprendeu “a ser cidadã” e a intervir politicamente. “E eu dizia-me não
católica”, conta ela ao RELIGIONLINE, a propósito da iniciativa que, no próximo
sábado, irá recordar a luta dos católicos contra a ditadura, e da qual é uma
das organizadoras.
A tertúlia, a propósito dos 40 anos da
revolução de 25 de Abril de 1974, decorre no Convento dos Dominicanos, em
Lisboa (R. João Freitas Branco, 12), entre as 15h00 e as 18h00. Frei Bento
Domingues será uma das pessoas que abre a iniciativa, que incluirá ainda
depoimentos e intervenções de pessoas envolvidas na luta contra o regime
fascista, além de músicas cantadas por Francisco Fanhais.
Entre os grupos e iniciativas que frei Bento
Domingues se integrou esteve a dos “terceiros sábados”, sugeridos por Nuno
Teotónio Pereira e pela sua mulher Natália, cuja reconstituição está ainda por
fazer. Na tradição católica, várias
devoções da religiosidade popular tinham um dia marcado por mês: os primeiros
sábados ou as primeiras sextas-feiras, por exemplo. Os grupos católicos
oposicionistas aproveitaram essa tradição para se reunirem, ao terceiro sábado
de cada mês, no Colégio do Restelo das Irmãs Dominicanas e, depois, na casa das
Irmãs Franciscanas, ao Campo Pequeno.
“Era
uma maneira de trocarmos informação entre os diversos grupos, à sombra das
reuniões sobre espiritualidade e de celebração da eucaristia”, lembra frei
Bento, que nessa altura já estava envolvido na Comissão Nacional de Socorro aos
Presos Políticos.
“A
finalidade era que aquele espaço fosse um alimento espiritual para os grupos
católicos que criavam alternativas”, acrescenta, “de modo a que as acções dos
grupos não se reduzissem a técnicas subversivas”.
Panfletos contra a guerra no São João do Porto
Um dos últimos episódios de luta católica
contra a ditadura foi recordado por Manuel Pinto, então militante da Juventude
Estudantil Católica e um dos autores deste blogue, num trabalho que publiquei
na Visão História em Maio de 2013.
A 4 de Maio de 1973, a Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP) publicou uma carta pastoral assinalando o 10º aniversário da encíclica Pacem in Terris, do Papa João XXIII, que
tinha sido acolhida “como precioso testamento espiritual” do Papa Roncalli, que
morreria a 3 de Junho de 1963, pouco depois de publicar aquele documento.
O
documento não foi decisivo para a acção dos grupos católicos de oposição ao
regime. Mas, como observa João Miguel Almeida em A Oposição Católica ao Estado Novo (ed. Nelson de Matos), o texto dos bispos
“constituiu um factor de aproximação à Hierarquia de sectores da Igreja que
esperavam desta um gesto de distanciamento crítico face ao regime”.
O
texto episcopal, e as suas afirmações sobre a violência e o pluralismo
político, serviriam pelo menos de resguardo para novas ações de contestação à
guerra colonial. Uma delas foi protagonizada por um grupo de militantes da
Juventude Estudantil Católica em plena noite de São João, no Porto. Tratava-se
de distribuir milhares de panfletos a referir o número de soldados portugueses
e de independentistas africanos que já tinham morrido em 13 anos de guerra
colonial.
“Eram
duas ou três frases curtas e factuais”, recorda Manuel Pinto, actual professor
na Universidade do Minho, onde lecciona Jornalismo e Literacia para os Media.
Os papelinhos, com uns cinco centímetros por três de lado, impressos em papel bíblia,
estavam presos aos montes de mil cada um. A ideia era cada grupo de duas
pessoas cobrir uma área do centro do Porto, onde milhares de pessoas festejavam
o São João. Num momento, cada militante devia desprender o maço e atirar os
papéis ao ar. E fugir, de modo a que as pessoas pudessem ler as mensagens, mas
sem que fossem encontrados os autores da acção.
“Tivemos
sorte, pois a noite estava fresca e isso permitia esconder os papéis debaixo da
roupa”, diz Manuel Pinto. Mas o então jovem activista ainda apanhou um pequeno
susto. Largara os papéis na Rua Sá da Bandeira e, quando virou para subir a
Passos Manuel, aparece Joaquim Pinto de Andrade, padre angolano, um dos
fundadores do MPLA, que tinha sido desterrado para Portugal, onde a PIDE-DGS o
controlava. “Eu tinha-o conhecido semanas antes nas Monjas Dominicanas, em
Lisboa. Ele viu-me e convidou-me para ir com ele a um café. Enquanto eu tentava
fugir e me desculpava, fiquei apavorado, a pensar que me podiam apanhar e
acusá-lo também, sem que ele tivesse nada a ver com aquela acção.”
Tudo
acabou por se compor. Apesar da insistência de Pinto de Andrade, Manuel Pinto
conseguiu desligar-se dele e deixar a zona. “Nunca mais o vi, fiquei sempre a
pensar que ele teria ficado com má impressão minha.”
Manuel
Pinto também não sabe o que aconteceu aos outros activistas. Ouviu falar da
prisão de duas pessoas. Mas como em outras acções do género, cada um só
contactava com quem lhe dava as instruções, de modo a que ninguém soubesse de
outros nomes, no caso de ser apanhado pela polícia política do regime.
Tinha
sido Jorge Wemans, agora jornalista, ex-director da RTP 2, a contactar com
Manuel Pinto. No feriado do Corpo de Deus, em Sobrado, aldeia do concelho de
Valongo, junto ao rio, os dois falaram de como seria a acção, antes planeada
autonomamente na JEC do Porto. A Manuel Pinto foi atribuída uma zona que
incluía a Rua de Santa Catarina, a Avenida dos Aliados e a Praça da Batalha, no
centro do Porto.
Esta
acção decorreu poucos meses depois da expulsão de Portugal de um padre
holandês, da congregação dos Sagrados Corações, que fizera uma homilia, a 1 de
Janeiro, sobre a paz. “Ele perguntara na homilia como podíamos celebrar a paz
fazendo uma guerra injusta”, recorda Manuel Pinto, que vivia então na
residência dos padres, com mais alguns estudantes. “Num domingo, de manhã cedo,
vieram dois pides com ordem para levar o padre” Johannes Maria van den Hurk,
que nessa altura teria entre 45 e 50 anos. “Ao final do dia soubemos, por um
telefonema que ele tinha feito, que estava na Holanda.”
O movimento católico no movimento sindical
Promovida pelo movimento Não Apaguem a
Memória (NAM) e pelo Instituto São Tomás de Aquino, dos dominicanos, a tertúlia
segue-se a outras iniciativas semelhantes dinamizadas pelo NAM. Durante a
sessão, Fernando Abreu (um dos fundadores da UGT – União Geral de
Trabalhadores) e Cesário Borga contarão aspectos ligados à luta sindical, mas
estarão presentes outras pessoas ligadas também ao sindicalismo católico e que
estiveram na origem da CGTP. “Uma das raízes importantes do movimento sindical
é o movimento católico, mais do que se imagina”, comenta Isabel Sá Gomes. O
tema foi, aliás, objecto do estudo de Maria Inácia Rezola O Sindicalismo Católico no Estado Novo (ed. Estampa, 1999).
A iniciativa prevê ainda a leitura de um
depoimento de Nuno Teotónio Pereira, que mobilizou vários grupos da oposição católica e se empenhou em várias causas sociais. Teotónio Pereira foi distinguido em 2012 com
o Prémio Árvore da Vida, do Secretariado da Pastoral da Cultura, da Igreja
Católica.
Também José Ribeiro, editor da Ulmeiro e Luísa Sarsfield Cabral usarão da palavra, num
leque de intervenções alargado, que inclui um a leitura de um depoimento de Guilherme d’Oliveira Martins, numa sessão moderada por José Dias.
Entre a já vasta bibliografia existente sobre
o tema da luta católica contra a ditadura, podem destacar-se, além dos livros
já referidos, também os seguintes:
Elites Católicas em Portugal – O Papel da Acção Católica (1940-1961), de Paulo Oliveira Fontes, ed. Fundação
Gulbenkian – estudo sobre a formação da Acção Católica e
do seu papel na formação de várias elites, várias das quais tiveram papel
importante nas acções contra a ditadura
(uma entrevista ao autor aqui)
textos de, entre outros, António Cerejo,
Maria Vitória Pinheiro, Fernando Dias Branco, João Gomes, Maria da Natividade,
Fernando Abreu e padre Agostinho Jardim Gonçalves (ed. Gráfica de Coimbra)
histórias e depoimentos sobre duas décadas de mudança no
Seminário dos Olivais (1945-1968); coordenação de Artur Lemos; distr. Multinova
história e documentos do caso do pároco de
Belém, José da Felicidade Alves; ed. Multinova
(uma evocação do caso aqui)
homilias do padre Alberto na Capela do Rato,
entre 1968 e 1973; e depoimentos de várias personalidades; coordenação de Peter
Stilwell (ed. Texto Editora)
Entre as Brumas da Memória – Os católicos portugueses e a ditadura, de Joana Lopes, ed. Âmbar – casos e
histórias da luta dos católicos contra a ditadura
Os últimos presos do Estado Novo,
de Joana Pereira Bastos, ed. Oficina do Livro – histórias e depoimentos dos
últimos presos do regime, incluindo católicos/as.
(as partes do texto em itálico são retiradas do artigo Os bispos pelo pluralismo, que publiquei na Visão História, nº 20, de Maio de 2013)
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